30 maio 2011

Haicai para uso interno


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 Aprendi com Lena Jesus Ponte,  diáfana poetisa do haicai, a apreciar essa forma de poesia que rejeita a individualidade, despe-se da moralidade e da intelectualidade e  glorifica a solidão. Lena é um haicai na sua forma física, transparente, emanando uma luz que envolve as pessoas ao seu redor e as transforma em poesia.
 Nas frequentes viagens ao Japão eu tentara penetrar naqueles versos  sintéticos, lidos em tradução para o inglês, sem conseguir captar-lhes a alma.  Logo entendi que não era só a deterioração causada pela tradução que me impedia de assimilar o seu  verdadeiro sentido poético mas também porque, como explica Cecília Meireles, “na sua concisão eles evocam, para os japoneses, sugestões que o Ocidente em geral não consegue captar”.  Nas aulas de Lena Pontes consegui penetrar um pouco mais no mundo mágico do  haicai.
Quando, em uma das aulas, Lena mencionou o nome de Oldegar Vieira entre os poetas brasileiros precursores do haicai, dei um pulo na cadeira. Oldegar Vieira havia sido meu professor de português na Escola Técnica, no Rio de Janeiro, em 1949. Oldegar acabava de publicar seu primeiro livro “Folhas de Chá” e, vez por outra,  recitava em classe seus haicais.  Lembro-me bem de alguns, até hoje:

Noite de Natal
 Neve na vitrine
Lágrimas nos olhos
Do menino pobre

Alvorada
Pouco a pouco vai
O canto claro do galos
Clareando o dia

Pôr de Sol
Na tela do firmamento
O sol, pintor desastrado,
Derramou suas tintas

Nós alunos pouca importância dávamos  ao livro do Oldegar.  Éramos  jovens,  imaturos e irreverentes.  Certo dia um colega mais gaiato escreveu no quadro negro:
“Próximo lançamento do Professor Oldegar Vieira: “Pó de Café”.  O professor leu a frase e, longe de ofender-se, dando uma risada  disse:
-- Vocês estão convidados para a noite de autógrafos . Espero que comprem o livro.

Aqui em Friburgo, nas tardes de outono, a neblina da serra  induz à reflexão, e a reflexão nos torna poetas. Pena que a neblina não nos dê  a habilidade para escrever. De qualquer forma aqui vão meus destemperos:



No ouvido das folhas
No ouvido das folhas                                  
Depositei meu segredo                              
Morrerei sem medo 
Nota: “no ouvido das folhas” foi o tema proposto por Lena  em aula.
                
A  um sabiá
Sobre um galho seco                                  
Um passarinho canta
Que a vida se foi

Contemplando a mata
Pensa e conclui                                            
O cérebro da floresta:                                 
O homem não presta 

 A  um tronco carcomido
 Senilidade
Apenas senilidade
Senilidade

A um caroço de abacate
Um dia serás planta        
Carregada de sonhos
Que um dia cairão

A Dorotea
Tristeza de inverno                                               
Senta-te aqui ao meu lado                          
Finge que é verão                                         


Depois de refletir sobre a dificuldade que eu tenho para construir os versos com 5-7-5 sílabas para atender às regras do haicai clássico, descobri  por que os japoneses o inventaram: sendo o japonês uma língua monossilábica, contar sílabas é moleza.
Animado com esta descoberta,  parti logo para criar o meu primeiro haicai em  japonês . Espero que gostem:

Kore wa kore
Kore  ikura deska
Kore kore wa

Tradução:

Isto aqui. Isto.
Isto aqui, quanto custa?
 Isto! Isto aqui

               Vocês estão rindo de que?




21 maio 2011

O Urdume, a Trama e a Tramóia

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Precisávamos de fios. Muitos fios. Fios de lã. Fios crus de pura lã penteada. Com eles produziríamos o tecido que nos iria projetar na história da industria têxtil brasileira. Éramos jovens e sonhadores. Estávamos no último ano do curso técnico da indústria têxtil, o primeiro a ser criado no Brasil e seriamos a primeira turma a ser formada. Discutia-se a festa de formatura, que seria realizada nos salões do Fluminense,  àquela época um clube aristocrático. Os concluintes filhos de empresários queriam que o traje fosse smoking. Os paus de arara  de  Sergipe, Alagoas e Pernambuco, entre os quais o abaixo assinado, se opunham.

Reuni a turma e fiz uma proposta: Vamos tecer o nosso próprio pano e mandamos fazer o terno da formatura. Temos o tear mais moderno do mundo para tecidos de lã. Faremos uma gabardine perfeita e a tingiremos de azul marinho, a cor da moda de todos os executivos daquela época. Só precisamos de fios.Temos vários  lanifícios no Estado. Tentarei sensibilizar um empresário e talvez consiga que ele patrocine a primeira turma de técnicos formada no Brasil.  Afinal, é do interesse do setor. Talvez os fios sejam doados. Se isto não ocorrer, faremos uma vaquinha. Proposta aprovada por unanimidade.

