16 dezembro 2010

Vou ali e já volto

Tenho pavor a despedidas. E quando parto para uma viagem, por mais curta que seja, começo logo a pensar na alegria da volta. Só assim consigo atenuar a tristeza que sinto ao afastar-me dos meus amigos. Gostaria que fossem comigo, temo perdê-los com a ausência. Fico imaginando os momentos de alegria que poderíamos compartilhar durante essa viagem, longe da rotina doméstica. Foi assim quando parti, ha algumas semanas, para cinco dias de devaneio em Buenos Aires.
O desconforto à bordo do avião não me permite maiores divagações. Servem-me um lanche numa tigelinha onde identifico uma espécie de salada cujo principal ingrediente são grãos de milho inteiros, felizmente cozidos. Nada mais adequado, penso eu. O lugar onde estou é a coisa mais parecida com aquelas gaiolas que usam para transportar galinhas. Não posso me queixar. Eu não sou mais do que um bípede depenado, como dizia Platão.
Desço no Aeroparque, aeroporto doméstico que eu não conhecia, próximo ao centro da cidade. Fantástico, em quinze minutos estou no hotel.
Buenos Aires está de mau humor. Não encontro mais aquela alegria que contagiava o turista. As pessoas correm pelas ruas falando ao celular em tom áspero, gesticulando nervosamente, desferindo com os braços golpes no ar. O atendimento nas lojas não é cordial como outrora e os garçons parecem mamulengos embalsamados.
Soçobrando entre medialunas e almendrados sinto falta do chopinho e das batatas fritas com os meus amigos do “ Depois da Oficina”. Vou para o Ateneu e parece-me vê-los esgueirando-se por entre os livros ou espalhados pelas frisas e camarotes. Vago pelo palco. Volta-me a nostalgia das aulas. Invade-me o afeto que surgiu daquela convivência desprovida de preconceitos e de vaidades. Quero levá-los ao “El Buller”, na Recoleta. Lá tem cerveja de verdade.
E poderemos rir e chorar.

                                                                   Severino Mandacaru

08 dezembro 2010

Aldenor vai a Recife

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Provavelmente quem leu a história da viagem ao aeroporto de Fortaleza com o Aldenor, e acreditou nela, achou que eu tive alguma participação naqueles acontecimentos bizarros. Engana-se. Porque, duas semanas depois o Aldenor veio ao Recife para dar continuidade ao nosso trabalho e hospedou-se em um hotelzinho de periferia, no lugar do Grande Hotel onde sempre ficava. No fim do último dia de trabalho eu o acompanhei até o hotel, onde ficamos tomando uma cerveja, na esperança de encontrar soluções para os problemas do sub-desenvolvimento do Nordeste. Quando saí, a lua apareceu , sorrindo. Sua imagem refletida no Cais do Apolo era entorpecente. Impossível ir para casa. Fiquei perambulando pelas pontes, contemplando as sombras dos edifícios refletidas na maré alta. A cidade ficou deserta. Decidido a ir para casa tomei o caminho da Ponte Buarque de Macedo.

Como um fantasma, caminhando lentamente, aparece o Aldenor, todo sorrisos.

-- Beduino, finalmente te encontrei!
-- O que houve, Aldenor, você não disse que ia dormir?
-- Perdi a carteira, os documentos, tudo. Não sei como pagar o hotel, não tenho dinheiro nem para o taxi. Você me arranja algum trocado?
-- Claro, mas o que é que você veio fazer aqui? Como ia me achar? Eu já devia estar em casa há muito tempo.

Aldenor baixou os olhos, colocou as mãos sobre meus ombros, e sussurrou:
-- Eu sabia que ia te encontrar!






05 dezembro 2010

Aldenor, o Messias

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Aldenor morava com cinco mulheres. A esposa, a mãe da esposa, uma irmã da esposa, uma sobrinha e uma enteada. Não tinha filhos. Todas o amavam, e o serviam, e o seguiam como se fosse um novo Messias enviado especialmente para redimir mulheres. Sempre magnânimo, Aldenor distribuía sorrisos, afagos, carinhos, amor no seu sentido mais elevado e, sobretudo, justiça. Morava num casarão colonial onde a harmonia preenchia todos os espaços.

Trabalhávamos juntos na Carteira de Crédito Industrial do Banco do Nordeste, em Fortaleza, na Rua Major Facundo, onde o jovem Severino curtia as noites com poemas, risadas e muita cerveja.
Minha base de trabalho era o Recife e eu viajava com freqüência para Fortaleza onde permanecia uma semana ou pouco mais. Eu me hospedava no hotel que ficava no final da rua Major Facundo, outrora aristocrático, mas que ainda conservava sua posição: de frente para o mar.
Certa ocasião o Aldenor me disse:
-- Galego, na próxima viagem você não vai para hotel. Vai ficar hospedado lá em casa.
Agradeci muito, não queria causar incomodo , essas coisas, mas não houve jeito. Ao desembarcar o Aldenor estava no aeroporto me esperando. Fiquei contente, até porque não conseguia esconder uma curiosidade mórbida: descobrir como é que ele administrava uma casa com cinco mulheres.
Solícitos ao estremo, tanto ele como sua esposa Maria desdobravam-se em atenções, cuidando dos menores detalhes para que eu me sentisse à vontade sem, contudo, exercer qualquer pressão. Cuidavam especialmente da cozinha. Entre as iguarias que a Maria preparava estava a paçoca, prato preferido do Aldenor. Embora tivesse esse nome a paçoca do Ceará não era a paçoca conhecida no sul, feita de amendoim e açúcar. Aquela era uma combinação de carne seca e farinha de mandioca socadas num pilão. Era usada pelos jangadeiros que saiam diariamente em busca de lagostas. Nós comíamos paçoca todos os dias. Estou exagerando. Não era todos os dias. Dos oito dias que passei lá só comi paçoca em sete deles.
Certamente a memória organoléptica do Aldenor não era das melhores porque certo dia, na hora do jantar, o único jantar em que a paçoca não compareceu ele virou-se para a esposa e disse:
-- Amôooor! Há quanto tempo você não faz uma paçoca, você poderia preparar amanhã, estou sentindo falta. E a paçoca retomou o seu curso.

Na véspera da minha partida – eu viajaria às seis horas da manhã – Aldenor declara:
-- Amanhã vou lhe deixar no aeroporto.
Recusei peremptoriamente:
-- Não vou permitir, vou chamar um taxi e...
-- Nada disso. Tomamos café com o bolo que a Maria fez...
-- Pior ainda. Não posso deixar que a Maria acorde a essa hora para fazer café, eu tomo no aeroporto.
A discussão não terminava, eu não conseguia persuadir o Aldenor. Eu me sentia realmente mal com o incômodo que estava causando e resolvi apelar para um argumento que causasse impacto. E saí com esta idiotice:
-- Escuta, você não pode me levar no aeroporto amanhã, sabe por que? Porque, para começar, vai chover durante a viagem, depois vai furar o pneu do carro e, se duvidar, você ainda é capaz de bater com o carro na volta.

O Aldenor não dirigia, só andava de taxi e, assim, na manhã seguinte o taxi estava na porta. Embarcamos em silêncio, eu ainda constrangido. A Maria nos acompanhava.
Chegamos, retiramos a bagagem e ficamos sob uma marquise, a dois metros do taxi, fazendo nossas despedidas. Depois do último abraço, quando já estava para sair, percebi que uma chuva fininha começava a cair.
Lembrei-me das bobagens que eu havia falado e não deixei por menos:
Está vendo, Aldenor, já começou a chover. Agora só falta furar o pneu...
--PPPPffffffff...fffff...ffff...fff...ff...f...!
Todos olharam para o carro a tempo de ver o pneu traseiro direito baixando...baixando...
Só me lembro da voz do motorista, perfilado ao longo de seu carro:
-- Que boca!
Encontrei o Aldenor quando veio ao Recife, duas semanas depois:
-- Você não sabe mas naquele dia, quando voltava do aeroporto, a chuva engrossou e um carro que vinha numa transversal derrapou, e quase nos acerta.

Sei que alguém poderá não acreditar nesta história. Não me ofendo por isso. Eu mesmo passei a vida me perguntando como foi que isso aconteceu. E se o escrevo é porque quero que fique registrado. Tenho medo de que um dia eu mesmo chegue a pensar que isso nunca aconteceu. Perguntem ao Aldenor.

Severino Mandacaru






02 dezembro 2010

Cada um com sua Lingua

... ou ... A Língua de cada um

- Como? Evadiste-te ?
- Evadir-me eu? Não sou parvo!
- Os assassinos deveriam levar alguma coisa que os identificassem...Uma papoila à botoeira!

Este é o diálogo que dá inicio a uma peça teatral de Sartre, na sua edição portuguesa, quero dizer, de Portugal. Imaginem a cena sendo representada no Brasil.

Gostaria de citar também um trecho da correspondência trocada entre Fidelino de Figueiredo (1), o grande filólogo português, e Sigismundo Spina, seu discípulo. Numa carta (2) ao Prof. Fidelino, que se encontrava em Lisboa e a quem chamava carinhosamente de “pai”, Spina relata um concerto ao qual assistiu no Teatro Municipal de São Paulo:
“O Prelúdio em Si Menor, de Bach, conquanto Stokowski metesse nele as garras, foi primorosamente executado.” ... ... “o pai se lembra, deve estar isso em “Lisboa de Ontem” - se não me engano - daquela nota de Garret- por ocasião da representação de “A Sobrinha do Marquês” ? Deviam ser os Castristas que, a certa altura, assuando a peça, ouviram a exclamação de Garret do alto do seu camarote:
“Pateiem, bárbaros!”
“Pois bem: foi o que me evocou o público que estava presente ao concerto:
“Quanta patada!”
No mesmo texto encontramos ainda: bolseiro, carota, canastro, extenderete, casal saloio. Não é divertido?

Estamos no Rio de Janeiro. Marques era um técnico em indústria têxtil que foi trazido de Portugal quando eu trabalhava na Fábrica Bangu daqueles tempos. Enquanto a fábrica lhe arranjava a um lugar para morar ele ficou hospedado na minha casa. Eu, ainda solteiro, havia contratado a Ivete, uma esbelta morena que era porta estandarte de um bloco local, para cuidar da casa.
Ivete limpava e arrumava tudo, preparava o almoço e o jantar, mas não dormia no emprego. E o Marques dizia:
- Oh, Ivete! Não deitaste cebolas na salada, pois não?
- Oh, Ivete, que fizeste das minhas piugas? Não as vi, esta manhã.
- Que raios preparaste para o jantar, oh! Ivete? É isto um sarrabulho, dizes . tu? Parece mais uma champana!
Ivete o olha espantada, cai na gargalhada, e dá de ombros.

