26 dezembro 2021

HOMEM QUE FAZ PANO

 

INTRODUÇÃO

Devo o título desta crônica à Dra. Ivone Raphael. A Dra. Ivone era a Oftalmologista que, em tempos idos, cuidava dos meus olhos para que eu pudesse ver melhor e agora cuida do que eu vejo para ter certeza de que é o melhor. E assim fixamos um pacto. Sem lenço e sem documentos.

 O HOMEM QUE FAZ PANO

Ora se deu que, um dia, não me lembro quando, nem onde, eu contei que num daqueles jantares faraônicos que tínhamos com os sócios japoneses na Fabrica de Tecidos Seridó eu havia mostrado meu cartão de visitas à Gueixa que me acompanhava. Naquela época quem não tivesse um cartão de visitas no Japão, não existia. No meu cartão constava o meu nome, endereço e a função. No verso eu havia mandado imprimir os mesmos dados em japonês. Quando a Gueixa leu o cartão exclamou: Ah ... homem que faz pano, né ?Soube depois que Ivone, ao saber desse fato, cabeça baixa e meditativa, sussurrou :  “homem que faz pano. Eis aí um belo nome para uma crônica”.

E aqui está ela. Porque panos fiz muitos. E montei máquinas para fazê-los. E construí fábricas para abrigá-las. E efetuei estudos de viabilidade para implantação de parques industriais têxteis.

No ano de 1948 eu recebia o Prêmio Nilo Peçanha conferido pela Escola Técnica do Recife. Havia concluído o curso de Mecânica de Máquinas. Viajei para o Rio de Janeiro e disputei, com suor e lagrimas, uma vaga na Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil, com alojamento na própria escola. Tudo grátis. Eu tinha onde morar ! Meu pai me mandava uns trocados suficientes para cortar o cabelo e pegar um cineminha na Rua D. Pedro onde eu assistia filmes do neorrealismo italiano. Com isso eu ia, aos poucos, substituindo o meu dialeto nativo pelo verdadeiro idioma Toscano. Um garoto feliz. Quero dizer, felizardo.

Em 1951 completei o curso. Era um técnico têxtil. Terminadas as férias eu  já conseguia um emprego. Fui nomeado professor adjunto para o Departamento de Fiação na própria escola onde me formara. A minha primeira carteira profissional consigna a data de admissão : 1 de Maio de 1952. Dia do Trabalho! E assim, comecei fazendo fios. O panos viriam em seguida.

Dois anos depois vieram as fabricas. Fábrica Itatiaia de Tecidos. Estrada do Morro do Ar, sem número, Itatiaia, Rio de Janeiro, Fim do Mundo. Mais dois anos e um salto consagrador: Fábrica Bangu, a melhor fabrica do país. Fio 120, o melhor organdi do mundo, desfiles de moda em Paris, residência em casa da fábrica, desfile de motocicleta no campo de futebol para a apresentação do time nos dias de jogo. E tudo para que ? Fazer pano O melhor pana do Brasil.

Depois, um salto no espaço. Teresina PI. Aqui é melhor ler a crônica Velho Santiago . . . e ir se familiarizando com o Nordeste, a caatinga, o meu amigo Severino Mandacaru. Para que? Fazer pano. Porque em seguida viria a Sudene e seu Programa de Reequipamento da Indústria Têxtil do Nordeste concebido por Celso Furtado. Elaboração de dezenas de projetos de modernização de fábricas. Visita a todas elas, discussão com os empresários e fabricantes de máquinas, familiarização com os problemas sociais do Nordeste, a miséria do Pirambu, em Fortaleza. E tome pano.

Mas a lista é longa. Quatro anos na Comissão Econômica Para a América Latina escrevendo estudos sobre tecnologia têxtil, cinco anos como consultor da Organização das Nações Unidas Para o Desenvolvimento Industrial. Missões na América Central, Tailândia, Indonésia, Filipinas, Cingapura. E, para coroar, a Fábrica de Tecidos Seridó, em Natal, Rio Grande do Norte, construída em associação com a Shikishima Spinnining Company, que me levou ao Japão inúmeras vezes e me permitiu produzir os melhores panos deste país.

Haja pano.      

 

 

15 dezembro 2021

O PRESIDENTE EVENTUAL

 Condenado ao confinamento determinado pela Pandemonia sem acento nem endereço, só me restou recorrer à memoria.  E trago de volta uma velha crônica que havia publicado e despublicado muitos anos atrás.

Estou transcrevendo o texto original, que havia abandonado por medo estar ofendendo nossos juízes togados. Muitas vezes, quando tentamos fazer humor acabamos por ser grosseiros e, pior, cometendo ofensas a quem não as merece. Principalmente quando tratamos de forma genérica um grupo ou uma instituição,  como é o caso presente.

Mas, depois de ler o que pensam vários dos meus “colegas cronistas” da imprensa escrita - desculpem a minha presunção - tomei coragem e mandei ver. Quem sabe assim eu consiga   receber, pelo menos, um mísero comentário neste humilde e abandonado blog. Ou, glória suprema, a visita do Japonês da Federal.

 Sou totalmente ignorante em matéria de política. Bem que tentei, no meu tempo de estudante, meter-me nas discussões, participar de comícios, opinar sobre isto e aquilo. Cheguei a ler Marx e Engels. Nada deu certo. Não demorei a entender que, com a cara e o nome que eu carregava, ninguém me levaria a sério. Então, limitei-me a cuidar das minhas tapiocas.

Isso não quer dizer que não me interessasse pelos destinos do meu país e do seu comandante maior: o Presidente. Houve uma época em que eu lia três jornais todos os dias.: O “Correio da Manhã”, “O Jornal” e o “Jornal do Brasil”.

 Ora, se deu que, em 1954, o Presidente se suicidou. Comoção geral. O povo foi às ruas, não para quebrar coisas como é comum em nossos dias, mas para prantear o seu Presidente. O lugar foi ocupado pelo seu herdeiro natural mas depois, seguiu-se uma longa discussão sobre se isso era legítimo ou não. Discussão da qual eu nada entendi.

Sucederam-se vários presidentes, sempre com muita discussão e muita briga. Entre os últimos, creio que ainda estávamos no século passado, teve um que se mandou sem dizer água vai. Alegou que havia forças ocultas que não o deixavam trabalhar. No lugar dele entrou seu herdeiro, que deu muito trabalho porque muita gente não gostava dele. Até houve um plebiscito para saber se o povo queria que ele ficasse como pau mandado, mas o povo disse que não.

