27 abril 2011

As Feridas da Juventude - A Pátria

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  A  PÁTRIA

“A Pátria é a família amplificada. O sentimento que divide, inimiza, retalia, detrai, amaldiçoa, persegue, não será jamais o da pátria. A Pátria é a família amplificada.”
                                                                            Ruy Barbosa

A Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil foi a primeira escola criada no Brasil para o ensino da tecnologia têxtil. Destinava-se a suprir pessoal técnico para o setor, substituindo técnicos e engenheiros trazidos do exterior. A Confederação Nacional da Indústria  dera muita importância a esse problema e escolhera o Senai para implementar o projeto. Num prédio enorme instalou oficinas e laboratórios com os equipamentos mais modernos disponíveis na época. Instalou também um parque esportivo, cozinhas, lavanderia e um internato, posto que os alunos vinham de todos os Estados do Brasil e muitos do exterior. A direção foi entregue ao Prof. Mario Souto Lyra, engenheiro que se havia especializado no Instituo Têxtil da Universidade da Carolina do Norte.
O regime era severo: oito horas de aula por dia e mais uma hora de estudo orientado, obrigatório, à noite. Aos sábados, atividades culturais.

Na primeira semana de aulas o Diretor reuniu os alunos para um anúncio importante: o aluno que se classificasse em primeiro lugar durante todo o curso seria contemplado com uma bolsa de estudos. Faria o “Master in Science”, de quatro anos, no Lowell Textile Institute, da Carolina do Norte. Eu vinha de Pernambuco, para onde tinha ido no começo da adolescência e havia completado, com muito sacrifício, o curso secundário na Escola Técnica do Recife, da rede federal de escolas industriais. Continuar os estudos depois do curso técnico só seria possível, para mim, se eu conquistasse aquela bolsa. Classifiquei-me em primeiro lugar.

Para chamar a atenção sobre a Escola, a Confederação Nacional da Indústria ofereceu um jantar ao empresariado têxtil, onde foi anunciada a concessão da bolsa. Entre as autoridades presentes estavam Euvaldo Lodi, presidente da Confederação, e D. Jaime Câmara, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro. Presente estava também o Professor Ivo A. Cauduro  Piccoli, que havia sido nosso professor de física durante todo o curso. Professor  eficiente e simpático,  tornara-se um grande amigo dos alunos.  Ele chefiava o departamento da Confederação que administrava as bolsas de estudo.
Terminado o jantar, parabéns pra cá, parabéns pra lá, salamaleques pra todo o lado, Piccoli  me chama a um lado e diz:
-- Venha amanhã ao meu escritório e traga seus documentos. Vamos tratar do seu embarque.
Fui pontual. Depois de um longo prólogo no qual  discorreu sobre o curso nos Estados Unidos, o professor pergunta:
-- Trouxe os documentos?
Entrego-lhe os documentos. Ele olha a carteira de identidade e solta um urro:
-- Italiano? Você é italiano?
-- Sou, sim. Todo o mundo sabe disso lá na escola. Estou tentando me naturali...
-- Não é possível! Todo mundo chama você de “Pernambuco”, como é que você pode ser italiano?
-- Pois sou. Estou pedindo a naturalização, mas a papelada ...
-- Eu não posso mandar um italiano representar o Brasil numa escola americana.
-- Mas...me disseram que a bolsa era um premio para o primeiro colocado e não ...
-- Não é possível, não é possível!

Meu mundo desabava. Eu não sentia o chão debaixo dos pés. A vista se turvou.
Vi a cara do meu pai, a quem eu havia prometido continuar os estudos por minha conta.  O professor continuava falando,  mas eu não ouvia mais nada.  Afastei-me de costas, fitando o chão  até encontrar a porta. Eu tinha vinte anos.
Completei meus estudos no Rio de Janeiro, aos quarenta e sete anos, casado e com dois filhos grandes.

“ A Pátria é a família amplificada” , disse Ruy Barbosa.


13 abril 2011

As Feridas da Infância - Um buquê para minha mãe



As feridas emocionais que sofremos na infância e na adolescência deixam marcas indeléveis. Atravessei a minha vida sem dar-lhes a menor importância mas, não sei por que, voltam-me à memória, agora, de forma perturbadora. Sei que de nada serve arrastá-las pelo resto da vida e me pergunto se poderiam servir para alguma coisa. Talvez sim. Talvez pudessem servir de alerta aos jovens para que se acautelem contra falsos protetores. Contudo, não saberia ensiná-los como fazer isso.

Quando tinha oito anos  minha casa ficava exatamente no pico do morro da Vila Maria, em São Paulo. De um lado, a partir do limite do meu quintal, o chão desaparecia e se podia contemplar a várzea do rio Tiete e o maciço dos edifícios no centro da cidade. Do lado oposto, ruas estreitas e vielas serpenteavam encosta abaixo até a base da colina  onde começava um brejo. O brejo era um pântano que abrigava um pequeno lago de solo arenoso e firme, onde se podia andar a vau. Em certos dias do ano, devia ser no outono, uma neblina pesada caia sobre o lago criando uma atmosfera de mistério onde me parecia ver duendes fazendo troça.