Marquei entrevista com o gerente de um dos lanifícios. Quando falei em patrocínio ele deu uma risadinha, mas concordou em vender os fios. Discutimos o negócio: especificações, quantidade, preço, pagamento em espécie, etc. Negócio fechado. O gerente me encaminhou a um magarefe para acertar a entrega.

Os fios que se destinam às tecelagens são acondicionados em bobinas cônicas que têm como suporte um tubo de papelão rígido. O formato em forma de tronco de cone visa facilitar o desenrolamento do fio nas operações posteriores: urdideiras, para a formação do urdume e espuladeiras,  para a trama.  O peso da bobina cheia varia conforme o tipo de  fio e naquele caso era de 800 gramas. O tubete de papelão pesava 40 gramas.

Quando fui retirar os fios, o mequetrefe  entregou-me bobinas parcialmente usadas que continham, se tanto, 200 gramas de fio. A fraude era dupla. Primeiro: tratava-se  de bobinas descartadas porque, mal confeccionadas, arrebentavam demais durante o processamento. Segundo: a desproporção entre o peso do tubete e o peso do fio era evidente; nem precisava fazer cálculos para ver que estávamos comprando papelão a preço de fio. Quanto às rupturas dos fios eu nada podia fazer já que se tratava de uma hipótese ainda a ser confirmada, apesar das evidências. Mas, quanto ao peso dos fios não concordei e pedi que fosse  descontado o peso dos tubetes, já que representavam 20 por cento do peso total contra 5 por cento no caso das bobinas cheias. A discussão foi longa e inútil. Era aquilo ou nada. Saí com os meus fios, furioso e humilhado.

 O resultado não foi outro. Os fios partiam à toda hora. O trabalho era penoso. Revezamo-nos dia e noite no tear. Quando alcançamos a metragem  necessária ainda sobravam muitas bobinas, com uma camada ínfima de fio. Juntei tudo e parti para a fábrica a fim de devolve-las.  Para ajudar na negociação levei comigo quatro colegas escolhidos por peso, tamanho, e cara feia pois sabia que dificilmente aquelas bobinas seriam aceitas. Fui atendido pelo mesmo sabujo. Não foi preciso discutir muito para que aceitasse a devolução. Só que o  malandro ainda teve a coragem de colocar a condição que devia ter feito prevalecer por ocasião da venda:
-- Está bem, vou pesar o fio, só que tenho que descontar os tubetes de papelão.
Os quatro colegas circundaram o safado  cruzando os braços como faziam os valentões dos cabarés da Lapa. Foi o bastante para fazê-lo desistir da idéia. E, aí sim, vendemos o nosso papelão a preço de fio. Com todo o direito. Com toda a justiça.



14 maio 2011

ESCREVER


-- Vou parar de escrever. 

-- Por que? 

-- Estou enlouquecendo.

-- Mas você não precisa parar de escrever só porque está ficando louco. Você não  lê jornal?  Não viu como tem louco escrevendo? Preste atenção ao que dizem certos políticos. E os economistas, desvairados, quando analisam as crises mundiais, os superávits primários, a distribuição perversa da renda,  a deterioração das relações de troca, o corporativismo nas relações intersexuais dos povos nômades do baixo Cáucaso e sua influência na taxa de formação do capital, etc., etc...
Todos doidos! Eles conseguem comprovar  teses diametralmente opostas usando o mesmo argumento. E os nossos legisladores, baseados nessas informações, para nos proteger, danam-se a tacar impostos e aumentar juros. Você, pelo menos, não prejudica ninguém. Escreva loucuras. Ninguém notará.

-- Mas essa é justamente a minha preocupação. Quem vai ler? Tirando meia dúzia de amigos ...

-- Não se preocupe com isso. Sempre haverá alguém mais descuidado disposto a ler o que você escreve.

-- Acho que você não me entendeu.  Não duvido que pessoas abnegadas se disponham a ler o que escrevo. O problema é fazer com que o livro chegue a elas. Não há pessoas suficientes para todos os livros que são publicados. Eu lhe garanto: tem mais livro do que gente!

-- Como assim, tem mais livro do que gente?

-- Você já reparou quantas livrarias existem espalhadas pelo mundo? Comece pelo Rio de Janeiro. Quantas? E Buenos Aires, aqui visinho, que tem três vezes mais do que o Rio? Você conhece as livrarias de Nova York? São gigantescas! E Paris? E Londres, Frankfurt, Madri, Milão? Tókio tem uma livraria que tem sete andares com a área de um quarteirão! Não, não, isso dá pra enlouquecer! São livros e mais livros que vão se acumulando desde  Gutemberg, nas livrarias, nos armazéns, nas bibliotecas, nos arquivos, nos mosteiros,  nos museus e até na minha casa. Não há gente  para tanto livro. Só de pensar nisso eu enlouqueço.