Ele era muito querido pela população e fez um comício que ficou na História, o famoso comício da Central. Eu assisti a esse comício, não porque me interessasse por política, obviamente, mas porque eu desembarcara no aeroporto do Galeão, vindo de Montes Claros, e o motorista do taxi me comunicou que o trânsito estava bloqueado perto da Central do Brasil, por causa do comício. Já que eu não podia chegar ao hotel, pedi ao motorista que me deixasse perto do comício. E lá fiquei eu, em pé, bem próximo ao palanque, ouvindo os discursos. Foram muitos discursos. Quando tudo acabou eu, leigo que sou, disse pra mim mesmo: “Isso não vai acabar bem”.

 Porque, de repente, chegou um pessoal saído dos quarteis, metralhadora na mão, dizendo : “agora quem escolhe presidente é a gente”. E assim foi por muitos anos. Quando eles se cansaram de escolher presidentes, entregaram o trono a um civil dizendo:  “daqui pra frente é com vocês”.

Aí, não sei bem como, foi escolhido um novo presidente. Então, aconteceu um novo infortúnio:  Antes mesmo de tomar posse esse presidente adoeceu e foi levado para um hospital. Foi empossado lá mesmo e, no dia seguinte, veio a falecer.

Foi substituído pelo seu eventual, um nordestino tranquilo, de bigode imponente, o qual, findo o mandato, passou o cargo para outro nordestino, eleito pelo povo. Este não era nada tranquilo, ao contrário, era brabo e saiu brigando com todo o mundo. Além de brabo, era meio tan-tan  pois saiu catando o dinheiro de todo o mundo com a promessa de que iria devolver tudo depois, e com lucro. Não sei se ele devolveu mesmo porque, no meu banco, eu só tinha boletos de contas  que eram pagas com o suor do meu rosto.

Disseram também que entre as patifarias que praticou, este jovem presidente havia recebido um regalo considerado muito suspeito: Uma Fiat Elba,  zero quilômetro.  Um vexame!

Então resolveram tirá-lo, e eu nem sei bem como isso foi feito, porque, nessa altura, eu já andava tão cansado que parei de ler jornais e fui cuidar do meu reumatismo.

 E aí veio um período tranquilo em que os presidentes, todos eleitos pelo povo, passaram a trabalhar com grande empenho, embora nem todos agradassem a todo mundo, fosse quem fosse o presidente. Normal, porque isso é próprio do sistema democrático. Pelo menos foi isso que pensei porque eu, leigo total em política, andava cuidando apenas do meu laburo. Pois não é que, de novo, resolveram tirar o Presidente da vez? Acharam que este Presidente, mais exatamente, uma Presidenta, estava trabalhando mal e resolveram mandá-la embora. Isto, para muitos, foi considerado um golpe. O fato é que, no seu lugar, entrou o seu substituto eventual, tudo dentro da lei, segundo diziam os jornais, o que, obviamente, não correspondeu à opinião daqueles que  consideraram isso um golpe.  Pois agora, com golpe ou não, estão dizendo que este é igualzinho ou pior do que anterior e, por isto, vão mandá-lo embora também. Até aí eu entendo. Mas ficou-me uma dúvida.

Já expliquei que, em matéria de política, sou completamente leigo mas, que diabos, leigo também tem alma! Pois agora vou dar minha opinião de leigo e pouco me importa se me internarem num manicômio. Porque achei  esquisita  a  maneira como tudo isto está sendo feito.

Acontece que, fosse lá por que motivo fosse, atribuíram, esta tarefa a um dos Poderes da República: o Poder Judiciário. O Judiciário é formado por vários Tribunais, cada um identificado com uma sigla própria. Não sei se existe diferença hierárquica entre eles, tipo, um pai e muitos filhos, sendo o Tribunal filho um complemento do Tribunal pai, ao qual deve dar satisfação das maldades  que pratica, o que faria deste o Judiciário de verdade, a menos que o filho, quando menor, tenha sido emancipado pelo pai, não precisando, assim,  dar satisfações ao pai. Não importa, até aqui tudo bem, sabendo que o Tribunal filho que está no jogo é aquele que cuida das eleições.  

Tudo bem, mas nem tanto. Porque agora acabo de descobrir que os Juízes dos Tribunais, tanto o pai como o filho, são nomeados pelo Presidente da República, e a ele, é de se esperar, devem fidelidade. Podemos dizer que um juiz é um Juiz e que ele está acima dos interesses terrenos, portanto é imparcial. Ótimo. É assim que deve ser.

Mas aqui entra uma grande confusão. Alguns juízes pertencem simultaneamente a um Tribunal Filho e a um Tribunal Pai. Outros, só ao Pai. Tem mais: alguns juízes foram nomeados pelo presidente escorraçado, outros pelo presidente que chegou ao cargo por herança. Será difícil conseguir coerência nesse caleidoscópio de interesses. Prova disso são as suas reuniões longas e patéticas, enfeitadas por salamaleques e enriquecidas por elogios recíprocos, datas vênias, ipsis verbis, causa finita, ad perpetuam rei memoriam ... isto para não mencionar os floreios de linguagem jurídica, repetidos à exaustão para que se tornem válidos, nem os arroubos de histeria dignos de uma prima donna contrariada, para dominar o palco e comover os colegas e o público. Afinal os Juízes, ainda que cobertos pelo manto sagrado da toga, são seres humanos.

 Alguma coisa está errada. No centro dessa discussão está a definição de quem é o autêntico presidente: se aquele que foi eleito pelo povo ou aquele que ocupa o posto por herança. Ou nenhum dos dois. E quem vai resolver isso são os Juízes indicados pelos Presidentes envolvidos. Ora, esses juízes não foram escolhidos pelo povo como acontece com os presidentes. Decididamente, alguma coisa está errada. É preciso inverter essa coisa: o povo é que deve escolher os juízes. E os juízes indicarão o presidente.

 Com uma condição: os juízes removeriam aquele medonho manto fúnebre e seriam reincorporados à espécie humana.   

 ABSIT  INJURIA  VERBIS.

 Nota bene: Transcrevo o parágrafo introdutório do artigo publicado pelo mestre Nelson Mota no O Globo de 16 de Junho de 2017, na página dos editoriais:

“ Há juízes bons e maus, preparados e incompetentes, burros e inteligentes, honestos e desonestos, embora todos, ou quase, se considerem num patamar  acima do cidadão comum, pelo poder de decidir a vida e a morte de quem transgride  a lei.”