Eu escapulia de casa, quase sempre  sozinho, e corria até lá em busca de aventuras: brincar com uma rã, perseguir um lambari, comer um araçá ou colher alguns “botões” com os quais minha mãe decorava a mesa de refeições que ficava na cozinha de terra batida. Os “botões” eram uma espécie de junco: uma simples haste longa e rígida que terminava com um botão, uma inflorescência compacta, de superfície branca, lisa e aveludada, de diâmetro não maior do que o dedo médio. Com tocos de giz colorido que recolhíamos no quadro negro da escola, pintávamos os juncos, formando assim um buquê de flores. Esse era o ornamento mais comum em nossas casas.

Certa manhã, vendo que a mesa da cozinha estava desprovida de colorido, parti para o brejo. Não havia ninguém. Entrei, e com água pela cintura comecei a recolher os caules, que ia depositando sobre a areia da margem. Eu já havia recolhido um bom feixe deles quando apareceu um rapaz enorme, já  homem feito.
-- Olá! O que é que você está fazendo?
Expliquei-lhe o que fazia, espantado por ver um homem daquele tamanho que não sabia pintar juncos.
-- Eu também vou catar.
Tirou os sapatos, arregaçou as calças e atirou-se à água. Voltou com meia dúzia de hastes e depositou-as ao lado das minhas. Repetiu a operação com mais três ou quatro hastes e disse:
-- Vamos colocar tudo junto. Depois a gente divide ao meio.

Eu percebi a trapaça mas não podia fazer nada. Continuei empilhando juncos. O meninão ficou rodando de um lado para outro assobiando, apontando para os passarinhos, jogando pedrinhas no lago. Quando o feixe já estava bem grande calçou os sapatos, sobraçou o feixe, e foi-se embora assobiando. Não disse tchau.
Fiquei sentado, a cabeça escondida entre os joelhos, tentando esconder as lágrimas de mim mesmo. Eu não entendia. E não entendo até hoje.


07 abril 2011

Panem Nostrum Quotidianum




O pão nosso de cada dia. Esse é o pão.
O pão já tomou todas as formas que se pode imaginar. A “foccaccia” que aparece em algumas representações da Santa Ceia é feita, até hoje, tanto pelos camponeses da Lombardia, na Itália, como em qualquer outro país da Europa. Na Santa Ceia o pão foi distribuído  aos apóstolos e passou a representar o corpo de Cristo, que é transmitido aos fieis, pela comunhão, durante o santo sacrifício da missa. Hoje, na comunhão, come-se diretamente um pedaço de pão mas houve um tempo em que ele era representado por uma hóstia finíssima de trigo, geralmente preparadas pelas freiras dos conventos. As palavras do sacerdote a acompanhavam:

“Corpus Domine nostrum  Jesu Christi ...”

Sei que não deveria brincar com este assunto mas o próprio amadurecimento da Igreja me autoriza a fazê-lo. Porque me lembro como sofri em criança, ao comungar, quando a hóstia depositada sobre a língua me escapava e batia nos dentes. As advertências, nas aulas de catecismo eram severas: não se pode mastigar a hóstia, nem tocá-la com os dentes, porque ela representa o corpo de Deus. Eu ficava aterrorizado e me sentia, aos olhos de hoje, um verdadeiro canibal.
Atualmente, em muitas Igrejas, a comunhão é feita com pão de verdade, mastigável, mas ninguém me devolveu a alegria de compartilhar do corpo Cristo sem remorsos e culpas. E, certamente, meu sofrimento na infância não enalteceu o Senhor nem me tornou mais digno perante a sociedade dos homens.

... “custodiat animan tuam” ...

Quando meus filhos tinham 6 e 7 anos eu viajava muito e ficava longos períodos fora de casa. Numa dessa viagens, voltando da Itália, eu trazia um torrone de Cremona, considerado o melhor do pais. No primeiro jantar com a família abri o torrone para a sobremesa. Flamínio, o maior, levanta um fragmento da fina película de trigo que reveste  todos os torrones  e diz para a irmã:
- Olha, Flavia, igual àquele que a gente comeu na Igreja!
 Espantado, sem ligar coisa com coisa, eu perguntei:
- O que é que vocês andaram fazendo na Igreja?
- A gente estava na missa e viu que todo mundo formou uma fila e aí a gente também entrou e o padre deu um biscoitinho parecido com este.
Olhei para a minha mulher:
-Você permitiu que eles fizessem a Primeira Comunhão sem nenhum preparo? E ela, ainda mais espantada do que eu:
- Eu não estava nessa missa. E estou ouvindo essa historia pela primeira vez. Como você.

... “in vitam aeterna, Amen”.

Esse é o pão.