24 agosto 2010

CRÔNICA PARA UM ENFERMO

No final do ano passado participei de uma oficina de crônicas ministrada pelo Professor Felipe Pena na qual os alunos escreviam sob pseudônimo, forma adotada para evitar inibições nas críticas aos trabalhos apresentados em aula. Foi uma experiência muito rica, tanto em termos do aprendizado na arte de rabiscar como, e principalmente, pelas emoções vividas no convívio com os colegas. Por isto devo ao Professor Pena uma renovação de forças e aos colegas Miranda, Noronha e Claudia Bontempo a chama da inspiração que eu não conhecia quando capengava em busca de recordações da infância. Foi lá que, com o pseudônimo de Severino Mandacaru, escrevi esta CRÔNICA PARA UM ENFERMO Fiquei sabendo, pela caneta da nossa eficiente Roberta, que o “nosso querido mestre encontra-se acamado”. E que acamou-se sob o nome de Emanuel Villanova. Fiquei preocupado e disparei alguns telefonemas para tentar saber de detalhes. Queria saber se era grave, se estava sendo bem assistido. Teria família ou não teria família?. Teria amigos ao seu lado? Queria levar-lhe alguma ajuda, por modesta que fosse. Eu já me encontrei em situação semelhante, isolado do meu mundo, esquecido em um hospital frio, cheirando a clorofórmio, sem uma palavra de consolo, sem alguém que me pudesse estender uma colher com uma sopinha quente, um biscoito mergulhado num café com leite. Sei como é duro sobreviver quando se está só e abandonado. Não obtive resultado com os telefonemas. Fiquei absorto em meus pensamentos vendo a situação agravar-se e eu aqui sem fazer nada. Horrorizado. Finalmente pensei: mas se o Mestre teve forças para escolher um pseudônimo, o mal não deve ser assim tão grave! E passei a concentrar-me no verdadeiro problema. Como foi que a Roberta descobriu que Villanova era o mestre? Há quanto tempo já saberia? Quem mais saberia? Por que é que eu não sabia? Eu, que passei semanas debruçado sobre listas, tabelas e gráficos tentando descobrir o que era o que e quem era quem. Eu, que não prestava atenção nas aulas para observar sinais e gestos, analisar sorrisos, contrações de lábios, levantar de sobrancelhas, ligar o não sei quem com o não sei qual para descobrir qual seria o quem e quem seria o qual? Vem a Roberta e , com um estalar de chicote, desvenda o mistério. Mas vejo que fugi ao meu escopo. Minha intenção era levar conforto ao nosso querido mestre. Espero que ele já se encontre junto aos seus e que esteja junto a nós na próxima quinta feira. E com isto espero também ter atendido à sugestão da Roberta – que para mim é uma ordem- de preparar uma crônica inter-semanal e fazer com que o mestre se orgulhe da laboriosidade dos seus alunos. Brava, Roberta! Severino Mandacaru

09 agosto 2010

MADONNA ESTÁ NO RIO. MADONNA MIA!

