“ Na mesa com Madonna” – Jornal O Globo, - Rio Show de 20/11/09
“Como a Madonna”. Com este subtítulo, um trocadilho chulo e canhestro, começa a reportagem que pretende mostrar o que a diva, rainha do pop, andou comendo nos restaurantes do Rio durante sua recente passagem pela cidade. Um trocadilho que, sem dúvida, revela um velho – e espero já ultrapassado – preconceito que existe em relação às mulheres que atuam nas artes cênicas, tanto no teatro de prosa como nas revistas musicais: São todas piranhas. Esta classificação daria aos galãs de plantão o direito de gorjear suas cantadas em cima das jovens artistas.
Não há, na reportagem, nenhuma foto da Madonna, seja comendo, cumprimentando um chef, visitando cozinhas, dizendo se gostou ou não da macaxeira, da casquinha de siri, do suco de maracujá ou do sarapatel. A figura da Madonna, ali, é apenas um mito, uma concepção cósmica que pretende levar-nos a orgasmos organolépticos.
Mas estão lá, isto sim, as fotos dos pratos que lhe foram oferecidos, com os respectivos preços, preste atenção!
Na reportagem, não sei se é esse o nome, ficamos sabendo que:
“Para abrir os trabalhos” ( linda expressão, a pobre Madonna, tinha acabado de sair deles), “ sem que fosse pedido” ( queria o que? Que ela entrasse gritando: cadê o meu pirão?) “ foi servido um sushi de peixe-manteiga com ovo de codorna e azeite trufado (R$18 cada peça), especialidade da casa... que a cantora até elogiou. Em seguida, a própria cantora pediu várias coisinhas: (eu pensei logo em agulha, linha e botões, mas era comida mesmo) chips de batata doce (céus!) com tartare de peixe branco e miniagrião ( você conhece alguma folha menor do que a do agrião?) (R$ 13), spicy tuna maki (R$ 13 seis peças), aspargo salmão roll, um uramaki com aspargo empanado, salmão e abacate (R$ 21 oito peças), edamane, um tipo de vagem japonesa ( R$ 19), sashimi de agulhão (R$ 19 cinco peças) sashimi de atum e salmão (R$ 12 cinco peças)” . Caceta! Será que alguém sobrevive a isso?
A descrição segue dizendo que “ contrariando o mito de que não bebe álcool a diva mandou para dentro ( artista não bebe, mandapradentro) um copinho do melhor sakê da casa, o japa Junmai Daí Ginjo (R$ 49 uma única taça e espantosos 250 a garrafa)” Espantosos 250 ?. Isso é uma merreca! Em Tókio, para tomar o melhor sakê de qualquer casa ela não pagaria menos de 600 dólares por uma garrafa. No Imperiaro Hotero ela pagaria o dobro.
Vou continuar a leitura:
“No dia seguinte, talvez cansada da viagem na véspera, (claro, não podia ser no mês passado) ela foi levada para jantar em outro restaurante onde, desta vez, a privacidade foi total. A cantora se instalou em uma mesa protegida por cortinas de linho branco que não permitem que se veja quem está dentro”
E eu que sempre pensei que a opacidade fosse uma característica inerente a qualquer cortina para que ela pudesse cumprir a sua função.
Justifica-se o cuidado. Pois não é que me contaram que existe uma casa na Barra da Tijuca onde as cortinas são dotadas de lentes de aumento para que as pessoas que passam na rua possam identificar, sem equívoco, quem está lá dentro! Nada disso, porém, me faz inveja. No mocambo onde eu morei, no bairro do Pirambu, perto de Fortaleza, eu também tinha uma cortina de caroá que não deixava ver quem estava lá dentro. Ela me protegia quando eu comia meu sanduiche de mortadela. Eu não queria que os mais pobres me vissem comendo semelhante iguaria.
A reportagem - será que é esse o nome - prossegue numa descrição cheia de detalhes do que aconteceu durante o novo jantar. Com medo de que a diva pudesse rebelar-se contra o deglutório que lhe seria imposto, e levando em consideração as origens calabresas da primadonna serviram-lhe uma Salada Caprese (R$48) e atum em crosta de pão com creme de feijão branco e cebola roxa (R$78) Nada mais mediterrâneo. Madonna escapou do sushi. Dão-lhe tempo para que se recomponha.
“Na quarta-feira o jantar de Madonna teve um “que” de surpreendente: comeu shiitake recheado com salmão (R$ 28), sakura mango sushi (com nori de manga e tartare de salmão (R$23), dupla de água viva (R$ 18) e ussuzukuri (semelhante ao sashimi só que mais fino, que vem sobre pedras de gelo, de R$ 45 a R$ 56 dependendo do peixe.” Óh! que surpresa!