-- Tenha calma. Acho que ainda há uma possibilidade de interromper esse seu processo de decomposição cerebral. Em primeiro lugar você está se precipitando. Se você não tem dados estatísticos confiáveis você  não pode concluir que não há leitores suficientes.  E aí a coisa se complica porque você teria que fazer um corte no tempo, calcular o número de livros em estoque nas livrarias nessa data, incluir as bibliotecas públicas, as particulares, os arquivos e sei lá o que mais, e ainda assim teria que fazer uma abstração deixando de  fora todo o material publicado em forma de jornais, revistas e boletins, sem falar em e-books, blogs e tudo o que  circula no espaço sideral ...

-- Pois é. Essa é a minha intenção. E eu comecei dando um passo bem modesto, analisando  um microcosmo que me permitisse montar um modelo a ser aplicado no resto do mundo.

-- De que maneira?

-- Pelo Rio de Janeiro. Com uma só livraria.

-- Como?

-- Você conhece a Leonardo Da Vinci? Sabe quantos livros tem lá dentro?

-- Não, por que? Você sabe?

-- Eu contei.

-- Impossível, você está maluco. Ninguém conseguiria fazer isso. Você perguntou pra Dona Giovanna?

-- Não. Não me atrevi, ela poderia desconfiar. Mas eu calculei. São 86.400 livros, com pequena margem de erro.

-- Nem vou lhe perguntar como você conseguiu fazer isso.

-- Veja bem, vou simplificar:  a livraria tem 5 salas com estantes que vão até o teto. Cada estante é dividida em compartimentos, todos iguais, graças ao bom senso do marceneiro. Achar o total de compartimentos foi fácil. Contei o numero de livros que existe em cada compartimento e chequei, por amostragem, com alguns outros, pois nem todos os livros têm a mesma espessura. Assim cheguei a um valor médio representativo, com boa margem de segurança, de todo o conjunto. Os compartimentos que armazenam dicionários e livros de arte, que são notadamente mais grossos, foram tratados em separado e receberam um coeficiente de correção. No piso da loja também há livros, distribuídos em gôndolas, cuja quantidade pode ser facilmente calculada tomando-se o número de livros por metro quadrado. O meu passo é bastante regular e com ele posso medir qualquer distancia com erro menor do que dois por cento. Determinada a área de cada sala tem-se o total de livros, com o cuidado, naturalmente, de descontar o espaço ocupado pelas vias de acesso, escadas, mesas e cadeiras da administração, coletores de lixo, e onde ...

-- Pára, pára! Vou lhe dar o telefone de um médico.

-- Que médico?

-- È o psiquiatra que me curou quando eu parei de escrever. Não deixe de procurá-lo assim que você acabar essa cerveja.
                                                                                    

03 maio 2011

A morte como ela é

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José Renato morreu ontem. 
O criador do Teatro de Arena de São Paulo, diretor de “Eles não usam black-tie”  e  “Chapetuba Futebl Clube”, Zé Renato, que revolucionou o teatro brasileiro em 1953, faleceu na madrugada de ontem, em pleno trabalho, aos 85 anos de idade.
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A noticia foi dada por uma espécie de necrológio não assinado, publicado na página 2 do Segundo Caderno de “O Globo” de hoje, dia 3 de Maio de 2011. Inexplicavelmente, o clássico “Obituário” que traz uma resenha biográfica dos mortos famosos, no caderno principal, não apareceu. ( o último foi o de Neuzinha Brizola, 56 anos, em 28 de Abril). O crítico de teatro Hersh Basbaun, citado na notícia, explica a importância de José Renato no teatro brasileiro:
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“Inaugurava uma nova estética, a qual, quando comparada com TBC, o must da época, provocava mil reflexões. Não bastasse isso, deu início a uma nova dramaturgia, pondo no palco o trabalhador brasileiro, arriscando-se a lançar um novo autor, o ítalo-brasileiro Gianfrancesco Guarnieri. Não parou por aí, encenando Vianinha, Chico de Assis e convidando Boal para a equipe”.
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José Renato se aposentou em 1966, quando dava aulas de direção na UniRio. Mas o que há de mais notável na vida desse homem é a sua morte. Aos 85 anos ele volta aos palcos atuando na peça “12 Homens e uma sentença” dirigida por Eduardo Tolentino em São Paulo. O diretor conta que na última representação de que participou, domingo dia 2, Zé Renato enxertou um caco na sua fala. Referindo-se a outro personagem, um velho, em lugar de dizer “o velho só queria atenção” ele diz: “ o que o velho queria era um pouco mais de tempo”. A notícia termina: 

“Após a sessão, José Renato jantou com o elenco. Em seguida uma amiga levou-o para o Terminal do Tietê onde tomaria o ônibus de meia noite para o Rio. Passou mal, foi levado ao pronto socorro, mas morreu de infarto na madrugada de ontem. O enterro será hoje no cemitério do Morumbí”
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Assim é a vida. Assim é a morte. Ou, como ela deveria ser.

Nota: Peço desculpas ao diretor  Eduardo Tolentino por ter dado uma  interpretação própria à fala de Zé Renato. O que ele chama de “ato falho” eu chamei de “caco” , uma ação deliberada,  premonitória.