SEVERINO MANDACARU
por Luigi Spreafico
Eu canto eu faço verso
Eu canto até mi sguelá
Eu rimo no desafio
Acompanho no ganzá
Eu canto glosa e repente
E galope à beira mar...
Severino Mandacaru é uma contrafação de si mesmo. É uma vida em conflito. Um retirante às avessas.
Remando contra a corrente, Severino abandona São Paulo em busca de Toritama onde irá conhecer os frutos da caatinga: caveiras de gado calcinadas pelo sol, protegidas pelos espinhos do mandacaru.
Aos doze anos de idade, em São Paulo, Severino enfrenta, todas as manhãs, a garoa fria que lhe congela a alma. Desce do alto da Vila Maria e percorre, a pé, os três quilômetros que o separam do ponto final do bonde 34. Vila Maria!
Viaja sempre no estribo. O bonde dispara, corta a várzea com seus campos de futebol, atravessa a pequena ponte de madeira, sobe a Rua Catumbi, dobra na Celso Garcia, atravessa o Belenzinho e monta sobre a Avenida Rangel Pestana. Está na Praça da Sé. Severino se encaminha para o seu trabalho. Reduz os passos. Detêm-se, pensativo, observando os artesãos portugueses esculpindo nas pedras o que um dia será a catedral de São Paulo. Na vastidão da praça vazia, parece-lhe contemplar uma cena do Paraíso. Colunas, capitéis, volutas, troncos de anjo, formas mágicas, harmoniosas, construídas apenas com um martelo e uma talhadeira. Assombra-se. São todos Michelangelos, são enviados de Deus! Alguns são seus vizinhos no Alto da Vila Maria. Ajuda-os a construir suas casas pisando o barro que rejuntará os tijolos. Severino aprendeu a falar o português do Além Tejo, de Trás os Montes, da Cabidela. Divide com eles o caldo verde.
Encaminha-se para o escritório onde trabalha. Imprime no mimeógrafo as cartas que deverá entregar. Coloca-as, cuidadosamente, nos envelopes e parte para a jornada que o deixará com os pés em brasa. Nunca voltou uma carta sequer.
Já viajei por muitas terra
Já chupei muito cajá
Namorei loura e mulata
Branca preta e sarará
Mulhé nenhuma eu enjeito
Basta sabê me agradá
O pau de arara que transportou Severino na sua invertida retirada era um navio da Costeira. Parte de um comboio de oito navios cargueiros, quatro corvetas de guerra e sobrevoado por um dirigível, levou dezoito dias entre Santos e Recife. No porto, Severino não entende a língua que falam, mas tem sua atenção atraída pela balaustrada do cais: enormes blocos de mármore português, de um vermelho intenso entrecortado por veios lilases. Nota os sinais da erosão produzida pela brisa marinha através dos séculos.
Escola e trabalho foram moldando aquele sertanejo improvisado que não tinha, evidentemente, nem a energia nem a perseverança dos nativos, qualidades que viria a desenvolver com o tempo, à custa de muito esforço. Trabalho penoso nas fábricas, conflitos de cultura, o calor insano a causticar-lhe a pele, o pôr-do-sol no cais de Santa Rita, a lua cheia no Cais do Apolo, a poesia de Ascenço Ferreira, os frevos de Capiba, as peças de Ariano Suassuna, as palavras incentivadoras de Francisco Brennand, o chope no bar Savoy em companhia de Carlos Pena Filho foram consolidando um Severino empenhado em viver a vida como a vida lhe era oferecida.
Em Fazenda Nova, não distante de Caruaru, Severino conhece os escultores que moldam a cidade de Nova Jerusalém. Novo encantamento. Como os Michelangelos da Praça da Sé, matutos analfabetos, sem ajuda de qualquer instrumento que não seja o martelo e a talhadeira, extraem da rocha esferas com precisão milimétrica, estátuas de santos e de pecadores, madonas e bambinos, onças , macacos, araras, - e a imagem do Padre Cícero.
Severino viaja. Em Codó, no interior do Maranhão, apaixona-se pela trapezista de um circo mambembe que ancora na praça da Igreja. Contemplando seu corpo escultural, pensa: Trapezista? Deve ser aquela moça que desfila de maiô no começo e no fim do espetáculo. Rufar de tambores: ela aparece, toma o trapézio, é elevada a uma altura de quinze metros e dá um salto triplo – sem rede de proteção. Severino contrai os esfíncteres e desmaia.
Um jovem atirador de facas dispara seus dardos contornando a silhueta de uma bela mulher encostada a um biombo, com os braços abertos em forma de cruz. É sua mãe. Um palhaço acaba de levar uma martelada no dedo quando se prepara para entrar em cena. O pranto que simula na comédia que representa é autêntico.