Pareceu-me ver a pobre Madonna debatendo-se na dúvida atroz entre poupar ou esbanjar, pedindo explicações ao maitre sobre como era cada tipo de peixe para poder decidir se sacrificava o seu paladar pedindo a versão mais barata (afinal, havia uma diferença de 11 reais), ou se onerava seu orçamento e pedia a versão mais cara para fazer melhor figura.
Uma coisa é certa: depois de fustigada por sushis e sashimis a torto e a direito, a Norte e a Sul, a Leste e a Oeste, à esquerda e à direita, arriba y abajo, Madonna saiu, alegre e saltitante, soltando flatos em japonês.
Diz a notícia que esse jantar, servido para 30 pessoas, custou R$ 3.444,54 o que dá exatos R$ 114,82 por cabeça, arredondando-se para maior a segunda casa decimal.
Outra merreca! Eu mesmo, para impressionar uma namorada, jantei num renomado restaurante do Rio de Janeiro e gastei muito mais do que isso.
De inicio, só para criar um clima, tomamos uma Grappa Dicciotto Lune, um nectar feito com uvas Verdicchio na costa do Adriático, nas colinas que circundam Ancona, na Itália (R$ 70 uma dose). Como entrada, um “Funghi al Cartoccio”, preparado pelo chef Flamínio, uma explosão de aromas (R$ 48). Como prato principal “Ossobuco com Fettuccine de Espinafre” (R$ 96), que chamou a atenção das mesas vizinhas. Para sobremesa: “Ravioli dolci bianco- neri al Ciocolatto”, - outra criação mágica do chef - (R$ 36). Durante esse longo percurso fomos acompanhados por um “Brunello di Montalcino – 1998”, (R$ 680) que quase não deu para os dois.
Com isso, ofereci à minha namorada um jantar que custou R$ 590 por nuca, contra os miseráveis 114 que ofereceram à Madonna. Desculpe-me Madonna, mas acho que você pode melhorar a sua coreografia se me acompanhar no que come e, principalmente, no que bebe.
Eu gosto de comida japonesa e freqüento restaurantes japoneses com regularidade. Mas o que eu não entendo é porque cevaram a pobre cantora com sushis e sashimis, coisa que se encontra hoje em qualquer fim de mundo, como se no Brasil não houvesse nada de original para se comer. Por que não a levaram para o Buraco da Gia, em Goiana, Pernambuco, quase chegando na fronteira da Paraíba, onde se come o melhor guaiamum do Nordeste e onde ela poderia ter deixado o seu autógrafo numa casquinha de siri patola que seria afixada na parede ao lado de nomes famosos, inclusive o meu? Por que não a levaram para conhecer a Galinha de Cabidela da Otilia, a palafita espetada no Cais da Rua da Aurora, à jusante do Rio Capibaribe, no Recife, onde Alcide De Gasperi ( que Deus o tenha, o bom homem), presidente da Republica Italiana, que após a primeira garfada estalou a língua, e exclamou:
“Domine non sum dignus!”, pediu outra caipirinha e voltou a comer? E o Peixe da Comadre, no porto de Maceió para saborear uma bicuda tirada do mar e colocada no mesmo instante na panela com óleo dendê? E a lagosta ao coco do Ramirez, que era comandante da Ibéria quando desceu em Natal por causa de uma greve e nunca mais saiu? E a Cartola do Restaurante Leite, no Recife, com seus noventa e cinco anos de existência?
Meu Deus, quanto desperdício! Mas, “bem está o que bem acaba”, ensina a peça de Shakespeare. No fim, todos saíram lucrando:
1º- Madonna economizou em comida no Rio.
2º - Os restaurantes divulgaram os preços dos seus pratos mostrando que são comidos por gente fina, a preços supostamente acessíveis, visando atrair clientes entre os deslumbrados.
3º - O jornal faturou alguns trocados com a divulgação do monumental evento e a publicação dos anúncios marginais, quero dizer, à margem.
4º - Os leitores, aqueles atenciosos, tiveram a oportunidade de conhecer alguns desvãos da Gastronomia carioca e aprenderam como é possível tornar complicada uma das coisas mais simples da vida: comer.
Soube também que a Madonna abocanhou 10 milhões de dólares entre os empresários locais para matar a fome das crianças na África. Nada mais nobre. Espero que na sua próxima turnê pela África a Madonna consiga amealhar outros 10 milhões entre o extratores de diamantes ( ingleses, belgas, holandeses) para aplacar a fome das crianças do Nordeste. Pelo menos manteria a miséria equitativamente distribuída.
Severino Mandacaru
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