29 setembro 2011

A tremonha



“Alô...alô! Joaquim, sou eu . Olha, eu deixei o Tarquínio tomando conta da tremonha mas estou preocupado, queria que você fosse lá e desse uma olhada. Hein?  Não, não ...  é que tinha um parafuso solto e ... o que ?, eu sei que quando você saiu estava funcionando direito mas você pode não ter visto o parafuso... claro, claro, mas quando eu passei lá... espera aí...  eu vi que tinha um parafuso solto e se aquela merda explodir vai voar farinha pra todo o lado e todo o mundo vai ver... calma, porra, deixa eu falar... o Tarquínio é um pobre coitado, não pode deixar ele sozinho, se der merda a culpa não é dele, vai lá...  olha... vai lá e confere tudo... escuta, Joaquim, vai lá e ajuda ele... o que?  o que?  Não, escuta o que eu tô falando, Joaquim... tá me ouvindo? Alô, alô! Joaquim? Tá me ouvindo? Tá me ouvindo? ...  Merda de telefone!”
Desligou.

Eu já estava quase adormecendo,  sentado naquela poltrona escorregadia da Mil e Um que chacoalhava pela  RJ 116 com a promessa de me deixar no Rio a tempo de tomar um chopinho. Eu, que não tinha nada a ver com aquela encrenca, me via agora sofrendo com o que poderia acontecer com o  Tarquínio. Estou cansado de me tornar testemunha involuntária de conversas alheias ouvidas através desse aparelhinho diabólico e, ainda mais, tendo que adivinhar o que se diz o outro lado da linha.
Não quero saber da vida alheia, não quero me envolver em briga de casais, reclamações de contas não pagas, declarações melosas de namorados arrependidos, papos codificados de amor, tão óbvios, que escancaram a montagem de uma infidelidade conjugal.  Chega. Não quero ser obrigado a ouvir confissões, delações e  broncas de gente que não conheço. Vou reclamar ao governo!  Vou pedir ao estado que proíba o uso de celular nos lugares públicos. Ele já o proibiu dentro dos bancos! Pois que o proíba também nos lugares por onde passo.  Esse  “Estado babá”, como alguém já o chamou, que me humilha quando viajo de avião - quem se lembra de “A tesourinha” do Zuenir Ventura? – esse estado que inventou o kit de primeiros socorros para os automóveis, uma palhaçada que não durou mais de um mês, tempo suficiente para encher as burras de alguns espertalhões, esse estado que encurta o tempo do sinal amarelo nos semáforos para faturar multas obscenas, que  deixou a Ponte Rio Niterói criar quatro faixas de rolamento onde só cabem três, que autoriza os provedores de banda larga a fornecer míseros  dez por cento da velocidade contratada, que me obriga a trocar todas  as tomadas da  casa fazendo-me refém dos preços abusivos das lojas que as vendem ... e agora chega.  Resistência passiva. Desobediência civil. Viva o Mahatma Gandhi!

E de que é estavam falando,  afinal de contas?  Que  droga  é  tremonha ?  Que farinha é essa?  É de trigo?  De milho? De mandioca ? É fina? É grossa ? Pra que serve ? Isso só pode ser coisa de bicheiro. Ou será de traficante ?  A farinha não seria para  “cortar”  cocaína? Deus me livre! E se eu for chamado a testemunhar, só porque ouvi a conversa ? Fiquei com medo.

Levantei-me e fingi que ia ao banheiro. Eu só queria era  ver a cara do indivíduo que ligara para o Joaquim.  Era feio, mal encarado e simulava estar dormindo, certamente para não se deixar trair pelo olhar. Não havia dúvida: tinha cara de traficante. Deveria ser o chefe do Joaquim, autoritário e bruto como só um traficante pode ser. Eu não tinha nada a ver com aquilo mas comecei a sentir pena do Tarquínio. Se a tremonha explodisse ele seria sacrificado. Talvez morresse ou, pior, ficasse aleijado para sempre. Teria família ? Muitos filhos ?  Ou seria ele um usuário da própria droga que produzia ? Acho que nunca mais vou viajar nesse ônibus.

Voltei para o meu lugar, carregado de angústia e medos.   Adormeci.        Só acordei mais tarde, com o barulho da explosão.

23 setembro 2011

A televisão é o ópio do povo

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 “A televisão é o ópio do povo”.  Não sei quando foi que Karl Marx disse isso, mas sei que foi há muito tempo porque a televisão nem havia sido inventada ainda. E ele estava certo porque a televisão, quero dizer, a religião,  está aí para provar isso. Pode ser que nem tudo o que  Marx disse tenha dado no seu tempo. Mas está dando certo hoje. A religião fortaleceu-se, expandiu-se e está dando  “filhotes”,  como acontece com as ações na bolsa de valores. Hoje, a Igreja Universal do Reino Divino  ganha mais dinheiro do que a matriz.  Em  outra coisa Marx também acertou, quando previu que o exacerbado consumismo do sistema capitalista levaria  a desordens sociais. E quem chama a atenção para isso, em nossos dias, é ninguém menos do que o sociólogo Zygmunt Bauman ao analisar os violentos  distúrbios ocorridos na outrora disciplinada cidade de Londres. Segundo noticiam os jornais, Bauman afirma  que  “as imagens de caos na capital britânica nada mais representam que uma revolta motivada pelo desejo de consumir, e não por qualquer preocupação maior com mudanças na ordem social”  “ Londres viu os distúrbios do consumidor  excluído e insatisfeito” Aí está.

