19 dezembro 2012

A sopa da Tatiany




Novo Cruzeiro é uma  cidadezinha escondida nos confins das  Minas Gerais, quase fronteira com a  Bahia,  de onde recebe influência na sua linguagem e na sua bravura para enfrentar as vicissitudes do clima. Deixou de ser incluída no Polígono das secas por uma asa de mutuca. Nem por isso deixa-se de perceber a atmosfera  árida do Nordeste que se reflete nos tomates raquíticos, na abundancia do maxixe e na escassez da banana.

O caminhar distraído das gentes na rua, a simplicidade de sua arquitetura nas casas de teto baixo, um cão que fareja as bancas na feira, completam o cenário da cidade típica nordestina que espera o desenvolvimento econômico prometido pelos nossos planejadores. Enquanto isso não vem, Novo Cruzeiro produz cultura. E amor.
Nesse pequeno mundo Shirley Pereira dirige, com grande dinamismo, a Escola Estadual Inácio Murta.  Ali se ensina. Ali se produz poesia e música.  Se canta, se dança e se faz teatro. E ali se divide o pão.

Foi num cenário desses que, em noite memorável,  Tatiany  Araújo, um fruto da terra, apresentou sua criação: “O Jovem da Rua 4”, um hino à vida em 77 páginas. Com a ajuda de Líbia Batista, uma jovem psicóloga, Tatiany expôs as vísceras de Dã,  seu principal personagem. E a fila dos autógrafos, que não terminava nunca, penetrou pela noite entre risos e beijos.

Pouco depois Tatiany anunciou que faria uma sopa. Uma sopa de banana verde. Bem verde. Muito sisuda, preparou os utensílios. Preparou a banana. E preparou os temperos. Levou a panela a cozinhar em fogo brando. Só então abriu um sorriso que durou até a sopa ficar pronta.

Eu não vou lhe ensinar aqui como se faz a sopa de banana verde. Se você quiser aprender terá que ir a Novo Cruzeiro e conhecer  Tatiany, a bruxa das metáforas.

03 dezembro 2012

Tatiany e o Jovem da Rua 4




Encontrei um bilhete do Severino enfiado por debaixo da porta. Queria falar-me. Era urgente.
Pressenti, pela letra trêmula, que se tratava de coisa importante. Para estas ocasiões sempre guardo um vinho especial e então sugeri  que viesse à minha casa para comermos umas tapiocas regadas a Tannat  Viejo, do Stagnari, ano 2000, numa celebração com os dois extremos da cultura gastronômica.

Antes mesmo de sentar-se Severino jogou sobre a mesa um pequeno livro. Tinha a capa  preta e nela se via a silhueta de um homem em pé, de costas, que parecia olhar o infinito.

-- É sobre este livro? – perguntei-lhe.
-- É. Mas este não é um livro qualquer.
-- Quem é o autor?
--  Autora. Tatiany Araujo. É do interior, como eu. Mas não do Nordeste,    é de Minas. Vale do Jequitinhonha. De uma cidade pequena como Cabaceiras, na Paraíba , onde planto minha macaxeira.

Achei o título estranho e, fixando a  atenção na  expressão do seu rosto, perguntei ao Severino:

--  Por que  “O Jovem da Rua 4” ?
-- Porque não diz nada. É um enigma. Porque jovem é um jovem qualquer e rua 4 é uma rua qualquer. “Apenas um poste no fim do beco”, como ela diz.  Mas espere até ver o nome do personagem.
-- Como é, “O Homem de Preto” ? – brinquei.
-- Dã.
-- O que? Só isso?
-- “Um certo jovem de nome Dã”.
-- E o que a autora quer dizer com isso?
-- Nada. Simplesmente nada. Dã é a simplicidade ao máximo. É a essência, a síntese. É o homem sem atributos. Com isto a autora consegue criar um suspense digno do melhor escritor de romances policiais antes mesmo da leitura ser iniciada. Trouxe este exemplar do livro pra você. Você  vai conhecer um obra fascinante concentrada em poucas páginas. O livro da Tatiany é denso. Ela não desperdiça palavras. Seu estilo é sóbrio e elegante. É rico em metáforas, sempre bem construídas. A descrição que ela faz do personagem, logo no começo do livro, é perfeita. É precisa e coerente. Não há redundâncias. Olha a beleza deste trecho, com o qual ela encerra o capítulo:

“Mal percebia que, nesse deserto e em meio aos homens tão vazios, poderia encontrar num silêncio ínfimo ... uma fagulha que, mesmo tenra, brilhasse ardente pelo fogo agonizante produzido por sua própria chama.”

A elegância do estilo é, sem dúvida, um aspecto a ser destacado na obra de Tatiany Araujo. Não existem frases óbvias, clichês ou lugares comuns. Sua linguagem poética seduz o leitor que crê estar lendo prosa.  Veja isto:

“O corpo com menos de sessenta quilos se levanta ainda embriagado pelo êxtase da leitura, e se coloca de pé. Os olhos fundos voluntariamente se submetem a outros ângulos. Observa o nada. Senta na cama. Coloca os pés pálidos e secos dentro dos chinelos gastos pelos dias. Novamente em pé, vai até a cozinha, pega uma faca e volta. O lápis havia se desgastado. Com força desnecessária descama-lhe a ponta, preparando-o para mais um dia.”

Entusiasmado, Severino continuava a ler trechos e falava sem parar. Eu, comovido,  ouvia, os olhos pregados no livro.

-- Fascinante, Severino, não encontro outra palavra. A Tatiany viaja muito?
-- Não sei, não a conheço. Sei que mora nessa cidadezinha, que também não conheço. Dizem que é muito tímida. Não deveria ser. Até agora escreveu poesias, este é o seu primeiro livro em prosa. A princípio achei que fosse apenas um romance. Não é. Nele você encontra  verdadeiros ensaios: sobre o comportamento humano, a formação da personalidade, a volúpia da sociedade consumista, a religiosidade da alma. Tem tudo, e com exuberante beleza. Quando trata da libido e da sensualidade ela o faz com muito calor mas com educação e respeito. Ela descreve a explosão do desejo entre dois corpos com tanta elegância e finura que parece estar recitando uma oração.

Severino continuava a ler. Eu fechei os olhos. Sua voz foi se distanciando até desaparecer. Eu vi a mulher de pele branca se contemplando no espelho... os livros esparramados ... desenhos incompletos...  a janela aberta e o chão lá embaixo...
Uma longa viagem num espaço tão curto.