 ABSIT  INJURIA  VERBIS

 

 

 

 

 

 

 

 

12 setembro 2021

A ALDEIA DA BERNARDETE

 

                                                                                  

                                                                                       Fala Marcos Prado *

 *Membro do Conselho Estadual de Cultura do Estado de Pernambuco

“Numa síntese que se queira avaliar para historiografia de uma nação ou mesmo de um estado como integrante de um povo e seus elementos urbanos, a façanha inicial será partir da história das pequenas células de aglomerados humanos e sociais, seja qual for o seu tempo de existência e a sua dimensão territorial no mapa geral do país.

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O livro de Bernardete Serpa me faz confiar, esperançoso, na grande História Geral de Pernambuco ainda não escrita. A autora, num esforço isolado e heroico de pesquisa, baseada na memória e na oralidade como peças fundamentais a esse almejado tipo de historiografia, nos oferece eu diria uma obra de magnânimo interesse, oportuníssima como subsídio ao capítulo dos sentimentos e das afetividades humanas.  

Livros como este, painel da história sentimental de uma “aldeia”, devem ser lidos com o fôlego de uma paixão.”

 

 Estes são textos escritos por Marcos Prado para a orelha que compõe o livro de Bernardete Serpa “ A VIDA NA MINHA ALDEIA “, publicado pela Editora Bebecco, de Olinda – PE, em 2011.

 A “aldeia” de Bernardete era a cidade de Paulista, em Pernambuco, não muito distante de Recife. Nela havia um conglomerado industrial criado pela família Lundgren onde se destacavam duas fábricas de tecidos que empregavam pelo menos 6.000 operários. Considerados os dependentes temos um total de 24.000 pessoas.

 Hoje sinto-me extremamente feliz e orgulhoso por saber que pisei o mesmo chão em que pisou Bernardete, respirei o mesmo ar junto aos Bambuzais e bebi  da mesma água da Levada por onde andou Bernardete. E choro quando me lembro do apito agudo do trenzinho que passava na frente da minha casa para abastecer de lenha as caldeiras da Fábrica Aurora.

 Eu cheguei em Paulista em 1942, portanto com 12 anos de idade, saindo de São Paulo com minha mãe e duas irmãs, em uma viagem conturbada,  durante a Segunda Guerra Mundial, a bordo de um navio da Costeira chamado Itaquicé. Meu pai já estava lá, trabalhando como Gerente das Oficinas Mecânicas da Fábrica Aurora. Em 1944 meu pai me matriculou no curso industrial de mecânica de máquinas, na Escola Técnica do Recife, no bairro do Derby. Eu dormia no internato da Escola e só ia a Paulista nos fins de semana, viajando na famosa  “sopa”, cheia de jacas e cabritos.

 Morava na Rua do Sol, a poucos metros dos Jardins do Coronel, citados por Bernardete em seu livro. Minhas irmãs brincavam no meio da rua por serem mais jovens. Eu me poupava e espiava pela janela, enterrado no meio dos livros, furadeiras, fresadoras, tornos e equações. Ganhei o apelido de CDF.

 Para terminar, quero lembrar aos meus incautos leitores que um dos capítulos importantes da minha vida eu o vivi em Paulista. Está narrado na crônica Nº 23, de 31 de Julho, com o título de “O  Coronel e Eu”.

 Obrigado Bernardete por ter perfurado uma veia das minhas emoções aos noventa anos já passados. E vou terminar com um simples verso que usei em algum lugar, há algum tempo :

 “ Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura

    Onde pudesse encontrar vida mais pura. ”

 

 

 

10 agosto 2021

FALA, SEVERINO !

Fala Severino É começo de inverno na Serra. No Solar do Cônego, onde convivo com minha quietude e meus gambás, a neblina cobre a paisagem expondo apenas o cocoruto do Chapéu da Bruxa. Um clima de nostalgia me invade a alma e me perturba o espírito. Vago com meus fantasmas. Com eles durmo e com eles acordo. Sou um fantasma de mim mesmo.

 Tiritando de frio, Severino Mandacaru emerge das brumas com um olhar desconfiado, como se temesse uma acolhida pouco amistosa. Longe disso, agasalhei-o o melhor que pude e preparei-lhe uma birita que uso nas festas de São Joao, cuja receita não me atrevo a divulgar.

 - “Seu Galego bixiguento, como é que você some desse jeito? Saí da Catinga impiedosa, daquela terra sáfara maninha, onde nem a macaxeira consegue vingar. Fui para o Brejo da Madre de Deus, perto de Caruaru e de Fazenda Nova. Você deve conhecer pois representou ali o espetáculo da Paixão de Cristo ”.

 Tem razão Severino, lembro-me bem. Era o final da década de 50. Fui lá muitas vezes. O espetáculo durava três dias e era representado num cenário construído em pedra pelos artesãos locais, matutos pouco instruídos, porém artistas brilhantes que fariam inveja a um Michelangelo. E o mundo não sabia disso. José Pimentel fazia o Cristo e Ilva Ninho, a Mãe de Jesus. Clênio Wanderley dirigia o espetáculo e fazia o papel do Judas. Eu fazia o São Longuinho, o Soldado Romano Longinus, cego, que recupera a visão quando o sangue de Cristo, já crucificado, jorra sobre os seus olhos. Eram todos meus heroes.

 - Desculpa, Galego mas eu não vim aqui para conversar firulas e sim falar de coisas sérias, muito sérias.

 - Fala, Severino, desabafa !  Você me conhece. Enfrentamos juntos muitas encrencas durante a nossa convivência. Lembra-se de 64 ?

 -  Eu não sei o que está acontecendo comigo. Eu não sou mais nada. Eu não sinto mais nada. Eu não falo nada. Nada penso, nada cogito. Eu não   sonho. Não choro. Não rio. Não sei se estou dormindo ou acordado. Sou um zumbi, um morto-vivo.

 - Calma Severino, eu explico: Isso é causado pela Pandemonia, assim como ela é, sem acento nem endereço, que deveria ter sido uma epidemia, depois glorificada como Pandemia e finalmente absorvida e demonizada por este Pandemônio que a nossa sociedade produziu.

 Da solidão em que vivemos no meio de tanta gente, parentes, amigos, vizinhos, afetos e desafetos, admiradores, bajuladores, sonâmbulos, almas penadas  . . . e os capetas.

