10 agosto 2021

FALA, SEVERINO !

Fala Severino É começo de inverno na Serra. No Solar do Cônego, onde convivo com minha quietude e meus gambás, a neblina cobre a paisagem expondo apenas o cocoruto do Chapéu da Bruxa. Um clima de nostalgia me invade a alma e me perturba o espírito. Vago com meus fantasmas. Com eles durmo e com eles acordo. Sou um fantasma de mim mesmo.

 Tiritando de frio, Severino Mandacaru emerge das brumas com um olhar desconfiado, como se temesse uma acolhida pouco amistosa. Longe disso, agasalhei-o o melhor que pude e preparei-lhe uma birita que uso nas festas de São Joao, cuja receita não me atrevo a divulgar.

 - “Seu Galego bixiguento, como é que você some desse jeito? Saí da Catinga impiedosa, daquela terra sáfara maninha, onde nem a macaxeira consegue vingar. Fui para o Brejo da Madre de Deus, perto de Caruaru e de Fazenda Nova. Você deve conhecer pois representou ali o espetáculo da Paixão de Cristo ”.

 Tem razão Severino, lembro-me bem. Era o final da década de 50. Fui lá muitas vezes. O espetáculo durava três dias e era representado num cenário construído em pedra pelos artesãos locais, matutos pouco instruídos, porém artistas brilhantes que fariam inveja a um Michelangelo. E o mundo não sabia disso. José Pimentel fazia o Cristo e Ilva Ninho, a Mãe de Jesus. Clênio Wanderley dirigia o espetáculo e fazia o papel do Judas. Eu fazia o São Longuinho, o Soldado Romano Longinus, cego, que recupera a visão quando o sangue de Cristo, já crucificado, jorra sobre os seus olhos. Eram todos meus heroes.

 - Desculpa, Galego mas eu não vim aqui para conversar firulas e sim falar de coisas sérias, muito sérias.

 - Fala, Severino, desabafa !  Você me conhece. Enfrentamos juntos muitas encrencas durante a nossa convivência. Lembra-se de 64 ?

 -  Eu não sei o que está acontecendo comigo. Eu não sou mais nada. Eu não sinto mais nada. Eu não falo nada. Nada penso, nada cogito. Eu não   sonho. Não choro. Não rio. Não sei se estou dormindo ou acordado. Sou um zumbi, um morto-vivo.

 - Calma Severino, eu explico: Isso é causado pela Pandemonia, assim como ela é, sem acento nem endereço, que deveria ter sido uma epidemia, depois glorificada como Pandemia e finalmente absorvida e demonizada por este Pandemônio que a nossa sociedade produziu.

 Da solidão em que vivemos no meio de tanta gente, parentes, amigos, vizinhos, afetos e desafetos, admiradores, bajuladores, sonâmbulos, almas penadas  . . . e os capetas.

 Da escuridão tenebrosa que nos envolve. Num céu sem lua e sem estrelas.          Sem relâmpagos. Sem raios. Sem lâmpadas, sem faróis, sem candieiros, sem lampiões. E nem, ao menos, um vagalume.

 Do isolamento em que vivemos, sem médicos nem enfermeiras, sem barbeiros, a velha faxineira que te arrumava a casa, e o velho Biu, o quebra-galho que consertava tudo, desde o cabo de uma panela, uma lâmpada que não acende ou a prateleira que desabou no armário.

Para aqueles chamados de “terceira idade” ­- não sei quem inventou isso, nem me explicaram o que são as duas idades precedentes - a coisa fica mais complicada. Em confinamento severo, sem contato com o público, como exigem as recomendações médicas, você precisará de alguém para qualquer coisa que precise. Um pedaço de pão na padaria, uma banana na quitanda ou o papel quotidiano para limpar o fio-fó, alguém terá que buscar para você. Essa tarefa, quando possível, é assumida por alguém da família a qual, por sua vez, está empenhada na sua própria sobrevivência. Claro, você tem a internet, esse prodígio tecnológico, com suas chaves, senhas, códigos  algoritmos, que podem lhe trazer tudo o que você quer e muito do que você não quer. Mas esse é um trabalho exaustivo e complicado demais para um idoso digno desse nome.

 Portanto, meu caro Severino, se você se sente vazio, celebre esse vácuo com alguém, Faça grandes festas. Inspire-se nas cores esparramadas pelo sol na tela do firmamento. Plante um pé de manacá. Vá jogar xadrez.  Cante um frevo do Capiba. Adote um gambá.

 E lembre-se de uma coisa:   o tempo é maior bem de que dispomos. Não o desperdice. E saiba que o pior modo de desperdiça-lo é quando o passamos sozinhos. Cative seus amigos.

 Se nada disso der certo leia estes versos do Augusto dos Anjos, dê uma pirueta e solte uma gargalhada.

“Tome, Dr. esta tesoura . . . e corte 

Minha singularíssima pessoa

Que importa a mim que a bicharada roa

Todo o meu coração, depois da morte ? !