Na mesa com Madonna” – Jornal O Globo, - Rio Show de 20/11/09 “Como a Madonna”. Com este subtítulo, um trocadilho chulo e canhestro, começa a reportagem que pretende mostrar o que a diva, rainha do pop, andou comendo nos restaurantes do Rio durante sua recente passagem pela cidade. Um trocadilho que, sem dúvida, revela um velho – e espero já ultrapassado – preconceito que existe em relação às mulheres que atuam nas artes cênicas, tanto no teatro de prosa como nas revistas musicais: São todas piranhas. Esta classificação daria aos galãs de plantão o direito de gorjear suas cantadas em cima das jovens artistas. Não há, na reportagem, nenhuma foto da Madonna, seja comendo, cumprimentando um chef, visitando cozinhas, dizendo se gostou ou não da macaxeira, da casquinha de siri, do suco de maracujá ou do sarapatel. A figura da Madonna, ali, é apenas um mito, uma concepção cósmica que pretende levar-nos a orgasmos organolépticos. Mas estão lá, isto sim, as fotos dos pratos que lhe foram oferecidos, com os respectivos preços, preste atenção! Na reportagem, não sei se é esse o nome, ficamos sabendo que: “Para abrir os trabalhos” ( linda expressão, a pobre Madonna, tinha acabado de sair deles), “ sem que fosse pedido” ( queria o que? Que ela entrasse gritando: cadê o meu pirão?) “ foi servido um sushi de peixe-manteiga com ovo de codorna e azeite trufado (R$18 cada peça), especialidade da casa... que a cantora até elogiou. Em seguida, a própria cantora pediu várias coisinhas: (eu pensei logo em agulha, linha e botões, mas era comida mesmo) chips de batata doce (céus!) com tartare de peixe branco e miniagrião ( você conhece alguma folha menor do que a do agrião?) (R$ 13), spicy tuna maki (R$ 13 seis peças), aspargo salmão roll, um uramaki com aspargo empanado, salmão e abacate (R$ 21 oito peças), edamane, um tipo de vagem japonesa ( R$ 19), sashimi de agulhão (R$ 19 cinco peças) sashimi de atum e salmão (R$ 12 cinco peças)” . Caceta! Será que alguém sobrevive a isso? A descrição segue dizendo que “ contrariando o mito de que não bebe álcool a diva mandou para dentro ( artista não bebe, mandapradentro) um copinho do melhor sakê da casa, o japa Junmai Daí Ginjo (R$ 49 uma única taça e espantosos 250 a garrafa)” Espantosos 250 ?. Isso é uma merreca! Em Tókio, para tomar o melhor sakê de qualquer casa ela não pagaria menos de 600 dólares por uma garrafa. No Imperiaro Hotero ela pagaria o dobro. Vou continuar a leitura: “No dia seguinte, talvez cansada da viagem na véspera, (claro, não podia ser no mês passado) ela foi levada para jantar em outro restaurante onde, desta vez, a privacidade foi total. A cantora se instalou em uma mesa protegida por cortinas de linho branco que não permitem que se veja quem está dentro” E eu que sempre pensei que a opacidade fosse uma característica inerente a qualquer cortina para que ela pudesse cumprir a sua função. Justifica-se o cuidado. Pois não é que me contaram que existe uma casa na Barra da Tijuca onde as cortinas são dotadas de lentes de aumento para que as pessoas que passam na rua possam identificar, sem equívoco, quem está lá dentro! Nada disso, porém, me faz inveja. No mocambo onde eu morei, no bairro do Pirambu, perto de Fortaleza, eu também tinha uma cortina de caroá que não deixava ver quem estava lá dentro. Ela me protegia quando eu comia meu sanduiche de mortadela. Eu não queria que os mais pobres me vissem comendo semelhante iguaria. A reportagem - será que é esse o nome - prossegue numa descrição cheia de detalhes do que aconteceu durante o novo jantar. Com medo de que a diva pudesse rebelar-se contra o deglutório que lhe seria imposto, e levando em consideração as origens calabresas da primadonna serviram-lhe uma Salada Caprese (R$48) e atum em crosta de pão com creme de feijão branco e cebola roxa (R$78) Nada mais mediterrâneo. Madonna escapou do sushi. Dão-lhe tempo para que se recomponha. “Na quarta-feira o jantar de Madonna teve um “que” de surpreendente: comeu shiitake recheado com salmão (R$ 28), sakura mango sushi (com nori de manga e tartare de salmão (R$23), dupla de água viva (R$ 18) e ussuzukuri (semelhante ao sashimi só que mais fino, que vem sobre pedras de gelo, de R$ 45 a R$ 56 dependendo do peixe.” Óh! que surpresa! Pareceu-me ver a pobre Madonna debatendo-se na dúvida atroz entre poupar ou esbanjar, pedindo explicações ao maitre sobre como era cada tipo de peixe para poder decidir se sacrificava o seu paladar pedindo a versão mais barata (afinal, havia uma diferença de 11 reais), ou se onerava seu orçamento e pedia a versão mais cara para fazer melhor figura. Uma coisa é certa: depois de fustigada por sushis e sashimis a torto e a direito, a Norte e a Sul, a Leste e a Oeste, à esquerda e à direita, arriba y abajo, Madonna saiu, alegre e saltitante, soltando flatos em japonês. Diz a notícia que esse jantar, servido para 30 pessoas, custou R$ 3.444,54 o que dá exatos R$ 114,82 por cabeça, arredondando-se para maior a segunda casa decimal. Outra merreca! Eu mesmo, para impressionar uma namorada, jantei num renomado restaurante do Rio de Janeiro e gastei muito mais do que isso. De inicio, só para criar um clima, tomamos uma Grappa Dicciotto Lune, um nectar feito com uvas Verdicchio na costa do Adriático, nas colinas que circundam Ancona, na Itália (R$ 70 uma dose). Como entrada, um “Funghi al Cartoccio”, preparado pelo chef Flamínio, uma explosão de aromas (R$ 48). Como prato principal “Ossobuco com Fettuccine de Espinafre” (R$ 96), que chamou a atenção das mesas vizinhas. Para sobremesa: “Ravioli dolci bianco- neri al Ciocolatto”, - outra criação mágica do chef - (R$ 36). Durante esse longo percurso fomos acompanhados por um “Brunello di Montalcino – 1998”, (R$ 680) que quase não deu para os dois. Com isso, ofereci à minha namorada um jantar que custou R$ 590 por nuca, contra os miseráveis 114 que ofereceram à Madonna. Desculpe-me Madonna, mas acho que você pode melhorar a sua coreografia se me acompanhar no que come e, principalmente, no que bebe. Eu gosto de comida japonesa e freqüento restaurantes japoneses com regularidade. Mas o que eu não entendo é porque cevaram a pobre cantora com sushis e sashimis, coisa que se encontra hoje em qualquer fim de mundo, como se no Brasil não houvesse nada de original para se comer. Por que não a levaram para o Buraco da Gia, em Goiana, Pernambuco, quase chegando na fronteira da Paraíba, onde se come o melhor guaiamum do Nordeste e onde ela poderia ter deixado o seu autógrafo numa casquinha de siri patola que seria afixada na parede ao lado de nomes famosos, inclusive o meu? Por que não a levaram para conhecer a Galinha de Cabidela da Otilia, a palafita espetada no Cais da Rua da Aurora, à jusante do Rio Capibaribe, no Recife, onde Alcide De Gasperi ( que Deus o tenha, o bom homem), presidente da Republica Italiana, que após a primeira garfada estalou a língua, e exclamou: “Domine non sum dignus!”, pediu outra caipirinha e voltou a comer? E o Peixe da Comadre, no porto de Maceió para saborear uma bicuda tirada do mar e colocada no mesmo instante na panela com óleo dendê? E a lagosta ao coco do Ramirez, que era comandante da Ibéria quando desceu em Natal por causa de uma greve e nunca mais saiu? E a Cartola do Restaurante Leite, no Recife, com seus noventa e cinco anos de existência? Meu Deus, quanto desperdício! Mas, “bem está o que bem acaba”, ensina a peça de Shakespeare. No fim, todos saíram lucrando: 1º- Madonna economizou em comida no Rio. 2º - Os restaurantes divulgaram os preços dos seus pratos mostrando que são comidos por gente fina, a preços supostamente acessíveis, visando atrair clientes entre os deslumbrados. 3º - O jornal faturou alguns trocados com a divulgação do monumental evento e a publicação dos anúncios marginais, quero dizer, à margem. 4º - Os leitores, aqueles atenciosos, tiveram a oportunidade de conhecer alguns desvãos da Gastronomia carioca e aprenderam como é possível tornar complicada uma das coisas mais simples da vida: comer. Soube também que a Madonna abocanhou 10 milhões de dólares entre os empresários locais para matar a fome das crianças na África. Nada mais nobre. Espero que na sua próxima turnê pela África a Madonna consiga amealhar outros 10 milhões entre o extratores de diamantes ( ingleses, belgas, holandeses) para aplacar a fome das crianças do Nordeste. Pelo menos manteria a miséria equitativamente distribuída. Severino Mandacaru