O convívio com o circo ensinou a Severino como a vida pode ser bela. E cruel. Os deslocamentos por estradas lamacentas do interior, caminhões atolados, o sanfoneiro que tomou um porre e não apareceu, os cuidados do pai com a segurança da filha. Um mundo complexo que não encontrava nos manuais escolares.
Moço distinto se achegue
Meu canto é pra si iscutá
Mostre que tem coração
Ajude um pobre a cantá
Tire do bolso um trocado
E bote no meu borná
Em Teresina - PI Severino entra na fábrica rigorosamente às 5:30 da manhã. Sai às 8:00 da noite. Seu jantar é um litro de sorvete de bacuri. Dorme na rede molhada para suportar o calor no quarto do hotel que o abriga construído antes da invenção do ar condicionado. Nas manhãs de domingo frequenta a praia formada pela coroa de areia na margem do preguiçoso Rio Parnaíba. A praia denomina-se “ Praia da Croa”. Seguindo a tradição local, Severino funda o “Croa Crawl Crube”, no qual espera treinar as nadadoras de canelas finas com seus lamentavelmente pouco decotados maiôs.
O escasso lazer do domingo não esconde a amargura que o aflige. A penúria das condições de trabalho na indústria e na lavoura levam-no a reflexões insensatas. Um dia tudo há de mudar.
Fortaleza é um mundo diferente. Severino pratica halterofilismo nas areias da praia de Iracema, já comprometida pelo avanço do mar. Almoça lagosta no restaurante do François, não porque fosse fanático por esse prato mas porque não havia outra coisa. Nas noites de boemia, como o bom frade que leva o evangelho para as suas paroquianas, Severino recita poesias para as mariposas no meretrício da Rua Major Facundo. Em surdina, boleros de roedeira completam o quadro romântico.
O contato com a miséria no bairro do Pirambu abala ainda mais as suas combalidas convicções políticas. Sente-se um covarde, um cúmplice, um acobertador. Não pode enclausurar-se. É preciso buscar.
Pernambuco, década de 60. As Ligas Camponesas incendeiam canaviais. Greves nas fábricas tumultuam o setor produtivo. Emboscadas matam gentes.
O golpe militar interrompe os estudos já tardios de Severino. O uivo das sirenes dos carros militares na caça às bruxas torna-se insuportável.
Severino emigra. Leva consigo pouca coisa: um pôr de sol do Rio São Francisco, o cheiro dos oitis nas manhãs úmidas da Boa Vista, o apito de uma fábrica, uma tapioca da dona Joana, o choro sufocado do menino Ambrósio, um disco de Volta Seca e uma garrafinha de licor de genipapo.
Deixa muitas saudades.
Si o que eu to vendo é verdade
Si num mi falha os olhá
Tanto dinheiro na cuia
Nunca mais hei de juntá
Moço distinto obrigado
Deus lhe há de arrecompensá
Faltando poucos meses para completar oitenta anos de idade, Severino está renascendo. E deve o seu retorno à vida aos colegas da Oficina e ao menino Felipe Pena, seu professor, competente e magnânimo.
À Roberta Bomtempo e ao Miranda, Severino deve tudo isso e muito mais. Porque, com seu carinho e seu apreço, despertaram nele emoções há muito esquecidas e o impregnaram de uma energia mágica: a energia que move o sol e todas as estrelas: a sensação de estar vivo.
Notas:
1- As expressões “retirante às avessas” e “remando contra a corrente” são versos de João Cabral de Melo Neto em “ Morte e Vida Severina”.
2- Os versos do cantador foram escritos há alguns anos e fazem parte de um conto chamado “A Centenária”
3- Toritama é a cidade do interior de Pernambuco para onde se dirige Severino de Maria quando encontra o corpo de Severino Lavrador, que morreu de morte matada. De “Morte e Vida Severina”
4- A frase “energia que move o sol e todas as estrelas” é uma adaptação dos versos de Dante, na Divina Comedia: “L’amor che tutto muove. L’amor che muove Il sole e le altre stelle”
Severino, que lindo! Quanto mais eu leio mais eu gosto. Do texto e do personagem! Parece que são muitas pessoas em uma só. Severino tem uma invejável capacidade de adaptação. Qualidade cada vez mais rara nos homens. Parabéns!
ResponderExcluirSeverino....que lindas fotos. Imaginei uma casinha de porta e janela no interior do nordeste, a beira da estrada .... Essas pessoas, seus momentos. Cozinhando, simplesmente vendo o tempo passar na frente da casa, em um banco da igreja...
ResponderExcluirSeverino... que lindo texto. Imaginei os tantos retirantes, nordestinos que fizeram o caminho contrário de Severino, em busca das possibilidades da cidade grande. Um deles – Meu amado pai -Severino!
Severino Mandacaru! Agora, aos 80 anos. Amplie essa energia mágica e bote o seu bloco na rua.
O renascimento aos 80 anos é magnifíco. Sempre é tempo de recomeçar, ativar a mente, recordar memórias. Parabéns!
ResponderExcluirBetinha