 Da escuridão tenebrosa que nos envolve. Num céu sem lua e sem estrelas.          Sem relâmpagos. Sem raios. Sem lâmpadas, sem faróis, sem candieiros, sem lampiões. E nem, ao menos, um vagalume.

 Do isolamento em que vivemos, sem médicos nem enfermeiras, sem barbeiros, a velha faxineira que te arrumava a casa, e o velho Biu, o quebra-galho que consertava tudo, desde o cabo de uma panela, uma lâmpada que não acende ou a prateleira que desabou no armário.

Para aqueles chamados de “terceira idade” ­- não sei quem inventou isso, nem me explicaram o que são as duas idades precedentes - a coisa fica mais complicada. Em confinamento severo, sem contato com o público, como exigem as recomendações médicas, você precisará de alguém para qualquer coisa que precise. Um pedaço de pão na padaria, uma banana na quitanda ou o papel quotidiano para limpar o fio-fó, alguém terá que buscar para você. Essa tarefa, quando possível, é assumida por alguém da família a qual, por sua vez, está empenhada na sua própria sobrevivência. Claro, você tem a internet, esse prodígio tecnológico, com suas chaves, senhas, códigos  algoritmos, que podem lhe trazer tudo o que você quer e muito do que você não quer. Mas esse é um trabalho exaustivo e complicado demais para um idoso digno desse nome.

 Portanto, meu caro Severino, se você se sente vazio, celebre esse vácuo com alguém, Faça grandes festas. Inspire-se nas cores esparramadas pelo sol na tela do firmamento. Plante um pé de manacá. Vá jogar xadrez.  Cante um frevo do Capiba. Adote um gambá.

 E lembre-se de uma coisa:   o tempo é maior bem de que dispomos. Não o desperdice. E saiba que o pior modo de desperdiça-lo é quando o passamos sozinhos. Cative seus amigos.

 Se nada disso der certo leia estes versos do Augusto dos Anjos, dê uma pirueta e solte uma gargalhada.

“Tome, Dr. esta tesoura . . . e corte 

Minha singularíssima pessoa

Que importa a mim que a bicharada roa

Todo o meu coração, depois da morte ? !

 

 

27 maio 2021

O Bolodório

O Bolodório 

O Bolodório

 

Companheiro inseparável da verborragia é o bolodório. Mais ameno do que aquela este, ainda assim, enrosca-se em nossas mentes num palavreado redundante, repetitivo e enfadonho. Basta observar nos noticiários da imprensa, falada ou escrita, como discutem políticos e comentadores, repetindo chavões e conceitos gastos e tautológicos. Sem falar na linguagem chula e ofensiva quando discutem entre si.

Eu mesmo tenho procurado me policiar quando me vejo cacarejando numa roda de amigos, ou martelando bravatas que o destino me levou a gravar em papel. Por falar nisso, o livro está se difundindo, o que me deixa muito feliz. Acabo de encontrar um, em um Sebo de São Paulo. Comprei-o e o estou relendo como se novo fosse, anotando as verborragias e bolodórios com que castiguei meus incautos leitores. O que me faz lembrar do meu amigo Cândido Albino das Neves, aquele brancola fogoió,  perdido em Cabaceiras, na austera Paraíba.

Cansado da mesmice a que estava condenado, Cândido resolveu dar no pé. Em sua anástase, ressurgiu com alma nova. Mais puro, mais indulgente, mais humano. Antropomórfico, viu-se representado por um deus de oito braços abarcando um globo terrestre bífido que ele tentava manter unido. A seus pés uma cártula indicava o seu destino. Sua dromomania faria o resto. Temia ser considerado capto da mente e, antes que isso se confirmasse, mandar-se-ia para outros mundos. Novas terras, nova gente, novos ares. Novas cores, novos sons, novos sabores, novos amores.

Sua heterotopia deu-lhe fama. Fama e tédio. Não suportando mais a monotonia em que se metera, ouvindo bolodórios daqueles piriricas o tempo todo, excogitou sair-se da enrascadela e demandar por novos ares. Deixaria seus alunos com o assistente, aquele samango lutulento e mendaz que não fazia outra coisa senão preparar pernadas para tomar-lhe o lugar. Pois agora o teria.

Palavras, para que vos quero ?  Para ter uma verborreia ?  Para clamar aos quatro ventos ?  Será que com elas consigo fazer rir ? Fazer chorar ?  Saberei aproveitar as que me vieram nos sonhos como no caso de “A Pena da Morte”, quando vaguei a esmo, sem saber onde pousar o corpo nem o espírito:

“A pena desenhava no ar letras malfeitas

Que eu arrumava sem zelo, em linhas tortas

Para que fossem consideradas letras mortas

E assim passou-se o tempo

Minha alma levitava em desatino

Recusando-se a cumprir o seu destino:

Mergulhar no espaço sideral que eterno dura

Onde pudesse iniciar vida mais pura”


Palavras, palavreado, palavrório, tagarelice, algaravia,  cantilena, bolodório ...

Agora chega. Vou cuidar das minhas tapiocas.

 

10 maio 2021

A Verborragia de todos nós

A Verborragia de todos nós 

“ Verborragia é sangria desatada “.

 Pelo menos era isso que dava a entender o Severino Mandacaru quando era instado a cumprir alguma tarefa com rapidez. Ele dizia:  “ Danou-se, pra que essa sangria desatada ? ”

 “ Vou explicar, Severino. Mas antes, me diga uma coisa: como vai o teu confinamento ? ”

“ Entre quatro paredes, como todo mundo “.

 Pois é.  A Pandemonia nos apanhou a todos, sem acento nem endereço e já lá se vão um ano e dois meses. Desmantelou tudo. A economia, o convívio social, o relacionamento entre amigos. e, suprema desgraça, os laços entre pessoas de uma mesma família. Os políticos ficaram mais políticos. Os corruptos ficaram mais corruptos. Os governantes governam menos e alguns até se transformaram em mercadores da governança. Vejam bem : eu disse “alguns”, o que significa que “não são todos” . Se são muitos ou poucos eu não sei.

 Perguntei ao Severino como andava o seu confinamento justamente porque cheguei à constatação de que a privação do convívio social durante tanto tempo levou as pessoas, todas as pessoas pandemonizadas, a uma loquacidade incontrolável, disputando a primazia da palavra, despejando discursos vazios e repetitivos, muitas vezes defendendo teses contraditórias, convencidas de que estão agindo por inspiração divina. Como o encontro pessoal não é possível, utilizam-se os WhatsApp da vida e o telefone celular. É difícil e penoso ouvir o seu interlocutor sem poder interrompê-lo nem que seja para felicitá-lo pelas suas ideias. Mas devo fazê-lo pois preciso passar por essa catarse para completar o que me resta nesta vida provecta alegre e feliz que minha família está me proporcionando, ao lado da minha esposa.