Eu tomava cerveja regularmente, na hora do jantar. Sempre a oferecia ao Marques e ele sempre a recusava. Um dia perguntei-lhe:
- Marques, por que você não toma cerveja?
- Porque não gosto, pois. - a perfeita lógica lusitana deixou-me encabulado.
- Mas por que você não gosta? - insisti.
- Não me sabe bem. - Eu já me sentia derrotado. Tentei um último golpe:
- E por que não te sabe bem?
- Porque é muito amarga.
- Ah! - gritei triunfante. Se é por isso resolve-se facilmente.
- Oh! Ivete, corre lá embaixo e traz uma Malzbier para o Senhor Marques.
Sirvo-lhe a cerveja doce. Marques bebe um gole e eu esqueço o assunto. Ele termina o jantar, retira-se e eu permaneço sentado digerindo os meus pensamentos.
Ivete chega para tirar a mesa. Vê o copo de Marques ainda cheio e pergunta:
- Ué, o Seu Marques não gostou da cerveja?
- Não Ivete, pode retira-la.
E a Ivete, colocando as mãos na cintura, balançando aqueles quadris que Deus lhe deu:
- Eu, hein, é a primeira vez que eu vejo um português enjeitar preta!

Esta é a língua portuguesa. É a língua de todos nós. Ou é a língua de cada um?
Então vamos ver como falam os Severinos de Pernambuco e os Raimundos do Piauí. São apenas frases soltas, mas são suficientes:
“Se avexe, menino. Fica aí encangando grilo o tempo todo, vai chegar atrasado outra vez.”
“Ele é rico que só! Dá de um tudo pra mulher dele e ainda sobra pra rapariga.”
“Arrodeia o oitão que você vai encontrar a bica que está com o pitoco quebrado”
“Fique aqui com estas flores, que eu vou ter que sair. Quando os noivos passarem,  você avôa em cima deles.”
“Tenha vergonha, seu safado! Mulher de homem não se amulega!
“Você vem me falar de moral? Você, que passa a noite chumbregando com piniqueiras?

Não quero encerrar estes rabiscos sem dar mais um exemplo da linguagem do Nordeste. É a simples estrofe de uma canção gravada por Volta Seca, um capanga de Lampião:

“Se eu soubesse que eu chorando
Empato a tua viagem
Meus olhos eram dois rios
Que não te davam passagem”

Pois é, nem a praga da televisão que, como disse Marx, é o ópio do povo, conseguiu aproximar as três línguas. E eu aqui, queimando a mufla, pra descobrir se auto estima é junto ou separado, se tem hífen ou não, se hífen, alem de um “n” estranho tem acento ou não, se ambígua perdeu o trema, se....
Ora, francamente!

(1) Fidelino de Fgueirdo , grande filólogo português, professor de literatura, foi contratado em 1938 pela Faculdade de Letras da Universidade de São Paulo para modernizar os estudos superiores de literatura.

(2) “Cartas de Fidelino de Figueiredo e de Sigismundo Spina” - Ateliê Editorial: Oficina do Livro Rubens Borba de Moraes, 2009 – pg.58

EM TEMPO:
Escrevi o desabafo acima já faz tempo, embora só o tenha postado recentemente.
Encontrei agora, no jornal “Rascunho” de Novembro de 2010, na seção “Cartas”,
um outro desabafo, escrito por José Ignacio Coelho Mendes Neto:

“Nova Ortografia”
“Descobri recentemente o jornal Rascunho - - - . É o primeiro veículo de imprensa que vejo destacar sua recusa da reforma. Achei uma iniciativa sensacional, que deveria ter sido a norma entre todos os usuários da língua. Sou tradutor e revisor e repudio completamente a proposta de reforma ortográfica articulada por meia dúzia de indivíduos que se julgam no direito de alterar a língua apenas para venderem suas obras de atualização. É o maior crime contra a nossa cultura que já ocorreu em toda a história da língua portuguesa. Não só os motivos alegados são todos escusos, como a própria substância da reforma introduz cascatas de novos erros e incertezas. Um atentado como esse só poderia resultar da mentalidade burocrática que acha que a língua pode ser objeto de legislação. Em Portugal, que por razões incompreensíveis concordou com essa palhaçada, a reforma não foi adotada por nenhum órgão de comunicação, por nenhuma instituição de ensino, nem pública, nem privada, por nenhuma editora, nem pela população. Foi totalmente ignorada, como deveria ser. Pelo menos vejo que a sua publicação foge à postura acéfala e acrítica que domina o nosso país Estão de parabéns!"
  *José Ignacio Coelho Mendes Neto







28 novembro 2010

Delírio ou Fantasia ?

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“Assim como os fatos reais são
esquecidos alguns que nunca
existiram podem estar na
memória como se, de fato,
tivessem sido vividos”
Gabriel Garcia Marques



No hermético texto “Um tigre de Papel” , de Marina Colasanti, um escritor decide completar a decoração de uma sala rococó criando a figura de um tigre. Não quer fazê-lo com palavras mas apenas com seus significados. “Em vez de imitar o terrível miado” - escreve Marina - “faz tilintar os cristais acompanhando suas passadas”. O tigre vai tomando forma “incorporando-se à realidade antes inexistente”, obedecendo ao seu criador “com sedoso cuidado”. Até aqui o delírio se desenvolve com relativa sensatez. Mas, ao pretender levar sua criatura a desempenhar um simples ato cirsense, como subir com as quatro patas sobre um tamborete, o tigre se rebela, apossando-se de sua natureza. Com denodado furor estraçalha tudo, “rosnando por entre as letras”, desobedecendo vírgulas e parênteses, “espalhando no papel cacos de móveis e porcelanas”, dominando o texto. Sobre o qual, com uma patada, coloca o ponto final.

Sem dúvida, Marina Colasanti, com sua história fascinante e ao mesmo tempo blindada, cria uma grande intriga obrigando o leitor a muitas leituras. Cada leitura é uma nova história. Cada história, uma nova aventura.

Tem razão Umberto Eco quando diz: “O texto é uma máquina preguiçosa esperando que o leitor faça a sua parte”.

Eu fiz a minha parte.

Luigi

25 novembro 2010

Didelphis Marsupialis

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Era uma família feliz. Com três membros apenas não havia lugar para discussão. Estavam sempre de acordo. Quando chovia e quando fazia sol. Quando tinham o que comer e quando não.

O Pai, já avançado na idade, percebia que os tempos estavam mudando. O campo já não era mais o mesmo. Da numerosa prole só restava o Filho. A Mãe, dedicada matrona, depois de criar nove rebentos viu-os desaparecer um a um vitimados, suspeitava ela, pelas plantas venenosas que comiam no mato.

-- Pai, eu ontem entrei no telhado da Casa Grande. Eu desci e vi a cozinha. Estava cheia de banana e araçá !

-- Você tem que tomar cuidado, Filho. Se você escorregar e cair lá dentro, não encontrará mais a saída para voltar para casa e será apanhado.

-- Eu escutei o Dono falar que vai contratar mais gente para matar os insetos que são as pragas da lavoura.

-- Filho, não existem pragas na lavoura. O que existe na lavoura são insetos famintos. Tão famintos quanto nós, o Dono e sua família, e os seus empregados, e as onças brabas, os tamanduás e as formigas que eles comem, e os sabiás que cantam o dia inteiro, uma grande alegria que temos nesta fazenda.

Todos precisam ser saciados. E a Natureza pode fazer isso. Mas quando o Dono começa a matar os insetos ele está destruindo a própria Natureza. Porque os insetos que ele mata voltam como almas penadas e se penduram debaixo das folhas para chorar sua morte. E as folhas onde as almas penadas

se penduram murcham e depois secam. Você não viu o inhame, o milho e a macaxeira? Estão secando.

-- Mas, Pai, o Dono não sabe disso?

-- Nem todos sabem, Filho. E, como ele não pode ver as almas penadas, não entende o que está acontecendo. Então, bota mais veneno ainda porque acha que botou pouco. Só que as almas dos insetos não morrem porque são espíritos e não precisam de comer folhas para se alimentarem. Então o veneno fica na planta. E vai para a mesa de todos.

-- Se eu comer aquela banana eu morro?

-- Você não morrerá na hora mas irá enfraquecendo e apressará a sua morte. Nossa família já foi maior, você sabe. Seus irmãos mais novos morreram todos porque comeram desde cedo frutas contaminadas.

Passou o tempo. Certa manhã, quando se recolhiam para dormir, disse a mãe:

-- Pai, já é manhã tardia e o Filho ainda não voltou. Estou preocupada.

-- Durma tranqüila. Vou procurá-lo hoje à noite, quando sair à procura de comida.

Naquela noite o Pai saiu. Não foi à procura de alimento mas á procura do filho. Vagou a noite inteira. O olfato não era mais o mesmo de quando era jovem, mas conhecia bem as trilhas. Não encontrou rastro.

Ao alvorecer os raios de sol cobriam de ouro os cachos das bananeiras. Ouro maldito que minava a saúde dos próprios trabalhadores que o produziam.

O Pai caminhava cautelosamente por entre as touceiras. Sabia que, à luz do dia, arriscava-se a ser descoberto pelos trabalhadores. Já tarde, cansado, acomodou-se junto à uma pedra. Descansou. Sem mais esperanças, com lágrimas nos olhos , retomou a volta para casa.

A meio caminho o velho gambá encontrou o Filho deitado junto à uma bananeira, os olhos fechados e os maxilares entreabertos. Um filete de sangue escorria-lhe pelo canto da boca deixando na terra a marca do Homem.





18 novembro 2010

Ingressos com Lisboa, na Faísca

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O Lisboa era longilíneo. Sempre metido num impecável terno de linho branco, aparentava ser mais alto do que era de fato. Sua figura esguia era completada por um bigodinho fino que parecia desenhado a bico de pena e uma munganga malandramente sedutora. Sorria pouco. Seu olhar penetrava o interlocutor deixando-o imobilizado. Só então perguntava:
“Em que posso servi-la, senhora?
“Dois ingressos para “A Casa de Bernarda Alba”

A Faísca ficava na Rua da Palma, uma rua de comércio importante naquele Recife entrecortado de águas que faiscavam sob o luar como veios de prata.
Alí estava também a Vianna Leal, primeira loja a inaugurar uma escada rolante, prodigiosa invenção da engenharia, destinada à elevação do ser humano. Havia lá, ainda, a Mesbla, que fora filial da francesa Mestre & Blaget e agora era sua proprietária, num processo inverso de canibalismo, onde a cria devora o  criador.

O Recife daquela época era romântico. Apoiado na amurada do Cais José Mariano, eu esperava que o sol no poente incendiasse a Praça Joaquim Nabuco. Então, as sombras dos edifícios se projetavam sobre o rio Capibaribe, transformando-o numa imensa placa de chumbo.
A Faísca era um misto de chapelaria e tabacaria mas, oficialmente, era uma tabacaria. Que, entre charutos e chapéus, vendia, com exclusividade , os ingressos para os espetáculos do Teatro Santa Isabel. Em todos os anúncios comerciais e cartazes do Teatro Santa Isabel, fossem Concertos, Óperas, Peças de Teatro, você encontraria, em destaque:
“Ingressos com Lisboa, na Faísca”
Lisboa conhecia os freqüentadores habituais do Teatro Santa Isabel; reserva-lhes os lugares preferidos, alertava-os sobre temporadas especiais e sobre a presença de possíveis desafetos políticos em noite de estréia.