04 agosto 2010

MEU BANCO É (QUASE) PERFEITO

                                                   Gastão esperando pelo rendimento dos seus fundos 


                                  Esta é uma edição revista e atualizada de "Meu Banco é Perfeito" 

Ninguém vive hoje sem um banco. É o que me dizem. De fato, como poderia eu pagar contas e taxas, declarar imposto de renda, receber meu salário, administrar um cartão de crédito sem a magnânima ajuda de um Banco? Impossível. Por outro lado, para usufruir dos generosos serviços que um banco lhe presta você precisa ter talento administrativo e esperteza suficiente para não ser dessangrado.
 
O fato é que o mundo moderno se estruturou sobre um sistema financeiro diabólico no qual os bancos funcionam como capetas melífluos a distribuir benesses que terão, como único resultado, o aumento do seu próprio patrimônio às custas, é claro, da ingenuidade dos  correntistas. Exagero? Possivelmente. Os bancos inventaram o crédito, através do qual passaram a emprestar dinheiro, primeiro o próprio, e, esgotado este, o recolhido de - também emprestadores - menos avisados. A recompensa pelo empréstimo são os juros. Os juros são as células cancerígenas do sistema, coisa que ocorre em qualquer organismo vivo. Esses empréstimos eram zelosamente anotados em folhas e mais folhas de papel e, agora, em telas e mais telas de computador.
 Dois ou três anos atrás os maiores bancos do mundo perderam o controle – por incompetência ou por indústria – e passaram a emprestar dinheiro que não existia de verdade, isto é, só existia nas telas do computador. Como o dinheiro não existia de fato, os mutuários não conseguiram pagar seus débitos.  Então, a economia mundial entrou em colapso. Não foi isso o que aconteceu com o sistema de crédito imobiliário nos Estados Unidos? E, como os capetas trabalham em rede, a praga alastrou-se pelo mundo inteiro. Esta é uma visão simplória, admito. Mas se aprofundarmos a visão entraremos numa zona escura e não enxergaremos mais nada. De qualquer modo, não podemos nos livrar dos bancos. É até bom passar lá de vez em quando e tomar um cafezinho. Mas nunca tomar dinheiro emprestado.