Pequenos conflitos são inevitáveis mas a discussão honesta e civilizada, ao lado do respeito pelas ideias alheias, acaba restabelecendo a harmonia.

 Por força do meu trabalho desenvolvi a fama de mandão. Fui mandão sim, nas fabricas em que trabalhei. Passei uma vida dando ordens em fábricas onde prevalece a responsabilidade pelas ordens emanadas e onde o menor vacilo pode resultar em grandes prejuízos. Mas, na família, também há situações em que você precisa tomar atitudes severas para manter o barco flutuando, levando-o até o porto.

Resta-me o consolo de que, durante a minha carreira, recebi inúmeras manifestações de apoio.

 

 

19 abril 2021

E aí Garela, tudo bem ?

E aí Garela, tudo bem ? 

Acoimado que fui nas mídias sociais só porque me recusei a discutir política na forma turbulenta em que ela hoje é feita, em que todos se acham iluminados e detentores exclusivos do segredo do Santo Graal, tive que encontrar alguma coisa que pudesse dar um pouco de alegria a estes rabiscos. Logo agora que entrei no último período do padrão cronológico com que meço o escoamento do tempo que ainda me cabe nesta efêmera existência.

Mas antes de mais nada, quero agradecer ao meu incauto leitor (ou leitores, se tiver mais de um) por ter tido a coragem de abrir esta crônica, apesar do título estapafúrdio que carrega. Ou que, por comiseração, tenha pensado que fui brindado com uma patranha do corretor ortográfico. Nada disso. O título é meu, em toda a sua plenitude, e significa “perdiz que está no cio”. Entretanto, não pretendo usá-lo com essa acepção. Vou explicar.

Todo mundo conhece aquele chinesinho simpático e inteligente que está sempre no YouTube ensinando receitas para curar as   mazelas que nos atacam o corpo e o espírito. E o faz com muita competência. Chama-se Peter Liu, é médico, fala perfeitamente o português brasileiro mas com um sotaque evidentemente chinês. Nos inúmeros vídeos que publica, ele sempre se dirige ao seu público dizendo : “Olá, pessoal, eu sou  Peter Liu etc. . . .” Todavia, em um deles, eu o ouvi dizendo  “ Olá, Garela !, eu sou  Peter Liu, etc . . .

“ Obviamente ele queria dizer  “ Galera “ mas a sua fonética não o permite. É sabido que o chinês troca o R pelo L, e vice-versa. Quem já foi ao mercado da Rua 25 de Março, em São Paulo, sabe disso. E, se você perguntar à chinesinha da loja de eletrodomésticos que está te atendendo se o produto que você escolheu é autêntico, ela dirá: “Não senhor, mas é genélico galantido”.  

Tenho muito apreço pelos Chineses, independentemente do seu sistema político e dos vitupérios de que vêm sendo alvo ultimamente. Tive contato com profissionais chineses do  meu ramo, não tão grande como o dos japoneses mas o suficiente para consolidar minha admiração por eles. Um exemplo simplório disso foi quando, em Natal, eu preparava a implantação da Fábrica de Tecidos Seridó e o Grupo Empresarial me pediu que elaborasse um ante projeto de malharia, que seria oferecido aos chineses. Um grupo de técnicos chineses veio a Natal para discutir o projeto. Dois dias antes, eu havia sofrido uma luxação no tornozelo direito. Doía muito e eu mancava, caminhando com certa dificuldade. Mesmo assim fui à reunião. No final, quando todos se dispersavam, um dos técnicos me abordou e disse :

“ Eu notei que o senhor parece que está machucado.” Relatei o que me havia sucedido. “ Se quiser, gostaria de examiná-lo. Após o jantar irei ao seu quarto.” O técnico, agora médico, virou meu pé pra cá e pra e pra lá, pra cima e pra baixo, apertou aqui e ali, deu dois suspiros e desejou Boa Noite. E eu dormi como um Anjo. No dia seguinte não sentia mais nada.

Eu falo mais sobre os Chineses em outro lugar e em outra época. Está na Crônica nº 85 de 12 de Maio de 2012. Faz um tempinho, hein ?

 

  

 


02 abril 2021

O Ar das Coisas

O ar das Coisas Mas, por que quis eu retirar o ar das coisas ? E que “coisas” eram essas ? A resposta me veio pelo Severino Mandacaru. Foi ele que me admoestou em tempo hábil. Emergindo das brumas do Outono, sua silhueta foi tomando corpo e ele começou seu discurso com uma frase clássica:

“ Seu galego safado, o que você andou aprontando ? Soube que você saiu por aí dizendo que iria “tirar o ar das coisas” sem explicar o que eram as coisas nem o ar. Tá ficando leso, é ?

“ Calma, Severino. Eu apenas estava me dedicando a retirar o ar do ambiente em que vivem algumas coisas, por motivo nobre. Porque, certas coisas, em contato com o ar, oxidam. O ferro, por exemplo, enferruja, o leite, talha e o caldo de cana fermenta. Além disso, eu não estava inventando nada. Eu apenas estava cumprindo ordens do Flamínio. Lembra quando ele disse que eu ia trabalhar ? Ele me explicou : ”

“ Tenho muitos produtos no Bistrô que devem ser consumidos frescos e a melhor maneira de conservá-los é a embalagem a vácuo. E um belo dia chega o Flamínio com uma camionete e despeja uma máquina seladora a vácuo e enormes caixas contendo nozes, amêndoas, avelãns, castanhas, sementes de girassol e uma quantidade enorme de cereais. Agora divirta-se e me avise quando alcançar a eficiência de 90 por cento.”

Assim foi e assim será.

As voltas que o mundo dá ! ! !

 

 

31 março 2021

Memórias de um Vácuo

 

As voltas que o mundo dá! Que futuro nos reservam os caprichos do destino ? Não, não foi o corretor ortográfico que escreveu isso aí. Quem sugeriu esse título foi o Flamínio, lembram ? Aquele pirado  . . . Epaa . . . eu quis dizer “inspirado” (agora já foi), aquele pirado empresário que criou, juntamente com o Jurandir, seu colega de piração,  a  “FLAJUR – Turismo de Aventuras”, que nos proporcionou  excursões emocionantes para conhecer a gastronomia e o mundo dos vinhos na Argentina, Chile e no Sul do Brasil.