O cenário teatral, naquela época, era dominado pelo Teatro de Amadores de Pernambuco, fundado por Waldemar de Oliveira, que organizara um elenco baseado nos membros de sua família, a maioria deles, médicos de profissão.
Nas noites de ensaio o Teatro Santa Isabel exercia um fascínio todo especial, principalmente sobre aqueles que acreditavam na lenda do “louro do Santa Isabel”, um fantasma que aparecia para perturbar os atores quando não gostasse de alguma coisa. Nas coxias, maquinistas, carpinteiros e contra-regras não falavam de outra coisa, contaminando os atores que, assustados, procuravam, em vão, saber de detalhes.

E aqui entra a parte mais interessante destas recordações. No Recife havia também o “Teatro Adolescente”, formado por um grupo de jovens estudantes que se proclamava “alternativo”, o qual resolveu montar uma peça de um autor mais alternativo ainda: “A Grade Solene”, de Aldomar Conrado, que iniciava sua carreira de teatrólogo com uma idéia genial: transpor a tragédia grega para a realidade nordestina através de “Édipo Rei”, de Sófocles. Assim, numa casa de engenho cercada de árvores ressecadas pelo sol da caatinga, João é o Édipo que casa com sua própria mãe Ester (Jocasta) , é irmão e pai, ao mesmo tempo, dos seus filhos, e mata o pai, o negro Antonio Campos (Laio). A crítica teatral se dividiu entre arrasadora e fulminante. Contudo foi unânime em elogiar os cenários desenhados por Aloísio Magalhães, o grande designer, responsável pelos melhores logotipos produzidos no Brasil, entre eles os da Light, Banco do Brasil, e CCPL, que estão aí até hoje.

Fui convidado para fazer uma ponta, cuja fala tinha duas linhas. Eu representava um matuto fogoió que entrava no palco, esbaforido, precedido por um tropel de cavalos produzido por duas quengas de coco. Interrompendo o ator que estava falando,  eu declarava solenemente:
“Eles são bons rrrrrrealmente. Até que um dia o negro foi encontrado com uma faca enterrada no coração, logo depois da porteira” Dito isso, eu saia de fininho. Sentia-me ridículo. E nunca descobri porque eles eram bons rrrrealmente.
Na noite do ensaio geral a montagem dos cenários atrasou e os trabalhos se prolongaram pela madrugada. Sentados em círculo no meio do palco, sob a forte luz dos spots, os atores esperavam, conformados, conversando sobre as emoções da estréia.

A conversa acabou recaindo sobre o fantasma do Santa Isabel. Por muito tempo não se falou de outra coisa, até que, Aldomar Conrado, o mais sensível, determinou:
-- Olha pessoal!, vamos mudar de assunto que eu já estou ficando com medo.
E foi aí que me ocorreu a grande idéia. Yara Lins, atriz de corpo imponente, fazia o papel da suposta Jocasta  usando uma túnica branca que lhe chegava aos pés. Saí discretamente do lugar onde me encontrava  na roda, alcancei as coxias e recolhi a túnica da Jocasta. Contornei o corredor da platéia e subi até as galerias.

Por um momento contemplei, lá do alto, a cena deslumbrante do teatro vazio com os atores sentados no chão do palco fortemente iluminado. Subi até  último nivel da torrinha, como a chamavam, a cabeça quase batendo no teto. Com a penumbra envolvendo as galerias, quem olhasse do palco àquela distância, juraria que a figura branca flutuava no espaço, tentando ultrapassar o teto.
Abri os braços em forma de cruz e esperei que alguém me visse. Nada.
Comecei a mover os braços, primeiro lentamente, depois com maior rapidez e finalmente girando-os como as pás de um moinho a vento, ora num sentido, ora noutro. Nada. Fiquei  lamentando a falta de atenção daqueles colegas. Atores são seres distraídos, mesmo. Meus braços já estavam doendo. Descansei um pouco. Então abri novamente os braços em forma de cruz e gritei:

“Uh... Uh... Uh... UUUUUUUUUUUUU!”

Vi gente sair voando do centro do palco e aterrissar nas coxias. Vi gente se ajoelhar, encostar a cabeça no chão e tapá-la com as mãos. Dois ou três permaneceram quietos olhando as galerias, espalmaram a mão na testa apurando melhor a visão, e dispararam aos berros pelo fundo do palco.

Voltei, mais assustado do que eles. Aldomar, a cabeça apoiada num travesseiro, estava sendo massageado nas têmporas por Yara Lins, com cinco copos de água em volta, à espera de que ele conseguisse beber. Apontando um dedo para o meu nariz, balbuciou, gaguejante e trêmulo:
Seu galego safado, esta você me paga!

“Ingressos com Lisboa, na Faísca”.

                                                                                                    Luigi Spreafico



05 novembro 2010

Pousada Paraíso

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O conceito de pousada que serve de base para esta crônica é real e foi desenvolvido por Flamínio Spreafico, que o aplicou quando implantou a “Pousada do Cônego”, no bairro de mesmo nome, em Nova Friburgo. Ali ficamos em atividade por mais de quatro anos, numa experiência das mais gratificantes. O que segue é um resumo do texto que Flamínio redigiu para a apresentação da pousada no site que havia sido criado para divulgá-la. Se atraiu poucos clientes, não importa. Porque o convívio com aqueles que lá foram, valeu a pena.

“A vida nas grandes cidades está levando o ser humano a um desgaste físico e emocional sem precedentes. A insalubridade pela contaminação do ar, o barulho do trânsito, as sirenes e alarmes de todo o tipo, a dependência da televisão, com seu noticiário estressante , ou novelas lacrimogêneas e programas deformadores de comportamento, a alimentação baseada em produtos refinados repletos de gorduras saturadas, conservantes e aditivos químicos de toda a espécie, são apenas alguns dos fatores que estão afetando a qualidade de nossas vidas e, pior, a vida de nossos filhos. Para fugir a esses efeitos muitas pessoas procuram sair da cidade grande, nos fins de semana, em busca de um hotel fazenda para descansar e distrair a criançada.
Para isso criamos a “Pousada do Cônego”

Você já visualizou um lindo lugar com vaquinhas pastando, porquinhos fazendo honk... honk... crianças alegres e ruidosas jogando totó, longos passeios de charrete, lago com pedalinho, quadra poliesportiva, sala de jogos e um enorme salão para o buffet self-service com 54 tipos de comida. Pois nós não temos nada disso. Porque é de um lugar assim que você volta ainda mais estressado.
Ao criar a “Pousada do Cônego”, no verdejante vale que antecede o pico da Caledônia, palco de ricas experiências, queremos lhe proporcionar um lugar que lhe permita retomar o contato com a natureza, reeducar seus hábitos alimentares e refazer as energias físicas e mentais para a sua volta ao trabalho.

Este é um lugar diferente. Para começar, você não precisa acordar às seis horas da manhã para assistir a ordenha das vacas. Nós não temos vacas. Você pode acordar à hora que quiser, tomar café à hora que quiser e ficar na cama ouvindo o canto dos pássaros.
Nós não temos charrete, nem passeio a cavalo. Nós preferimos caminhar com nossas próprias pernas para exercitar o corpo e a mente.
Nós não temos quadra poliesportiva. Nós pisamos na grama descalços para restaurar o contato com a terra perdido há anos, colhemos ervas aromáticas em nossa horta, conversamos e rimos o tempo todo, um riso espontâneo e sadio, resgatando um relacionamento humano já esquecido.
Nós não temos salão de jogos com sinuca, totó e ping-pong para você passar o tempo depois do almoço. Depois do almoço nós nos reunimos para um bate papo agradável, com troca de experiências ou simplesmente tiramos um bom e restaurador cochilo embalados pelo canto dos sabiás.
Nós não temos self service com 54 tipos de comida ao qual você chega, disciplinadamente, em fila, torcendo para que as bandejas não se esgotem antes de você chegar lá e, lá chegando, comer o máximo que pode, estragando sua saúde, só para justificar o seu investimento. Nós lhe oferecemos um cardápio perfeitamente ajustado às suas necessidades, servido sobre toalhas brancas de puro algodão e com luz abundante para que você possa ver e degustar com tranqüilidade o que está comendo.
Nós não temos shows de música ao vivo. Para você ter uma idéia nós não temos nem televisão nos quartos! Depois do jantar nós nos sentamos em volta da lareira para degustar um bom vinho ou projetamos um filme com um tema instigante, que será sucedido por um debate, visando melhorar o nosso comportamento diante dos conflitos quotidianos.
Aqui, sim, você vai descansar de verdade. Bom fim de semana para todos.”

Luigi Spreafico

29 outubro 2010

Meu Sítio, Meu Paraíso

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“A pessoa que termina de ler um  livro 
 não é a mesma que o iniciou”  
 (ouvi dizer)

Foi numa livraria de aeroporto, graças a um providencial atraso de vôo, que encontrei o livro que iria mudar minha vida. Não era um livro de autoajuda, daqueles que tentam lhe convencer que você está deprimido, que a depressão é uma doença gerada pelo estresse e que pra você não se estressar você tem que ler aquele livro direitinho até o fim e que deve ler também os anteriores, e...
que.... raios...! Ao contrário, este livro despertou em mim energias adormecidas, reconciliou-me com a humanidade, levou-me a descobrir a harmonia que existe na natureza, o equilíbrio do mundo animal em sua luta pela preservação da espécie, com sua linda cadeia alimentar e, benção do céu, o fascínio de uma noite estrelada sem a presença da luz elétrica, marca indelével da presença do homem.

Li-o de um fôlego só durante a viagem, e quando desembarquei no longínquo Manaus – eu havia embarcado no também longínquo Porto Alegre – eu já levava nos miolos o projeto do que seria a minha vida dali para a frente.
“Meu Sítio, Meu Paraíso” !  O título do livro me fascinou. O nome do autor fugiu-me da memória. Infelizmente, porque gostaria de saber o que ele anda fazendo agora. Nesse livro ele descreve como implantou seu sítio num meio inóspito, a sua luta contra todas as adversidades superando queimadas e vencendo formigas, atravessando secas e enchentes. Ele conta, com detalhes técnicos que viriam a ser de grande utilidade para mim, como efetuou o plantio de arvores, a construção de estábulos, o preparo do solo, a formação de um lago com sua cachoeirinha. Contagiou-me. A cada etapa da leitura eu vibrava e torcia por ele. O calor com que ele descreve a cena da inauguração do lago que acabara de contruir, com champanhe e tudo, ao lado dos filhos e da esposa orgulhosa, então, encheu-me de lágrimas. Eu entendia isso. Era o seu sítio. Era o seu Paraíso!

Tratei de desincumbir-me o mais rápido possível do meu trabalho em Manaus e voltei correndo, quero dizer, voando.
Eu também daria aos meus filhos, ainda pequenos, e à minha esposa, ainda orgulhosa, essa alegria. Eu daria às crianças o seu cavalinho e, à esposa, as galinhas de que precisava para fazer seus ovos a-la-cock sem hormônios nem antibióticos. E, para mim, isto sim, concederia a glória de sentar-me britanicamente no fim das tardes , à sombra de um flamboyant, com meu gin tonic na mão, acompanhado de finíssimos canapés de pepino.