E a crise mundial?  Enésima  edição, revista e melhorada. Os países desenvolvidos se declaram falidos e dizem que não vão mais pagar  ninguém. E os subdesenvolvidos que se arrumem. Os cientistas dão explicações para isso, cada uma mais engraçada do que a outra. Mas ninguém explicou melhor essa enrascada do que o Severino Mandacaru, que sentiu na sua modesta plantação de macaxeira as conseqüências da crise : que a sociedade, como um todo, começou a comer aquilo que ainda não havia sido produzido. Quando inventou  o  crédito bancário na forma que aí está, o capitalismo não se deu conta que de que aquilo não teria fim, e começou a distribuir bens em troca de papeis que constituíam apenas uma promessa de pagamento, devidamente acompanhada, é claro, de copiosos juros, isto é, dinheiro imaginário.  -  Hoje nem papel se usa mais, apenas telas de computador, cruz credo! - E assim, quando os americanos foram procurar o seu “fried chicken”,  os alemães suas batatas, os italianos sua polenta e os franceses seu gruyere, só encontraram papel. E explicações melosas em telas de computador.

Mas disso tudo,  quem falou sério, mostrando coragem e bom humor, e escancarando a verdade, foi o economista francês Jacques Attali quando declarou que  “nos Estados Unidos as moratórias do setor privado já começaram e que um calote da dívida pública americana só não ocorrerá graças à impressão de dólares”. O que significa mais papel.  E disse mais: “ O mestre dos Estados Unidos não é nem Keynes nem Schumpeter,  é Madoff e sua capacidade de construir dívidas”.

Madoff, se vocês se lembram, não faz muito tempo, foi o espertalhão que deu um golpe de 65 bilhões de dólares no mercado financeiro americano.  Adotando um sistema de venda de quotas de fundos em forma de pirâmide,  criado por um tal de Ponzi, um imigrante italiano que teve muito sucesso nisso até ir para a cadeia,  Madoff  arrecadou dinheiro no mundo inteiro, até a pirâmide ruir. Foi condenado a 150 anos de prisão como se o fato de cumprir a pena na sepultura pudesse restituir o dinheiro que roubou dos incautos.
“E la nave va” ...  como diria Felini.

Mas eu ia falar da televisão, e a rima me atrapalhou. Agora acabou o papel. Não faz mal, fico devendo. Como nas moratórias.

07 setembro 2011

O Colaminho

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Acordou cedo. Tinha coisas importantes a fazer, mas não tinha pressa. Deu uma volta pela cozinha, tomou café vagarosamente, pensativo, analisando os obstáculos que  encontraria  pela frente durante o dia que se afigurava  complicado.
Procurou o colaminho. Não o achou no lugar onde o havia deixado.                                Voltou-se para a mulher:

-  Você viu o meu colaminho?
-  Não.
-  Como, não? Ele não está onde o deixei.
-  Você nunca sabe onde deixa as coisas.
- Claro que sei onde deixo as coisas. Você é que mexe nelas e depois não as  coloca no lugar.
- Eu não mexo em nada do que é seu. Você sempre esquece onde as coloca e depois vem cobrar de  mim.
- Eu me lembro perfeitamente onde coloco coisas. E não aceito essas suas insinuações.
-  Que insinuações?
-  Você está insinuando que eu estou ficando  gagá. E não aceito isso.
- Eu não falei nada. Você está mesmo ficando maluco. Onde já se viu  amarrar uma caneta ao pé da mesa?
-  Você sabe perfeitamente por que eu amarrei a caneta. Não pára  caneta em lugar nenhum nesta casa. Uma vez encontrei oito canetas na tua bolsa.
-  Você anda remexendo na minha bolsa?
-  Eu só fui procurar uma caneta. Encontrei oito!
-  Não grite assim comigo! Você só sabe reclamar. Não sabe onde larga as coisas     e põe a culpa em mim!
- Agora quem está gritando é você! Assim não é possível, não agüento mais.  Eu tenho que fazer alguma coisa. Onde está o meu colaminho!? Você está arruinando a minha vida! Se você ao menos tivesse a sensibilidade de parar de  ciscar nessa cozinha e me ajudasse a procurá-lo. Onde está o meu colaminho?    Eu me mato pra fazer tudo direito, ainda  se fosse em meu benefício   mas não, não, é tudo pra você, pra família, tudo, tudo, eu já não durmo mais direito, não consigo me concentrar, as coisas desaparecem, não se acha nada, nada nesta casa, eu me esforço, não penso noutra coisa, você vai acabar com a minha vida!
Saiu,  batendo a porta com violência.

Separaram-se. E foram infelizes  para sempre.
Por causa de um colaminho.  Francamente!