 E, por que o título ? Porque eu não estava fazendo nada. Eu tinha virado vácuo. Eu era o vácuo dentro do vácuo. Vácuo no tempo. Vácuo no corpo. Vácuo na alma.

E assim passou-se o tempo. Durante o dia eu me sentava voltado para o Poente, esperando pelo Crepúsculo. Durante a noite eu me sentava voltado para o Nascente  esperando pelo alvorecer.

Até que um dia o Flamínio, com voz solene, falou:

 “ Seu vácuo acabou. Aqui está a sua máquina. Trate-a como você tratava as cardas e os filatórios. Você vai trabalhar e será remunerado, como um bom proletário, como aqueles que você protegia nas fábricas de tecido. Ganhará por produção como ganhavam as tecelãs e os contramestres. E ficará feliz quando o índice de eficiência alcançar os 90 por cento.

 E eu passei a extrair o ar das coisas. E soltá-lo no firmamento, oxigenando o meio ambiente. 

 Que voltas o mundo dá !

  

 

16 março 2021

Dever de casa : Contar os Mortos

Dever de Casa:contar os mortosrtos 

Nunca imaginei que atingida a idade provecta em que me encontro eu tivesse que me incumbir de semelhante missão. Isso mesmo : contar quantos cadáveres foram produzidos pela Pandemonia sem acento nem endereço. Na semana que vai do dia  6 ao dia 13 de Março de 2020 foram abatidas 12.954 almas pelo Coronavirus, o que dá um valor médio de 1.850 mortos por dia neste país. Para termos uma ideia do que esta cifra significa, reporto-me ao dia em que comecei a anotar os números desta dança macabra. Em meados do mês de Abril andávamos por volta dos 150 óbitos por dia.

 A curva foi crescendo rapidamente até chegar a um ápice de 1.038 em 30 de Junho. Daí, por força divina ou pelo bom comportamento de nossas almas, a curva despencou e chegou  a 344 casos, medidos pela media semanal, em 7 de Novembro de 2020. Alegria geral em toda a nação. Vamos comemorar. Tragam cerveja e carne ! O Natal vem aí. E o Ano Novo ? E o Carnaval ? Está tão perto ! Sim, o Carnaval está perto . . . Mais uma vez tenho a satisfação e o orgulho de citar Sidarta, o Araujo, pela sua visão profética sobre o que iria acontecer com a nossa Pandemonia ao descrever o Carnaval de Olinda, em Pernambuco:

“Fevereiro de 2020, Carnaval em Olinda, Pernambuco. Cerveja, cachaça, e milhares de pessoas subindo e descendo ladeiras, um prodígio de organização espontânea que logra proteger músicos e carros de som do caos turbulento. A multidão enche as ruas, pula, grita e se liberta de tudo o que não é amor. Um povo em gloriosa intimidade consigo mesmo. Minha visão se turva de cores, sons e cheiros. Seria tudo isso uma alucinação?  Fecho os olhos e tento vislumbrar o futuro. O que será preciso fazer para deter a explosão planetária  do coronavírus ? Será o fim de beijos, abraços e convívio? Sobreviveremos a todo esse isolamento? Haverá Carnaval no ano que vem ? Escuto com nitidez a voz de Caetano Veloso: - Não se esqueça de mim/Não desapareça ”

Em 14 de Fevereiro de 2021 a média semanal já havia alcançado 1.079 óbitos. Em de 13 de Março saltou para 1.850. Ou seja um aumento de 70 por cento em apenas um mês ! Para onde vamos ? O que devemos fazer ?  Quem nos orienta ?

Orientação é o que não falta. Cada autoridade diz uma coisa e todas elas brigam entre si. A economia, sufocada pela Pandemonia, está em frangalhos e esses frangalhos são administrados por outros frangalhos, todos raivosos, em permanente conflito. Dos legisladores não vou falar, por falta de competência. E antes de ir embora apresento minhas escusas:  absit injuria verbis, data vênia”, não é, Senhor Todo Mundo ?

 

 


 

 

04 março 2021

Um pouco de mim mesmo

 

E  já que é preciso mudar, mudemos. Começo descaradamente falando de mim mesmo como se eu fosse o epicentro dessa onda sísmica que chamei de Pandemonia, sem acento nem endereço. Confinado entre quatro paredes, tolhido nos movimentos do corpo pela vetustez da idade, só me resta escarafunchar os meandros da memória à espera de que uma lamparina me ilumine. Para que ? Para falar de mim mesmo ! Coisa feia, dizem uns. Concordo. Até Dante Alighieri criticou esse hábito pernicioso de incomodar os leitores. Então, vamos ao que conta.

 Em Setembro último aconteceu algo que me deixou perplexo e extremamente feliz. Minha filha Flávia reuniu parentes e amigos para fazer-me uma surpresa: a edição, em livro de verdade, das Memórias, aquelas do Vago que andava meio perdido no tempo e no espaço.  

E, quando menos espero, me vejo diante de uma bela encadernação. 345 páginas.             

ISBN 978-40-0O65-86823-40-0

São livros ! Preciso distribui-los. Começo a preparar a lista dos amigos. Mas, e os autógrafos ?  Os autógrafos !

Vaidoso como um pavão, danei-me a disparar autógrafos como se os meus incautos leitores não pudessem perceber a vaidade embutida. Aos mais íntimos, escrevi palavras de carinho e incentivo. Aos demais, escancarei minha alma com coisas do tipo “ao amigo . . . “ um pedaço da minha vida” ou “um pouco de mim mesmo”  ou  “um pedaço de mim mesmo”.

Epa !!! A lamparina acendeu ! Já vi isso em algum lugar. Corri para abrir o gigante livrinho do Sidarta, o Ribeiro. Estava lá, “PEDAÇO DE MIM”. No artigo, o famoso biofísico trata das amputações que sofremos em nosso corpo e suas consequências. Eu entendi, de pronto, o que isso queria dizer pois, por volta dos 30 anos de idade, eu fui operado de apendicite. Durante a convalescência eu sentia uma dor na barriga, o que é normal durante o período da cicatrização. Mas essa dor voltou aparecer, esporadicamente, durante mais de um ano. Voltei ao médico  várias vezes e ele me dizia, com ar filosofal, esticando a palavra e empinando as sobrancelhas : “ Remi...iniscê...ncias ...” e nunca me explicou que diabo era aquilo.    