Saí à procura de um terreno. Encontrei o lugar, não muito distante da cidade. A topografia era perfeita: uma grande área plana, duas colinas em forma de meia laranja, uma pequena casa de madeira e, o mais importante, um riacho suficientemente caudaloso que permitisse a formação de um lago, ponto nuclear para unir a atividade agro-pecuária ao lazer. Com ele eu irrigaria as culturas, criaria peixes e, por que não, colocaria um barquinho para divertir as crianças.

Escolhi o ponto ideal para a barragem. Feitos os cálculos encomendei os materiais. Tudo pronto para começar a obra. Contratar um pedreiro? Não é necessário, tenho energias de sobra. Basta-me um ajudante que prepare as ferragens para o concreto e o Édio, meu recém contratado e já fiel caseiro que, apesar de cego de um olho, enxerga mais do que o chefe da repartição onde trabalho.

Mãos à obra e em pouco mais de seis meses a barragem estava pronta. O lago começou a encher. Quanta alegria! Acompanhar hora a hora, dia a dia, aquele processo lento da subida das águas, torcer para que caísse muita chuva, apostar com os filhos quem acertaria o nível da água no fim de tantos ou quantos dias, pesquisar se havia algum vazamento na barragem, descobrir se alguém estava desviando água rio acima, só quem viveu isso pode entender a satisfação que estas coisas proporcionam.

Gastei um pouco mais do que havia calculado, isto é , um pouco mais do que o dobro do que havia calculado, é verdade, mas o que é isso em comparação com o privilégio de contemplar aquele espelho d’água nos fins de tarde com meu copo de gin tonic na mão? Despesas? Ora, despesas...
Era tempo de preparar o bosque e o pomar. Espécies nativas: jacarandás, ipês, sibipirunas, aroeiras. E eucaliptos, muitos eucaliptos, aquela árvore milagrosa que veio da Austrália tão distante, indispensável para fabricar o carvão do churrasco. Preparei as sementeiras para os eucaliptos, e busquei nos hortos florestais as mudas para as demais árvores e fruteiras.

Das sementes nem todas germinaram e, das mudas, várias morreram, fosse pelos traumas sofridos durante a viagem, fosse pelo tempo que tiveram de esperar até serem plantadas. Claro, tudo tem sua vez. Mas consegui aproveitar quase um terço das plantas, o que não me deixou desanimado.

Chegou a vez da criação. Primeiro as galinhas. Disso cuidou o Édio que, com seu olho clínico, - mesmo sendo um só - sabia até quais eram as galinhas que poriam ovo naquele dia. Depois vieram as abelhas e disso eu mesmo cuidei, pois não podia me arriscar a perder o caseiro. Coisa linda, as abelhas! Que exemplo de laboriosidade, com suas regras espartanas de consumo e seus padrões éticos de convívio! As muitas picadas que eu levava só faziam retemperar a minha disposição para o trabalho, ao qual eu me entregava com fúria redobrada.

Por fim vieram as cabras, introduzidas graças ao conselho de um diligente vizinho o qual me garantiu que elas manteriam o sítio roçado e assim eu economizaria na mão de obra para as capinas. Ele estava certo porque a partir dalí nunca mais vingou uma folha de grama naquela terra. As cabras roçavam também a parte inferior das fruteiras, ou seja, até onde alcançava o seu incrivelmente elástico pescoço. Não sobrava fruta. Assim, as laranjas, goiabas, carambolas e jabuticabas disponíveis passaram a ser colhidas com a ajuda de uma escada, o que aumentava ainda mais o nosso entretenimento. E eu achava engraçada a habilidade com que aquelas rústicas criaturas cuidavam do seu próprio sustento. E também pouco me incomodava se elas, com admirável virtuosismo, burlassem a cerca da horta para triturar couves e repolhos, pois isso me dava a oportunidade de estudar e desenvolver cercas cada vez mais seguras.

“Meu Sítio, Meu Paraíso”! Como eram agradáveis aquelas noites insones em que eu me debruçava sobre as plantas topográficas esquadrinhando o melhor percurso para abrir trilhas, localizar possíveis ninhos de cobras, esse ingênuo animal tão vilipendiado pelo homem, que nunca ataca ninguém a não ser que seja ameaçado ou então esteja faminto, coisa freqüente na aridez daquela terra sáfara e maninha. E a emoção que eu vivi ao lado dos meus filhos ainda pequenos e da minha esposa ainda orgulhosa, quando voltamos do sepultamento da nossa cadelinha Chispa, atacada por um enxame de abelhas africanas que famintas, coitadas, invadiram o nosso apiário, na maior pilhagem da História depois do Rapto das Sabinas. Ninguém conseguiu conter o pranto pelo resto da noite. Foi aí que eu compreendi como é frágil a alma da gente.

“Meu Sítio, Meu Paraíso” !  Lamento, mais uma vez, ter esquecido o nome do autor. Gostaria de agradecer-lhe pela felicidade que me proporcionou com a leitura do seu livro durante as quatro horas que durou aquela viagem e que gerou todos estes anos de fortes emoções. Gostaria de agradecer-lhe por tudo o que aprendi: vencer dificuldades, superar obstáculos, afastar o desânimo e tolerar a vingança da natureza quando ela é desrespeitada, como quando, por exemplo, fiquei atolado na estrada cheia de lama e insisti em atravessar assim mesmo, só porque eu tinha que voltar ao trabalho no dia seguinte, e fui obrigado a chamar dois tratores para me tirarem do atoleiro, o que, por sua vez, me custou quase o preço do carro atolado.

Bem, o tempo foi consolidando o meu amor por aquela terra que me consumia as entranhas. A certa altura as crianças começaram a mostrar enfado no seu contato com a natureza. O orgulho da esposa foi se transformando em comiseração. Eu ainda continuei com minhas tardes contemplativas à beira do lago mas fui substituindo, aos poucos, o gin importado por um gin paraguaio, depois por um whisky nacional e, finalmente, por uma caipirinha feita com a cachaça Jacutinga, a preferida de todos os caseiros que conheci na região, esta sim, pelo menos, uma bebida autêntica. Minha esposa, de tanto comer ovos a-la-cock sem hormônios nem antibióticos tomou tal enjôo por aquele alimento mágico que passou a distribuir os galináceos gratuitamente nos terreiros de candomblé.

Animado pelas caipirinhas e pelas lembranças do livro inspirador, responsável por tantas aventuras e momentos de enlevo, tomei a decisão de também escrever, não um livro, que a tanto não me arvoro, mas esta modesta crônica que, a partir de agora,  eu quero que se chame:  "Meu Sítio, Meu Prejuízo".

Luigi Spreafico

20 outubro 2010

MADONNA "RIDES AGAIN"

...

“Madonna arrecadou US$ 12 bilhões no Brasil”

Chamada na 1ª página do “O Globo” de terça feira de Carnaval, 16 de Fevereiro de 2010.

Quem não se lembra de “Madonna está no Rio, Madonna Mia!”, aquela da orgia gastronômica entre sushis e sashimis? Pois é, ela voltou a atacar no Rio de Janeiro enquanto foliões desavisados se esbaldavam em suas fantasias baratas e eram encarceirados por mijarem na rua. Com uma simples casquinha daquela soma Madonna poderia ter distribuído pela cidade algumas centenas de mictórios, contratados às pressas. As “Organizações Tabajara” estão aí para isso.

A notícia interna, na página 10 do jornal, esclarece:
“ A sacolinha pop – Madonna retornou ontem aos EUA depois de arrecadar com brasileiros, de novembro para cá, exatos US$ 12 milhões para sua ONG, Sucess (sic) for Kids. Entre os doadores, estão Eike Batista, com US$ 7 milhões, o banqueiro Luís Octávio Índio da Costa e a AmBev, ambos com US$ 1 milhão.”

Epa!
Mil vezes menos! Cadê o resto?
Entre a página 1 e a página 10 do jornal sumiram, exatamente ,
US$ 11.988.000.000,00!
Esqueçamos o erro aritmético em que O Globo se meteu, que é problema dos seus revisores. A notícia prossegue com detalhes riquíssimos - pudera, com essa dinheirama toda - sobre a distribuição da farofa:
“No caso de Eike, a ONG recebeu US$ 500 mil cash. Os outros US$ 6,5 milhões vão para um fundo de saques controlados. O acordo com a AmBev tem uma cláusula negociada por Sérgio Cabral, que trouxe a cantora para o Carnaval: a ONG terá de aplicar o dinheiro no Rio.”

Arrisco-me a explicar que os 500 mil cash equivalem ao “pocket money”.que os executivos das grandes empresas recebem para gastar com “peanuts”. Quanto aos 6.5 mi sabemos que serão aplicados no Rio através de “um fundo com saques controlados”. Que os saques serão controlados não existe a menor dúvida. Nenhum caixa de banco deixa sair um tostão que não seja controlado.
Quanto ao seu destino, não é da nossa conta.

Se o dinheiro é do Eike, e ele o deu pra Madonna ou sua ONG, vá lá, ninguém tem o direito de perguntar o que fizeram com ele. Mas, então, por que o governador se meteu e obrigou a pobre Madonna a aplicá-lo no Rio? Vamos apostar onde a Madonna vai aplicar US$ 6,5 milhões no Rio?
Alguma sugestões: bolsa de valores; exploração de petróleo; produção de alface orgânica; implantação de escolas de esgrima para crianças faveladas; instalação de mictórios grátis, com ar condicionado e conexão de internet; construção de uma roda gigante, muito gigante, no topo do Pão de Açúcar para que o Rio possa ser contemplado pelas crianças pobres da costa da África, suas protegidas.
Mijões do Rio, rebelai-vos! Fazei um” up grade” na vossa transgressão para que seja realmente digna de cadeia. Além do mais li no mesmo jornal que um mijão foi humilhado porque uma moça viu o seu bilau e saiu gritando pra todo o mundo que era pequeno, no que, todos vaiaram. Isso não se faz. Já não bastava a prisão?
Como dizia minha avó: Oh! têmpora, Oh! mores.


Severino Mandacaru

19 outubro 2010

A VIDA POR DOIS VINTÉNS

A operação de resgate dos trabalhadores que ficaram soterrados numa mina do Chile está chegando ao fim, felizmente com êxito. É comovente. Trinta e três vidas estavam a 700 metros de profundidade, e o cenário montado para recebê-las na superfície da terra foi, merecidamente, proporcional. A imprensa do mundo inteiro está lá. O presidente do Chile acompanhou, dia após dia, a operação de salvamento e também está lá para receber os mineiros e parabenizar a todos: salvadores e salvados. O presidente da Bolívia também compareceu para receber o único representante do seu país naquele infausto evento. A engenhoca montada para a operação, que levou apenas (!) 68 dias para alcançar o seu objetivo, funcionou a contento, embora a roldana que guia o cabo de tração da cápsula salvadora possa causar arrepios em qualquer estudante de engenharia mecânica. Cantou-se o hino nacional à exaustão. Estão salvos! Glória a todos!