Os bancos se modernizam a cada dia. Dá gosto acompanhar a evolução tecnológica do sistema bancário, impulsionada pelo uso cada vez mais fácil do computador, o que deveria encurtar as filas nos caixas. Encurtaram? Não. Elas são pré-determinadas. Quando as filas encurtam, retiram um caixa do guchê e elas voltam ao normal. Basta observar.

Com a finalidade de transferir para o correntista todo e qualquer custo operacional, os bancos criaram os terminais eletrônicos, colocados prudentemente do lado de fora da área de atendimento pessoal. Com isto pouparam o tempo do funcionário a quem caberia fazer os lançamentos de saque, extratos, pagamentos, etc. Pelo menos esperava-se que as coisas andassem mais depressa. Andaram? Não, porque ao criarem os terminais eletrônicos, os bancos também criaram as filas dos terminais eletrônicos - e tudo ficou na mesma. Na mesma, propriamente, não, porque criaram também a curiosa figura da funcionária que percorre a fila dos caixas  com a penosa missão de deslocar o cliente dali para o lado de fora.

-- Posso ajudar, o senhor vai fazer algum pagamento ou depósito? Por que não usa o terminal eletrônico?
-- Porque a fila de lá está maior do que esta.

Cansado de dar explicações sobre as minhas preferências  no que se refere ao sofrimento humano, decidi livrar-me do incômodo daquelas perguntas de uma vez por todas:

-- Posso ajudar, vai fazer algum pagamento? Por que não usa o terminal ?
-- Só respondo na presença do meu advogado!

Certa vez descobri que podia dar uma contribuição ao Departamento de Marketing do meu banco. Eu estava no balcão, esperando ser atendido, quando a gentil moça que sempre me atendia aproximou-se, prancheta na mão:

-- Senhor Severino, que bom encontrá-lo! Eu vi que o senhor não tem um seguro com a gente. O senhor precisa fazer um seguro.
--  E por que eu deveria fazer um seguro?
--  Ora, porque se o senhor vier a faltar... que Deus o livre, os seus filhos ficarão protegidos
--  E como é que eles vão ficar protegidos se eu não vou estar aqui para protegê-los?
-- Veja: o senhor paga um seguro mensalmente, de tanto, e se o senhor vier a falecer, que Deus o livre, os seus filhos vão receber tanto e tanto pelo seguro. Entendeu?
-- Não. Deixe-me ver. Eu pago, mensalmente, um tanto, durante tanto tempo, e, pelo tanto que eu ainda pretendo viver vou ter que desembolsar um tanto considerável da minha magra aposentadoria justamente quando, pelas deficiências da idade, mais preciso dela. E aí, quando eu morrer, eles vão receber essa bolada toda e gozar a vida? Não, decididamente tem alguma coisa errada nisso.
-- Mas é assim que funciona, Seu Severino!
-- Não, não. Se você quiser fazer um seguro comigo, você tem que fazê-lo em nome do meu pai. E, nesse caso, eu pagarei a mensalidade, não ele. Aí, sim, quando ele morrer eu é que entro na bolada. É justo. Fui eu que paguei por ela. Dessa forma eu faço o seguro.

Os olhos da moça brilharam. Logo puxou um formulário e começou:

-- Perfeito! Como é o nome dele?
-- Roberto Mandacaru.
-- Casado ou solteiro?
-- Viúvo.
-- Local de nascimento?
-- Campina Grande, Paraíba
-- Data de Nascimento?
-- 28 de Janeiro de 91.
-- Como 91 !!?
-- Ah! Desculpe, 1891.
-- Como assim, 1891? Quantos anos ele tem?!
-- Deixe-me ver... noventa e cinco.
-- Ah! Mas assim não pode...
-- Por que não pode? Eu não pedi nada. Foi você quem me ofereceu um seguro. Se o banco resolver, telefone-me... antes que meu pai morra.

Registrei esta pequena história porque me lembrei do meu amigo Agildo Mielli, grande trovador, que teve seu patrimônio garfado por alguém que usou um banco como ferramenta de trabalho. Ironicamente o Agildo havia escrito, anos antes, uma de suas melhores trovas:

“Gastão, rei dos vagabundos,
Não teme crise ou desgraça.
Só deposita seus fundos
No melhor banco da praça.”

Severino Mandacaru