Ao tratar a amputação de partes do corpo, Sidarta explica:      “Frequentemente, as penas psicológicas e sociais da amputação vêm acompanhadas de uma dor mais bruta, fruto da percepção fantasmagórica do pedaço perdido” . . . . . . .   “Decepado de forma acidental, o membro leva consigo terminais nervosos que não se se reconstituem no coto”.

E a mutilação da alma ?  Dos sonhos decepados ? Dos amores destruídos ? Dos desejos ceifados ?  Conseguiria o cérebro  “transformar em dor a saudade do pedaço que perdeu” , como diz     o próprio Sidarta ?  

Reminiscências . . . !  Dr. Evandro, médico cirurgião.  Morava na Rua Manoel Borba, no Recife. Eu morava numa pensão da Praça Maciel Pinheiro. Bons tempos aqueles.    

 

 

16 fevereiro 2021

A Mansão no Paraiso

 

 “ É preciso mudar para que tudo fique como está.” 

Esta declaração foi feita por Giovanni Tommaso, conde de Lampedusa, na obra  “ Il Gattopardo ”, onde ele narra a decadência da aristocracia italiana e a luta de Garibaldi pela unificação da Italia.

Se você não mudar, você não permanece o mesmo, você regride, pois tudo à sua volta estará progredindo, inclusive a Pandemonia, essa praga inclemente que nos mantém entre quatro paredes, perambulando como almas penadas. E assim vamos levando, alimentados por comida que nos chega no lombo de uma motocicleta, e remédios entregues pelo correio. No Banco, ninguém pisa mais e o dinheiro circula nas telas do celular. Pagamos contas e fazemos consultas médicas com os APPs ou Tizapps, e trocamos informações  através das mídias sociais, esse prodígio tecnológico que tanto nos pode elevar intelectualmente como imbecilizar pela resto da vida. E cuidado que, como qualquer goiaba bichada, elas chegarão com seus hequers, feique níus e a alma do capeta disfarçada em querubim alado. Cuidado ainda maior com os algoritmos programados para determinar como vai ser o teu futuro, bagunçar o teu presente e escarafunchar o teu passado.

Portanto, como aconselhou o Conde de Lampedusa, estou mudando. Fiz uma visita ao meu bambuzal no Solar do Cônego, onde passei tantos anos cuidando dos meus gambás, jacus, saíras e micos, e contemplando o Chapéu da Bruxa. Ao longe, a  Montanha de Narayama impunha sua majestade  sobre o vale, esperando novas visitas. Os deuses, me olhavam de soslaio. Eu disfarçava e fingia contemplar a neblina.

E assim voltei ao meu Castelo, com seus ditosos 40 metros quadrados. Uma coisa porém, havia mudado: as pernas que me sustentam não são mais as mesmas. O centro de gravidade perdeu seu prumo. O equilíbrio é incerto. Deslocar-se é uma aventura.

Foi quando meu filho me convidou para uma caminhada, Como ele me acompanhava, aceitei de bom grado. A poucos metros do Castelo, bem próximo do Bistrô Primavera, entramos por uma vereda arborizada e bem pavimentada. Andamos durante cinco minutos até chegarmos a um imenso jardim florido. Nele, três bucólicos chalés, distantes entre si, pareciam formar a ante sala do Paraíso. Num deles, um portal em arco era coroado por um bouganville lilás. Parando na frente, meu filho decretou:

“Aqui está sua nova residência”

E foi assim que eu me mudei para a Mansão no Paraíso.

 

28 janeiro 2021

SIDARTA

 

Encontrei no Sidarta Gautama o Buda que viveu no Século  VI, as palavras de consolo e incentivo de que precisava para sobreviver neste mundo de Pandemonia, sem acento nem endereço, a que fomos submetidos. O confinamento domiciliar, obrigatório para os idosos e desocupados e o “home work”, que resulta na mesma coisa para os que trabalham, bem como a impossibilidade de circulação livre de pessoas, são medidas profiláticas imperiosas para impedir o avanço da Pandemia. Os dados divulgados pelas “otoridades” sanitárias mostram que esta situação vem se agravando a cada dia. Diante desse quadro, as esperanças de um mundo melhor vão se desvanecendo. O relacionamento entre os grupos sociais vai-se deteriorando.  As pessoas se tornam apreensivas e sentem medo. Cria-se um clima de desconfiança e ninguém se entende mais.

 Como se não bastassem essas mazelas, constatamos que a vida do cidadão virou um pesadelo com o emaranhado de exigências burocráticas as quais, graças ao avanço tecnológico, só podem ser desvendadas através do celular, com o apoio de mil penduricalhos criados por “apepês” e seus complementos que nos invadem a alma e o cérebro  com uma publicidade porca e nefasta como se fôssemos todos débeis mentais. É de graça? Sim. É tudo de graça, desde que possamos digerir a propaganda desvairada.  A indústria alimentícia, e o seu coadjuvante, a farmacêutica, que o digam.

 Na vida quotidiana estamos atrelados a um sistema político-administrativo totalmente atrofiado, onde predominam disputas internas, conflitos de poder, dissipação de recursos, interesses espúrios, tudo isso sustentado, em sua iniquidade, pelo suor dos trabalhadores mais humildes, os que se chamavam antigamente  de proletários. E por falar nisso, o micro empresário, esse proletário moderno, é penalizado por trabalhar.

Para “facilitar” sua vida, o micro empresário foi convidado a acolher-se a um programa ironicamente denominado “Simples”, que transferiu para ele todas as tarefas de uma intrincada legislação fiscal que nem o seu contador consegue acompanhar, inclusive a de provar que não está roubando. Basta ver o sistema de tributação de sua empresa, criado inicialmente para isentá-lo de alguns impostos. Só para ver um detalhe, existe coisa mais complicada (para não dizer inútil) do que um Danfe?

 E a política? O Estado do Rio de Janeiro, que já foi Capital da República, tem hoje cinco governadores destituídos do cargo  cumprindo pena em cadeia, ou sob processo.

Feita essa digressão, volto ao problema que nos aflige:

A Pandmonia, sem acento nem endereço, e seus efeitos deletérios sobre o comportamento das pessoas em confinamento.

Dizia eu que havia apelado ao Buda Sidarta à procura de ensinamentos e consolo. Para começar, separei algumas frases do imenso ideário de santo filósofo.

  Em nossas vidas, a mudança é inevitável. A perda é inevitável. A felicidade reside na nossa adaptabilidade em sobreviver a tudo de ruim.”