Agora eu pergunto: O que é que leva o ser humano a confinar o seu semelhante
a 700 metros de profundidade sem a menor segurança de retorno, só para extrair de lá alguns trocados ?


14 outubro 2010

Madrugada Insólita

Acordei. Eram quatro horas da manhã. Esfreguei os olhos com preguiça. Fiquei sentado na cama, de olhos fechados, e esperei até lembrar onde estava. Levantei-me, enfiei os pés nos chinelos que me acompanham há tantos anos e caminhei até a cozinha. Bebi um copo d’água. Fiz café. Sentei-me na cadeira dura enquanto aspirava o aroma suave do arábica. Fechei os olhos. Perdi a noção do tempo. Tenho que devolver um livro que me emprestaram, não posso esquecer. Preciso alisar o chão de terra onde ponho comida para os passarinhos. Está cheio de rachaduras, os grãos de alpiste afundam, e as pobres aves não conseguem alcançá-los. O bambu que cortei há meses já está seco. Tenho que prepará-lo antes que as chuvas comecem. Já é quase Outubro. Hoje vou fazer o primeiro corte na rúcula que plantei há um mês de uma semente que não poderia ter nascido. Sua validade venceu em Setembro de 2004. Mas nasceu, porque ignorei o seu prazo de validade. Eu também nasci, mas com prazo de validade não revelado. Vou fazer como fiz com a semente. Ignorar o prazo e plantar-me a cada dia. Hoje é 16 de Setembro de 2010. Oitenta anos atrás eu vi a luz pela primeira vez, à beira de um lago, no meio de uma montanha. Assim me disseram. Oitenta! Um número formado por três zeros. Um grande e dois pequeninos.

07 outubro 2010

DIEGO FUENZALIDA, Esquire


Diego Fuenzalida,  Esquire

Diego era argentino, radicado no Brasil há quatro anos. Radicado é um modo de dizer porque as raízes dele não passavam de uma nesga de musgo ao redor dos pés, o que não daria para sustentar nem um pé de salsinha. Mas ele vivia aqui e apesar desse tempo todo convivendo com os nativos, não conseguiu aprender uma só palavra de português, não se sabe se por incapacidade ou por indústria.

Diego tinha tanto medo de ser considerado descendente de italianos, como é a quarta parte da população argentina, que fez juntar ao seu nome o tratamento usado pela nobreza britânica: “Esquire”. Nobre ou não, soube-se, mais tarde que, em Buenos Aires, ele era chamado simplesmente de “El Pelotudo”.

Trabalhávamos na Fábrica Bangu, a velha e então famosa fábrica de tecidos que fazia desfiles de moda no Rio e em Paris, onde apresentava seus figurinos de puro algodão, desenhados pelos melhores estilistas , e seu organdi, único no mundo. Ser técnico da Bangu, naquela época, era quase como ser artista da Globo hoje. Era nesse ambiente refinado, cruzando com lindas modelos, que Diego desfilava seu charme, maculado, era inevitável, pelo seu afetado castelhano itálico. Por isso mesmo, e apesar do Esquire que lhe chegava em toda a correspondência, ele não escapou de ficar conhecido como “Diego Papas Fritas”.
Além dos famosos tecidos, a Bangu produzia também jogos de futebol. Tinha criado o seu próprio time, sempre na primeira divisão. Tinha, também, seu próprio estádio.

À exemplo das universidades americanas, onde seus ídolos esportivos não precisam estudar para serem promovidos de ano, a Bangu dispensava do trabalho os seus craques que, claro, constavam da folha de pagamento. E foi aí que Jorge deu sua primeira mancada ou, na sua própria língua, “metió la pata”.

Três horas depois de iniciado o turno da manhã, dois fiandeiros se apresentam com um bilhetinho na mão para que ele assinasse a permissão de saída.

-- Que? Estais borrachos, vos?
-- É que nós precisamos sair para treinar. Vai ter jogo no sábado.
-- Que? Para jugar a la pelota? Coños! Que se vuelvam a su trabajo y no me vengan mas con guevadas!”

E assim os dois foram despachados de volta ao trabalho, em nome da ordem, da disciplina, da dignidade, das boas práticas administrativas, tudo de acordo com o que o estudioso Diego havia aprendido na escola. Cinco minutos depois o telefone toca. Era o diretor.

--Escuta aqui, seu portenho maluco! Você quer acabar com a minha fábrica?

Em pleno campeonato? Solta logo esses dois e apresente-se na minha sala.

A habilidade do Diego para lidar com homens e máquinas nunca foi reconhecida na Bangu. Suas verdadeiras habilidades se revelariam pouco tempo depois; a verdadeira vocação de Diego Papas Fritas, Esquire era lidar com cifrões.

Quando resolveu visitar a família em Buenos Aires, Diego fez as contas. As passagens aéreas naquela época eram caras, se comparadas aos outros meios de transporte. Assim, descobriu que fazendo o trecho Rio – São Paulo de ônibus, ele economizaria bastante. Portanto comprou a passagem São Paulo-Buenos Aires, ida e volta. Faria o resto de ônibus, embora isto lhe custasse dois dias de tempo a mais na viagem.

A ida foi normal. Na volta, o aeroporto de São Paulo estava sem teto e o avião passou direto, aterrissando no Rio. Qualquer pessoa que estivesse no lugar do Diego teria ficado feliz; ganhara uma passagem São Paulo-Rio, além do tempo correspondente à viagem de ônibus. Mas não o Diego. Começou a esbravejar ainda dentro do avião. Quando desceu, a notícia da sua fúria já havia chegado aos comissários de terra.


-- Mijones de dólares me hacen perder estos cabrones. Yo tenía que estar em San Pablo, tengo contractos para firmar. Que voy a hacer, por Dios!

-- Senhor, por favor, acalme-se. Vamos acomodá-lo em um avião que sairá dentro de uma hora, o tempo já está melhorando.

Apanhado de surpresa, Jorge não se intimidou:

-- Como? En estas condiciones? Que chiflado, este! Estoy aturdido, completamente traumatizado, no puedo viajar en estas condiciones, ustedes no tienen alma, no, no. Me pongan en um hotel, ustedes tendran por aí un Hilton qualquiera . Que? Hotel Nuevo Mundo, no, no, estás loco, por favor, yo no soy ningun epiltrafa, y a lo demás... como? Copacabana Palace? Si, esse está bien.”

E o Diego comeu e bebeu, e deitou-se nos finos lençóis de linho do Copacabana Palace às custas da Panair do Brasil e engrossou, com suas mijadas, o fluxo da cloaca massima do Rio de janeiro.

Quando Diego me contou essa história eu imaginei que, nesse ponto, ele se considerasse realizado e feliz. Nem a mente mais engenhosa conseguiria encontrar uma forma de extrair mais leite daquela pedra. Eu ainda não o conhecia. Na manhã seguinte, Diego Papas Fritas, Esquire, apresenta-se no balcão da Panair. É recebido com uma lista de vôos para que programasse a sua volta a São Paulo.

-- Che, mirà, he resolvido mis problemas por cable, anoche. Perdi um montón de plata y ahora tengo que quedar-me acá . Ustedes me emiten un boleto Rio- San Pablo com fecha abierta y todo queda arreglado. Como? Hablar com el jefe? Si, como no! Si, si está bien, muchas gracias, saludos a todos.

E Diego saiu com um bilhete em aberto, acrescentando mais alguns trocados ao seu patrimônio, quando nem Belzebu imaginaria que isso fosse possível.

Eu sei que o que vou dizer agora não tem nada a ver com o meu amigo Diego, mas não quero perder a oportunidade: sempre achei que o Brasil deveria invadir a Argentina para seqüestrar o queijo parmesão deles. É muito melhor do que o nosso. E mais barato.


Luigi Spreafico

22 setembro 2010

DE APLAUSOS E DE VAIAS



O aplauso do blogueiro é o comentário.
Num teatro onde se representa qualquer coisa a platéia costuma se manifestar aplaudindo, quando gosta, ou vaiando, quando não gosta, o que vê. Tem sido assim desde a tragédia grega até os cantadores do Nordeste. Em muitos casos, o público alcança um grau tal de entusiasmo que aplaude em cena aberta, obrigando os atores a suspender a representação, mantendo-se congelados em suas posições. Na ópera isto é muito comum quando o tenor ou a soprano terminam uma ária mais difícil. Dependendo da intensidade dos aplausos e dos gritos de bis...bis... o cantor retribui com uma repetição da ária.

Mas nem sempre há aplausos. Também há desaprovações. Muitos tenores foram vaiados em cena aberta por desafinarem e disto não escapou nem o grande Pavarotti num dia em que sua goela o traiu, no Scala de Milão.

Os aplausos e as vaias são, para os atores, a bússola que os orienta e os incentiva a prosseguir – ou não – no seu trabalho. Pessoalmente sou contra os apupos e vaias. Pode-se deixar de aplaudir algo de que não se goste mas vaiá-lo é uma violência que desonra o ser humano..

Para o blogueiro que transpira na labuta quotidiana extraindo das entranhas palavras e pensamentos na esperança de levar ao seu leitor um pouco de qualquer coisa que o faça pensar, rir, chorar, sonhar, dormir, xingar, lamentar ou seja lá o que for, merece também um aplauso, uma desaprovação, ou seja lá o que for.

Porque o aplauso do blogueiro é o comentário

Mas não se assuste caro colega se os comentários que você receber nem sempre lhe forem favoráveis Vou mostrar-lhe o que Millor Fernandes, o grande Millor, recebeu quando estreou a peça “Um Elefante no Caos”, em Julho de 1960:

1 - “Um Elefante no Caos”, simplesmente não é teatro” - Van Jafa, no Correio . da Mãnhã

2 – “Millor é um individualista pré marxista, preso a um sistema ético-familiar.” – . Paulo Francis, no Diário de Notícias.

3 – “O enredo nada tem de interessante.” – Brício de Abreu, no Diário da Noite.

4 – “Conseguiu Millor Fernandes uma coisa dificílima; transportou para o palco . sua seção humorística de “O Cruzeiro”. – Zora Seljan, O Globo

Acho, também, que você não deve se amofinar por ter escrito, alguma vez, alguma bobagem. Grandes escritores já escreveram grandes bobagens. Console-se, por exemplo, com esta pérola escrita pelo admirável Oscar Wilde:

“Não gosto dos atuais livros de memórias. Em geral são escritos por pessoas que esqueceram completamente tudo o que viveram ou então não fizeram nada digno de lembrança”

Quanto a mim, estou orgulhoso. Soltei as amarras. Comecei minha carreira de crítico descendo o sarrafo no Oscar Wilde.
Finalmente, considerando que nos dias de hoje todo mundo anda extremamente ocupado, resolvi apresentar uma coleção de comentários pré-fabricados que facilitarão o leitor, anônimo ou não, a fazer sua crítica. Não precisa nem ler a matéria. Muitos deles se ajustam a qualquer tema. È rápido. Basta clicar: Copiar / Colar.