“Não se combate ódio com ódio, mas sim com amor”.

“O ódio nunca desaparece, enquanto pensamentos de mágoas forem alimentados na mente.”       

“Sua tarefa é descobrir o seu trabalho e, então, com todo o coração, dedicar-se a ele.”

 Epa !  Aconteceu algo. Enquanto meditava sobre as frases, caí no sono. Não sei quanto tempo dormi mas agora, esfregando os olhos, eis que me vem à mente a palavra SIDARTA, cantada “sotto voce” por um grande amigo meu de Brasília.                                                                                                                                                             E me aparece um outro Sidarta. Não o Buda, mas um Sidarta vivo e real, de corpo e alma.

SIDARTA RIBEIRO, neurocientista de carreira internacional, autor de “Limiar”, um gigantesco livrinho que nos fala de ciência, política, educação, e onde ele desmascara a hipocrisia com que as leis tratam o “homo sapiens” de nossos dias. Vejam bem o que ele nos ensina logo de saída:

“Se queremos sobreviver a nós mesmos, precisaremos abandonar os hábitos paleolíticos de competir em vez de colaborar, acumular em vez de distribuir. Já passou da hora de um “upgrade” em nosso “software.”

Atualíssimo, Sidarta Ribeiro faz uma longa análise da posição do Brasil no campo cientifico. Na página 38 explica:

“Nos últimos vinte anos, fizemos enormes investimentos em            ciência, tecnologia e inovação, mas podemos perder tudo o que foi conquistado se não conseguirmos acompanhar a revolução tecnológica 4.0.”  . . . . . . . . . . A desigualdade econômica vem aumentando, a insegurança jurídica impera e a burocracia caprichosa dificulta toda a pesquisa. Nosso sistema está progressivamente sendo desengrenado e corremos o risco de um colapso científico-tecnológico sem precedentes.

Continuando, Sidarta dá uma demonstração de sua capacidade premonitória ao tratar do Corona Vírus. O trecho é longo, me desculpem, mas vale a pena, ainda mais pela elegância do estilo e beleza da construção literária:

“Fevereiro de 2020, Carnaval em Olinda, Pernambuco. Cerveja, cachaça, e milhares de pessoas subindo e descendo ladeiras, um prodígio de organização espontânea que logra proteger músicos e carros de som do caos turbulento. A multidão enche as ruas, pula, grita e se liberta de tudo o que não é amor. Um povo em gloriosa intimidade consigo mesmo. Minha visão se turva de cores, sons e cheiros. Seria tudo isso uma alucinação?  Fecho os olhos e tento vislumbrar o futuro. O que será preciso fazer para deter a explosão planetária do coronavírus? Será o fim de beijos, abraços e convívio? Sobreviveremos a todo esse isolamento? Haverá Carnaval no ano que vem? ”

Já me estendi além dos meus varais. Haveria muito que aprender com o novo Sidarta mas devo terminar aqui. Os meus pacientes leitores poderão continuar. Sidarta Ribeiro foi publicado pela Editora Companhia das Letras.

06 janeiro 2021

Eu não tenho desafetos


Nunca tive desafetos na minha vida. Lidei com pessoas de todas as classes sociais. Dos mais simples operários de fábrica aos diretores de empresas multinacionais. Trabalhei para Governadores e Ministros com os quais viajei mundo afora. De todos recebi carinho e consideração. Dos operários com quem lidei sempre encontrei dedicação. Eu visitava as fábricas com frequência, em horas inusitadas, no terceiro turno. Eu conversava  diretamente com o operador, junto da máquina. Eles se sentiam prestigiados e eu identificava eventuais gargalos no fluxo de produção,  máquinas paradas ou deficiência de pessoal.

Na minha família, entre tios, filhos, primos, cunhados, sobrinhos e netos, possivelmente haverá alguém que me ignora, mas jamais percebi qualquer tipo de hostilidade.Entre os vizinhos de casa, harmonia total, inclusive com o sindico do prédio.

Nada obstante, nesta vida tudo pode acontecer como, por exemplo, uma fruta fora do balaio. E esta foi o meu “Desafeto Oriental”.

Eu estava trabalhando na implantação do projeto Seridó, uma fábrica de tecidos de grande envergadura em Natal, Rio Grande do Norte, do qual participava a Shikibo Spinnig Company, renomada empresa japonesa. Por força do trabalho, eu viajava com frequência a Tokio e Osaka, enquanto técnicos japoneses vinham a Natal e Rio de Janeiro. Fiquei amigo de todos eles, não só pela seriedade com que eles encaravam o trabalho mas também porque me fascinava o seu modo de  vida, a sua obsessão pela limpeza, pela pontualidade, respeito à palavra empenhada, dedicação aos mais velhos e amor à natureza.

 Epa . . .  ! Eu disse que fiquei amigo de todos eles ?  Não foi bem assim. Um deles me detestava. Era um engenheiro alto e carrancudo, portanto fora dos padrões japoneses. A coisa era muito simples: ele não ia com a minha cara e eu não ia com a cara dele. Nunca nos falamos. Nas poucas ocasiões em que tivemos que discutir trabalho, o diálogo era feito através de um interlocutor.

Certa vez, eu estava na firma em Osaka e devia comparecer a um jantar de confraternização, daqueles que, no melhor estilo japonês, duravam mais de três horas. Os lugares estavam marcados com o nome de cada convidado. Ao me aproximar da mesa, olhei para o lado direito. Estava marcado com o nome do carrancudo.

“Estragou o meu jantar”, pensei logo. Sentei-me olhando fixamente para a frente. Procurei conversar com o vizinho da esquerda, mas minha conversa não cativou ninguém. E assim decorreu o jantar. No fim, quando tomávamos aquele chazinho de encerramento, o carrancudo me cutucou e disse, com seu inglês econômico:

 “ Mister Superafico, what would you like best in this moment?”

Senhor Spreafico, de que o senhor gostaria mais neste momento?”

 Fiquei petrificado. Não sabia o que responder. Não conseguia pensar em nada. A mesa inteira olhava em silêncio. O tempo passava.

 “Eu gostaria que a minha família estivesse aqui comigo agora.”

 Ele balançou a cabeça, deu um sorriso e foi embora. No dia seguinte procurou-me cedo. Trazia um monte de plantas e começamos a discutir aspectos novos do projeto. Parecíamos amigos de infância. A mente humana guarda muitos mistérios.

Mas agora eu posso dizer:     Eu não tenho desafetos.