Estão separados em duas categorias: na primeira estão comentários já usados, extraídos de blogs existentes, portanto autênticos. Destes, alguns foram recondicionados ou receberam pequenos reparos, outros apenas retoques de pintura.

A segunda categoria apresenta comentários novinhos em folha – para quem não gosta de mercadoria usada.

COMENTÁRIOS SEMI-NOVOS

1 - Será que crônica tem a ver com a indignação do cronista?

2 - Gostei do seu texto!

3 - Seu texto está muito bem escrito mas não me parece uma crônica.

4 - Desculpe, senhor cronista, mas o senhor é um chato.

5 - Somente, do meio para o fim é que achei que estava lendo uma crônica.

6 - Bem escrito mas completamente fora do tema.

7 - Parece que tem o dom de descrever o universal, mas ficou confuso.

8 - Estava gostando muito no início mas quando comecei a ver a série de . . . palavras terminadas em “inhos e inhas” cortou o meu baratinho.

COMENTÁRIOS NOVOS EM FOLHA

1 – Sua crônica é chocha mas bem escrita.

2 – Li, pacientemente, a sua crônica.

3 – Parabéns! Tente novamente.

4 – Caro cronista: você diz que é um incompreendido. Já tentou escrever para os internos de um manicômio?

5 – Gostei da sua crônica. Ela me faz rir.

6 – Nunca li um parvo. Abri uma exceção para você.

7 – Escrevi um comentário tão maluco quanto a sua crônica. Por isso não ouso publicá-lo.

8 – Linda, a sua crônica, lembra-me o quadro “Guernica”, de Picasso..

9 – Sua crônica está saborosa. Vou comê-la com meus amigos, acompanhada de muita cerveja e batatas fritas.

10 – Absit injuria verbis.

11 – Fui induzido a ler os seus Hái- Kais. Comparo o suplício a que fui submetido com o de uma galinha condenada a bicar micro-partículas de fubá em lugar de grãos de milho.

16 setembro 2010

BEM ESTÁ O QUE BEM ACABA

Do alto da Vila Maria até a margem do rio Tietê caminhava-se meia hora. Alcançava-se, pela margem direita, à montante do rio, um lugar onde se formava uma pequena enseada. A areia acumulada pela correnteza na curva do rio sugeria uma pequena praia, abruptamente interrompida por um barranco com cerca dois metros de altura. Nesse ponto o rio era profundo e ali fazíamos nossos mergulhos e “saltos ornamentais” dos quais saíamos, freqüentemente, com os costados em brasa. De vez em quando escapávamos todos de casa - éramos uma patota de cerca 15 moleques entre os 8 e os 14 anos - e íamos tomar banho no rio sem avisarmos nossas mães, obviamente. Não é preciso dizer que tomávamos banho completamente pelados. Em ambas as margens do rio o matagal era denso. Deixávamos a nossa roupa amufumbada no meio das moitas. Cada um sabia exatamente qual era sua posição. Um dia foi muito especial no nosso balneário. Fizemos apostas para ver quem teria a coragem de atravessar o rio, sabendo que a volta também teria que ser a nado. Ninguém se atreveu. Eu andava aí pelos onze anos. Não queria fazer feio. Demorei para tomar a decisão. Era preciso avaliar a força da correnteza para calcular onde eu iria parar na outra margem e, a partir daí, escolher o ponto de saída. Atirei-me. Alcancei a outra margem no lugar previsto, mas não esperava encontrar uma macega de juncos que me dificultava o acesso à terra firme. Faltava menos de dois metros e eu não conseguia me desembaraçar. O pavor, talvez, da morte, deu-me alento e, num impulso desesperado, alcancei o solo. Exausto, ofegante, enquanto descansava, fiquei observando aquela correnteza que poderia ter levado consigo o meu triunfo. Fiquei com medo de voltar. O tempo passava e eu sonhava. E o tempo passava. Não havia saída. A volta ao bairro pela outra margem era impensável. Fiquei olhando os garotos do outro lado, esperando deles uma palavra de apoio. Imaginei que o meu heroísmo desencadearia gestos de solidariedade, gritos de incentivo, apelo aos santos, qualquer sinal de vida. Estavam todos entretidos em seus mergulhos, rindo, gritando e muitos retornando, sem olhar para trás. Nada. Ninguém sequer me notava. Abandonado! Lancei-me na água com toda a fúria e consegui alcançar a outra margem no centro exato da enseada. Quando cheguei não havia mais ninguém na pequena praia. Ainda vi, pelas costas, o último menino enveredando pela trilha que conduzia ao centro do bairro. Contemplei, triunfante, o rio Tietê, com um misto de medo, orgulho e imensa alegria. Fui em busca da minha roupa. Encontrei o lugar vazio. Entrei em desespero. Não podia atravessar o bairro nu em pelo. Eu nada podia fazer a não ser chorar. E foi entre soluços que consegui divisar a silhueta de um dos meninos, meu vizinho de casa, que se aproximava. Trazia umas cartas de baralho na mão. - Luis, estas cartas não são tuas? As que a gente usa pra jogar? Eu encontrei espalhadas no caminho. E, vendo-me nu: - Roubaram a tua roupa, è ? Foi por isso que jogaram as cartas fora! - Toninho, que sorte que você voltou! Corre lá em casa e pede a minha mãe pra mandar uma roupa. O Toninho se aproximou da casa cheio de precauções e encontrou minha mãe no portão da rua, aflita, olhando o infinito, à espera do filho. Aproxima-se, hesitante, e gagueja: - Dona Terezinha... Dona Terezinha... né... o Luis... né... foi tomar banho no rio...né... Dona Terezinha desabou no chão de terra. Toninho deixou minha mãe entregue aos cuidados do meu irmão mais velho, sob os impropérios deste, e trouxe-me as roupas que me aqueceram a alma. E eu atravessei o bairro, altivo e exultante, sem me dar conta do desespero que havia criado em casa. Quando cheguei encontrei minha mãe sentada na sua cadeira, imóvel, seus grandes olhos negros fixos no espaço. Sem desviar o olhar ou dizer uma só palavra puxou-me pelos ombros e apertou-me com força contra seu peito. E eu senti a dor do amor. Uma dor que eu sinto até hoje. Luigi Spreafico

04 setembro 2010

SEVERINO MANDACARU



















CARUARU - Pernambuco








SEVERINO MANDACARU

por Luigi Spreafico

Eu canto eu faço verso
Eu canto até mi sguelá
Eu rimo no desafio
Acompanho no ganzá
Eu canto glosa e repente
E galope à beira mar...


Severino Mandacaru é uma contrafação de si mesmo. É uma vida em conflito. Um retirante às avessas.
Remando contra a corrente, Severino abandona São Paulo em busca de Toritama onde irá conhecer os frutos da caatinga: caveiras de gado calcinadas pelo sol, protegidas pelos espinhos do mandacaru.
Aos doze anos de idade, em São Paulo, Severino enfrenta, todas as manhãs, a garoa fria que lhe congela a alma. Desce do alto da Vila Maria e percorre, a pé, os três quilômetros que o separam do ponto final do bonde 34. Vila Maria!
Viaja sempre no estribo. O bonde dispara, corta a várzea com seus campos de futebol, atravessa a pequena ponte de madeira, sobe a Rua Catumbi, dobra na Celso Garcia, atravessa o Belenzinho e monta sobre a Avenida Rangel Pestana. Está na Praça da Sé. Severino se encaminha para o seu trabalho. Reduz os passos. Detêm-se, pensativo, observando os artesãos portugueses esculpindo nas pedras o que um dia será a catedral de São Paulo. Na vastidão da praça vazia, parece-lhe contemplar uma cena do Paraíso. Colunas, capitéis, volutas, troncos de anjo, formas mágicas, harmoniosas, construídas apenas com um martelo e uma talhadeira. Assombra-se. São todos Michelangelos, são enviados de Deus! Alguns são seus vizinhos no Alto da Vila Maria. Ajuda-os a construir suas casas pisando o barro que rejuntará os tijolos. Severino aprendeu a falar o português do Além Tejo, de Trás os Montes, da Cabidela. Divide com eles o caldo verde.
Encaminha-se para o escritório onde trabalha. Imprime no mimeógrafo as cartas que deverá entregar. Coloca-as, cuidadosamente, nos envelopes e parte para a jornada que o deixará com os pés em brasa. Nunca voltou uma carta sequer.


Já viajei por muitas terra
Já chupei muito cajá
Namorei loura e mulata
Branca preta e sarará
Mulhé nenhuma eu enjeito
Basta sabê me agradá

O pau de arara que transportou Severino na sua invertida retirada era um navio da Costeira. Parte de um comboio de oito navios cargueiros, quatro corvetas de guerra e sobrevoado por um dirigível, levou dezoito dias entre Santos e Recife. No porto, Severino não entende a língua que falam, mas tem sua atenção atraída pela balaustrada do cais: enormes blocos de mármore português, de um vermelho intenso entrecortado por veios lilases. Nota os sinais da erosão produzida pela brisa marinha através dos séculos.

Escola e trabalho foram moldando aquele sertanejo improvisado que não tinha, evidentemente, nem a energia nem a perseverança dos nativos, qualidades que viria a desenvolver com o tempo, à custa de muito esforço. Trabalho penoso nas fábricas, conflitos de cultura, o calor insano a causticar-lhe a pele, o pôr-do-sol no cais de Santa Rita, a lua cheia no Cais do Apolo, a poesia de Ascenço Ferreira, os frevos de Capiba, as peças de Ariano Suassuna, as palavras incentivadoras de Francisco Brennand, o chope no bar Savoy em companhia de Carlos Pena Filho foram consolidando um Severino empenhado em viver a vida como a vida lhe era oferecida.
Em Fazenda Nova, não distante de Caruaru, Severino conhece os escultores que moldam a cidade de Nova Jerusalém. Novo encantamento. Como os Michelangelos da Praça da Sé, matutos analfabetos, sem ajuda de qualquer instrumento que não seja o martelo e a talhadeira, extraem da rocha esferas com precisão milimétrica, estátuas de santos e de pecadores, madonas e bambinos, onças , macacos, araras, - e a imagem do Padre Cícero.

Severino viaja. Em Codó, no interior do Maranhão, apaixona-se pela trapezista de um circo mambembe que ancora na praça da Igreja. Contemplando seu corpo escultural, pensa: Trapezista? Deve ser aquela moça que desfila de maiô no começo e no fim do espetáculo. Rufar de tambores: ela aparece, toma o trapézio, é elevada a uma altura de quinze metros e dá um salto triplo – sem rede de proteção. Severino contrai os esfíncteres e desmaia.
Um jovem atirador de facas dispara seus dardos contornando a silhueta de uma bela mulher encostada a um biombo, com os braços abertos em forma de cruz. É sua mãe. Um palhaço acaba de levar uma martelada no dedo quando se prepara para entrar em cena. O pranto que simula na comédia que representa é autêntico.
O convívio com o circo ensinou a Severino como a vida pode ser bela. E cruel. Os deslocamentos por estradas lamacentas do interior, caminhões atolados, o sanfoneiro que tomou um porre e não apareceu, os cuidados do pai com a segurança da filha. Um mundo complexo que não encontrava nos manuais escolares.

Moço distinto se achegue
Meu canto é pra si iscutá
Mostre que tem coração
Ajude um pobre a cantá
Tire do bolso um trocado
E bote no meu borná

Em Teresina - PI Severino entra na fábrica rigorosamente às 5:30 da manhã. Sai às 8:00 da noite. Seu jantar é um litro de sorvete de bacuri. Dorme na rede molhada para suportar o calor no quarto do hotel que o abriga construído antes da invenção do ar condicionado. Nas manhãs de domingo frequenta a praia formada pela coroa de areia na margem do preguiçoso Rio Parnaíba. A praia denomina-se “ Praia da Croa”. Seguindo a tradição local, Severino funda o “Croa Crawl Crube”, no qual espera treinar as nadadoras de canelas finas com seus lamentavelmente pouco decotados maiôs.
O escasso lazer do domingo não esconde a amargura que o aflige. A penúria das condições de trabalho na indústria e na lavoura levam-no a reflexões insensatas. Um dia tudo há de mudar.

Fortaleza é um mundo diferente. Severino pratica halterofilismo nas areias da praia de Iracema, já comprometida pelo avanço do mar. Almoça lagosta no restaurante do François, não porque fosse fanático por esse prato mas porque não havia outra coisa. Nas noites de boemia, como o bom frade que leva o evangelho para as suas paroquianas, Severino recita poesias para as mariposas no meretrício da Rua Major Facundo. Em surdina, boleros de roedeira completam o quadro romântico.
O contato com a miséria no bairro do Pirambu abala ainda mais as suas combalidas convicções políticas. Sente-se um covarde, um cúmplice, um acobertador. Não pode enclausurar-se. É preciso buscar.

Pernambuco, década de 60. As Ligas Camponesas incendeiam canaviais. Greves nas fábricas tumultuam o setor produtivo. Emboscadas matam gentes.
O golpe militar interrompe os estudos já tardios de Severino. O uivo das sirenes dos carros militares na caça às bruxas torna-se insuportável.
Severino emigra. Leva consigo pouca coisa: um pôr de sol do Rio São Francisco, o cheiro dos oitis nas manhãs úmidas da Boa Vista, o apito de uma fábrica, uma tapioca da dona Joana, o choro sufocado do menino Ambrósio, um disco de Volta Seca e uma garrafinha de licor de genipapo.
Deixa muitas saudades.

Si o que eu to vendo é verdade
Si num mi falha os olhá
Tanto dinheiro na cuia
Nunca mais hei de juntá
Moço distinto obrigado
Deus lhe há de arrecompensá


Faltando poucos meses para completar oitenta anos de idade, Severino está renascendo. E deve o seu retorno à vida aos colegas da Oficina e ao menino Felipe Pena, seu professor, competente e magnânimo.
À Roberta Bomtempo e ao Miranda, Severino deve tudo isso e muito mais. Porque, com seu carinho e seu apreço, despertaram nele emoções há muito esquecidas e o impregnaram de uma energia mágica: a energia que move o sol e todas as estrelas: a sensação de estar vivo.


Notas:
1- As expressões “retirante às avessas” e “remando contra a corrente” são versos de João Cabral de Melo Neto em “ Morte e Vida Severina”.
2- Os versos do cantador foram escritos há alguns anos e fazem parte de um conto chamado “A Centenária”
3- Toritama é a cidade do interior de Pernambuco para onde se dirige Severino de Maria quando encontra o corpo de Severino Lavrador, que morreu de morte matada. De “Morte e Vida Severina”
4- A frase “energia que move o sol e todas as estrelas” é uma adaptação dos versos de Dante, na Divina Comedia: “L’amor che tutto muove. L’amor che muove Il sole e le altre stelle”

24 agosto 2010

CRÔNICA PARA UM ENFERMO

No final do ano passado participei de uma oficina de crônicas ministrada pelo Professor Felipe Pena na qual os alunos escreviam sob pseudônimo, forma adotada para evitar inibições nas críticas aos trabalhos apresentados em aula. Foi uma experiência muito rica, tanto em termos do aprendizado na arte de rabiscar como, e principalmente, pelas emoções vividas no convívio com os colegas. Por isto devo ao Professor Pena uma renovação de forças e aos colegas Miranda, Noronha e Claudia Bontempo a chama da inspiração que eu não conhecia quando capengava em busca de recordações da infância. Foi lá que, com o pseudônimo de Severino Mandacaru, escrevi esta CRÔNICA PARA UM ENFERMO Fiquei sabendo, pela caneta da nossa eficiente Roberta, que o “nosso querido mestre encontra-se acamado”. E que acamou-se sob o nome de Emanuel Villanova. Fiquei preocupado e disparei alguns telefonemas para tentar saber de detalhes. Queria saber se era grave, se estava sendo bem assistido. Teria família ou não teria família?. Teria amigos ao seu lado? Queria levar-lhe alguma ajuda, por modesta que fosse. Eu já me encontrei em situação semelhante, isolado do meu mundo, esquecido em um hospital frio, cheirando a clorofórmio, sem uma palavra de consolo, sem alguém que me pudesse estender uma colher com uma sopinha quente, um biscoito mergulhado num café com leite. Sei como é duro sobreviver quando se está só e abandonado. Não obtive resultado com os telefonemas. Fiquei absorto em meus pensamentos vendo a situação agravar-se e eu aqui sem fazer nada. Horrorizado. Finalmente pensei: mas se o Mestre teve forças para escolher um pseudônimo, o mal não deve ser assim tão grave! E passei a concentrar-me no verdadeiro problema. Como foi que a Roberta descobriu que Villanova era o mestre? Há quanto tempo já saberia? Quem mais saberia? Por que é que eu não sabia? Eu, que passei semanas debruçado sobre listas, tabelas e gráficos tentando descobrir o que era o que e quem era quem. Eu, que não prestava atenção nas aulas para observar sinais e gestos, analisar sorrisos, contrações de lábios, levantar de sobrancelhas, ligar o não sei quem com o não sei qual para descobrir qual seria o quem e quem seria o qual? Vem a Roberta e , com um estalar de chicote, desvenda o mistério. Mas vejo que fugi ao meu escopo. Minha intenção era levar conforto ao nosso querido mestre. Espero que ele já se encontre junto aos seus e que esteja junto a nós na próxima quinta feira. E com isto espero também ter atendido à sugestão da Roberta – que para mim é uma ordem- de preparar uma crônica inter-semanal e fazer com que o mestre se orgulhe da laboriosidade dos seus alunos. Brava, Roberta! Severino Mandacaru

09 agosto 2010

MADONNA ESTÁ NO RIO. MADONNA MIA!

Na mesa com Madonna” – Jornal O Globo, - Rio Show de 20/11/09 “Como a Madonna”. Com este subtítulo, um trocadilho chulo e canhestro, começa a reportagem que pretende mostrar o que a diva, rainha do pop, andou comendo nos restaurantes do Rio durante sua recente passagem pela cidade. Um trocadilho que, sem dúvida, revela um velho – e espero já ultrapassado – preconceito que existe em relação às mulheres que atuam nas artes cênicas, tanto no teatro de prosa como nas revistas musicais: São todas piranhas. Esta classificação daria aos galãs de plantão o direito de gorjear suas cantadas em cima das jovens artistas. Não há, na reportagem, nenhuma foto da Madonna, seja comendo, cumprimentando um chef, visitando cozinhas, dizendo se gostou ou não da macaxeira, da casquinha de siri, do suco de maracujá ou do sarapatel. A figura da Madonna, ali, é apenas um mito, uma concepção cósmica que pretende levar-nos a orgasmos organolépticos. Mas estão lá, isto sim, as fotos dos pratos que lhe foram oferecidos, com os respectivos preços, preste atenção! Na reportagem, não sei se é esse o nome, ficamos sabendo que: “Para abrir os trabalhos” ( linda expressão, a pobre Madonna, tinha acabado de sair deles), “ sem que fosse pedido” ( queria o que? Que ela entrasse gritando: cadê o meu pirão?) “ foi servido um sushi de peixe-manteiga com ovo de codorna e azeite trufado (R$18 cada peça), especialidade da casa... que a cantora até elogiou. Em seguida, a própria cantora pediu várias coisinhas: (eu pensei logo em agulha, linha e botões, mas era comida mesmo) chips de batata doce (céus!) com tartare de peixe branco e miniagrião ( você conhece alguma folha menor do que a do agrião?) (R$ 13), spicy tuna maki (R$ 13 seis peças), aspargo salmão roll, um uramaki com aspargo empanado, salmão e abacate (R$ 21 oito peças), edamane, um tipo de vagem japonesa ( R$ 19), sashimi de agulhão (R$ 19 cinco peças) sashimi de atum e salmão (R$ 12 cinco peças)” . Caceta! Será que alguém sobrevive a isso? A descrição segue dizendo que “ contrariando o mito de que não bebe álcool a diva mandou para dentro ( artista não bebe, mandapradentro) um copinho do melhor sakê da casa, o japa Junmai Daí Ginjo (R$ 49 uma única taça e espantosos 250 a garrafa)” Espantosos 250 ?. Isso é uma merreca! Em Tókio, para tomar o melhor sakê de qualquer casa ela não pagaria menos de 600 dólares por uma garrafa. No Imperiaro Hotero ela pagaria o dobro. Vou continuar a leitura: “No dia seguinte, talvez cansada da viagem na véspera, (claro, não podia ser no mês passado) ela foi levada para jantar em outro restaurante onde, desta vez, a privacidade foi total. A cantora se instalou em uma mesa protegida por cortinas de linho branco que não permitem que se veja quem está dentro” E eu que sempre pensei que a opacidade fosse uma característica inerente a qualquer cortina para que ela pudesse cumprir a sua função. Justifica-se o cuidado. Pois não é que me contaram que existe uma casa na Barra da Tijuca onde as cortinas são dotadas de lentes de aumento para que as pessoas que passam na rua possam identificar, sem equívoco, quem está lá dentro! Nada disso, porém, me faz inveja. No mocambo onde eu morei, no bairro do Pirambu, perto de Fortaleza, eu também tinha uma cortina de caroá que não deixava ver quem estava lá dentro. Ela me protegia quando eu comia meu sanduiche de mortadela. Eu não queria que os mais pobres me vissem comendo semelhante iguaria. A reportagem - será que é esse o nome - prossegue numa descrição cheia de detalhes do que aconteceu durante o novo jantar. Com medo de que a diva pudesse rebelar-se contra o deglutório que lhe seria imposto, e levando em consideração as origens calabresas da primadonna serviram-lhe uma Salada Caprese (R$48) e atum em crosta de pão com creme de feijão branco e cebola roxa (R$78) Nada mais mediterrâneo. Madonna escapou do sushi. Dão-lhe tempo para que se recomponha. “Na quarta-feira o jantar de Madonna teve um “que” de surpreendente: comeu shiitake recheado com salmão (R$ 28), sakura mango sushi (com nori de manga e tartare de salmão (R$23), dupla de água viva (R$ 18) e ussuzukuri (semelhante ao sashimi só que mais fino, que vem sobre pedras de gelo, de R$ 45 a R$ 56 dependendo do peixe.” Óh! que surpresa! Pareceu-me ver a pobre Madonna debatendo-se na dúvida atroz entre poupar ou esbanjar, pedindo explicações ao maitre sobre como era cada tipo de peixe para poder decidir se sacrificava o seu paladar pedindo a versão mais barata (afinal, havia uma diferença de 11 reais), ou se onerava seu orçamento e pedia a versão mais cara para fazer melhor figura. Uma coisa é certa: depois de fustigada por sushis e sashimis a torto e a direito, a Norte e a Sul, a Leste e a Oeste, à esquerda e à direita, arriba y abajo, Madonna saiu, alegre e saltitante, soltando flatos em japonês. Diz a notícia que esse jantar, servido para 30 pessoas, custou R$ 3.444,54 o que dá exatos R$ 114,82 por cabeça, arredondando-se para maior a segunda casa decimal. Outra merreca! Eu mesmo, para impressionar uma namorada, jantei num renomado restaurante do Rio de Janeiro e gastei muito mais do que isso. De inicio, só para criar um clima, tomamos uma Grappa Dicciotto Lune, um nectar feito com uvas Verdicchio na costa do Adriático, nas colinas que circundam Ancona, na Itália (R$ 70 uma dose). Como entrada, um “Funghi al Cartoccio”, preparado pelo chef Flamínio, uma explosão de aromas (R$ 48). Como prato principal “Ossobuco com Fettuccine de Espinafre” (R$ 96), que chamou a atenção das mesas vizinhas. Para sobremesa: “Ravioli dolci bianco- neri al Ciocolatto”, - outra criação mágica do chef - (R$ 36). Durante esse longo percurso fomos acompanhados por um “Brunello di Montalcino – 1998”, (R$ 680) que quase não deu para os dois. Com isso, ofereci à minha namorada um jantar que custou R$ 590 por nuca, contra os miseráveis 114 que ofereceram à Madonna. Desculpe-me Madonna, mas acho que você pode melhorar a sua coreografia se me acompanhar no que come e, principalmente, no que bebe. Eu gosto de comida japonesa e freqüento restaurantes japoneses com regularidade. Mas o que eu não entendo é porque cevaram a pobre cantora com sushis e sashimis, coisa que se encontra hoje em qualquer fim de mundo, como se no Brasil não houvesse nada de original para se comer. Por que não a levaram para o Buraco da Gia, em Goiana, Pernambuco, quase chegando na fronteira da Paraíba, onde se come o melhor guaiamum do Nordeste e onde ela poderia ter deixado o seu autógrafo numa casquinha de siri patola que seria afixada na parede ao lado de nomes famosos, inclusive o meu? Por que não a levaram para conhecer a Galinha de Cabidela da Otilia, a palafita espetada no Cais da Rua da Aurora, à jusante do Rio Capibaribe, no Recife, onde Alcide De Gasperi ( que Deus o tenha, o bom homem), presidente da Republica Italiana, que após a primeira garfada estalou a língua, e exclamou: “Domine non sum dignus!”, pediu outra caipirinha e voltou a comer? E o Peixe da Comadre, no porto de Maceió para saborear uma bicuda tirada do mar e colocada no mesmo instante na panela com óleo dendê? E a lagosta ao coco do Ramirez, que era comandante da Ibéria quando desceu em Natal por causa de uma greve e nunca mais saiu? E a Cartola do Restaurante Leite, no Recife, com seus noventa e cinco anos de existência? Meu Deus, quanto desperdício! Mas, “bem está o que bem acaba”, ensina a peça de Shakespeare. No fim, todos saíram lucrando: 1º- Madonna economizou em comida no Rio. 2º - Os restaurantes divulgaram os preços dos seus pratos mostrando que são comidos por gente fina, a preços supostamente acessíveis, visando atrair clientes entre os deslumbrados. 3º - O jornal faturou alguns trocados com a divulgação do monumental evento e a publicação dos anúncios marginais, quero dizer, à margem. 4º - Os leitores, aqueles atenciosos, tiveram a oportunidade de conhecer alguns desvãos da Gastronomia carioca e aprenderam como é possível tornar complicada uma das coisas mais simples da vida: comer. Soube também que a Madonna abocanhou 10 milhões de dólares entre os empresários locais para matar a fome das crianças na África. Nada mais nobre. Espero que na sua próxima turnê pela África a Madonna consiga amealhar outros 10 milhões entre o extratores de diamantes ( ingleses, belgas, holandeses) para aplacar a fome das crianças do Nordeste. Pelo menos manteria a miséria equitativamente distribuída. Severino Mandacaru

04 agosto 2010

MEU BANCO É (QUASE) PERFEITO

                                                   Gastão esperando pelo rendimento dos seus fundos 


                                  Esta é uma edição revista e atualizada de "Meu Banco é Perfeito" 

Ninguém vive hoje sem um banco. É o que me dizem. De fato, como poderia eu pagar contas e taxas, declarar imposto de renda, receber meu salário, administrar um cartão de crédito sem a magnânima ajuda de um Banco? Impossível. Por outro lado, para usufruir dos generosos serviços que um banco lhe presta você precisa ter talento administrativo e esperteza suficiente para não ser dessangrado.
 
O fato é que o mundo moderno se estruturou sobre um sistema financeiro diabólico no qual os bancos funcionam como capetas melífluos a distribuir benesses que terão, como único resultado, o aumento do seu próprio patrimônio às custas, é claro, da ingenuidade dos  correntistas. Exagero? Possivelmente. Os bancos inventaram o crédito, através do qual passaram a emprestar dinheiro, primeiro o próprio, e, esgotado este, o recolhido de - também emprestadores - menos avisados. A recompensa pelo empréstimo são os juros. Os juros são as células cancerígenas do sistema, coisa que ocorre em qualquer organismo vivo. Esses empréstimos eram zelosamente anotados em folhas e mais folhas de papel e, agora, em telas e mais telas de computador.
 Dois ou três anos atrás os maiores bancos do mundo perderam o controle – por incompetência ou por indústria – e passaram a emprestar dinheiro que não existia de verdade, isto é, só existia nas telas do computador. Como o dinheiro não existia de fato, os mutuários não conseguiram pagar seus débitos.  Então, a economia mundial entrou em colapso. Não foi isso o que aconteceu com o sistema de crédito imobiliário nos Estados Unidos? E, como os capetas trabalham em rede, a praga alastrou-se pelo mundo inteiro. Esta é uma visão simplória, admito. Mas se aprofundarmos a visão entraremos numa zona escura e não enxergaremos mais nada. De qualquer modo, não podemos nos livrar dos bancos. É até bom passar lá de vez em quando e tomar um cafezinho. Mas nunca tomar dinheiro emprestado.

Os bancos se modernizam a cada dia. Dá gosto acompanhar a evolução tecnológica do sistema bancário, impulsionada pelo uso cada vez mais fácil do computador, o que deveria encurtar as filas nos caixas. Encurtaram? Não. Elas são pré-determinadas. Quando as filas encurtam, retiram um caixa do guchê e elas voltam ao normal. Basta observar.

Com a finalidade de transferir para o correntista todo e qualquer custo operacional, os bancos criaram os terminais eletrônicos, colocados prudentemente do lado de fora da área de atendimento pessoal. Com isto pouparam o tempo do funcionário a quem caberia fazer os lançamentos de saque, extratos, pagamentos, etc. Pelo menos esperava-se que as coisas andassem mais depressa. Andaram? Não, porque ao criarem os terminais eletrônicos, os bancos também criaram as filas dos terminais eletrônicos - e tudo ficou na mesma. Na mesma, propriamente, não, porque criaram também a curiosa figura da funcionária que percorre a fila dos caixas  com a penosa missão de deslocar o cliente dali para o lado de fora.

-- Posso ajudar, o senhor vai fazer algum pagamento ou depósito? Por que não usa o terminal eletrônico?
-- Porque a fila de lá está maior do que esta.

Cansado de dar explicações sobre as minhas preferências  no que se refere ao sofrimento humano, decidi livrar-me do incômodo daquelas perguntas de uma vez por todas:

-- Posso ajudar, vai fazer algum pagamento? Por que não usa o terminal ?
-- Só respondo na presença do meu advogado!

Certa vez descobri que podia dar uma contribuição ao Departamento de Marketing do meu banco. Eu estava no balcão, esperando ser atendido, quando a gentil moça que sempre me atendia aproximou-se, prancheta na mão:

-- Senhor Severino, que bom encontrá-lo! Eu vi que o senhor não tem um seguro com a gente. O senhor precisa fazer um seguro.
--  E por que eu deveria fazer um seguro?
--  Ora, porque se o senhor vier a faltar... que Deus o livre, os seus filhos ficarão protegidos
--  E como é que eles vão ficar protegidos se eu não vou estar aqui para protegê-los?
-- Veja: o senhor paga um seguro mensalmente, de tanto, e se o senhor vier a falecer, que Deus o livre, os seus filhos vão receber tanto e tanto pelo seguro. Entendeu?
-- Não. Deixe-me ver. Eu pago, mensalmente, um tanto, durante tanto tempo, e, pelo tanto que eu ainda pretendo viver vou ter que desembolsar um tanto considerável da minha magra aposentadoria justamente quando, pelas deficiências da idade, mais preciso dela. E aí, quando eu morrer, eles vão receber essa bolada toda e gozar a vida? Não, decididamente tem alguma coisa errada nisso.
-- Mas é assim que funciona, Seu Severino!
-- Não, não. Se você quiser fazer um seguro comigo, você tem que fazê-lo em nome do meu pai. E, nesse caso, eu pagarei a mensalidade, não ele. Aí, sim, quando ele morrer eu é que entro na bolada. É justo. Fui eu que paguei por ela. Dessa forma eu faço o seguro.

Os olhos da moça brilharam. Logo puxou um formulário e começou:

-- Perfeito! Como é o nome dele?
-- Roberto Mandacaru.
-- Casado ou solteiro?
-- Viúvo.
-- Local de nascimento?
-- Campina Grande, Paraíba
-- Data de Nascimento?
-- 28 de Janeiro de 91.
-- Como 91 !!?
-- Ah! Desculpe, 1891.
-- Como assim, 1891? Quantos anos ele tem?!
-- Deixe-me ver... noventa e cinco.
-- Ah! Mas assim não pode...
-- Por que não pode? Eu não pedi nada. Foi você quem me ofereceu um seguro. Se o banco resolver, telefone-me... antes que meu pai morra.

Registrei esta pequena história porque me lembrei do meu amigo Agildo Mielli, grande trovador, que teve seu patrimônio garfado por alguém que usou um banco como ferramenta de trabalho. Ironicamente o Agildo havia escrito, anos antes, uma de suas melhores trovas:

“Gastão, rei dos vagabundos,
Não teme crise ou desgraça.
Só deposita seus fundos
No melhor banco da praça.”

Severino Mandacaru