12 julho 2019

A GRANDE ENTREVISTA

No dia 12 de abril de 2015 fui procurado por uma jovem que me pedia uma entrevista. Thaís S Fernandes era acadêmica do Curso de Jornalismo em uma renomada Faculdade no Rio de Janeiro. A princípio hesitei, pois o meu contato com a imprensa até então havia sido fugir de jornalistas ansiosos por litígios e contendas travados em algumas das empresas por onde passei. Mas, quando vi os temas que a Thaís me jogou no colo, “Convívio Social, Preconceito, Evolução Tecnológica”, fui tomado por um inesperado e vibrante entusiasmo. E, assim, sentados aos pés do Cristo Redentor, começamos o nosso profícuo diálogo.


Thaís: “Por um período não muito grande, você resolveu se isolar de tudo indo morar em um sítio que não tinha luz elétrica, televisão, jornal, apenas um rádio. Como isso influenciou a sua vida? Quando voltou a ter contato direto com a vida urbana houve algum tipo de desespero?”

De fato, ficamos isolados, eu e minha esposa Dorotéa, durante um ano e meio, escondidos dentro de uma casinha no meio da mata, a 1200 metros de altitude, na Região Serrana do Estado do Rio. Não havia vizinhos. Ninguém para conversar. Não havia telefone. Não havia jornais nem televisão. Não havia luz elétrica. Portanto, não havia geladeira e o banho era frio. Havia, sim, um radinho de pilha usado pela Dorotéa para ouvir, de vez em quando, a Rádio Relógio, estação que anunciava as horas, minuto a minuto. Nunca descobri a utilidade dessa informação visto que eu iniciava o meu trabalho no mato assim que o dia clareava e parava, para jantar, antes que escurecesse. As necessidades imprevistas que surgissem depois do por do sol, eram resolvidas com um candeeiro a querosene comprado num brechó.
Nosso contato com gente se dava a cada quinze dias, no mercado da cidade, a vinte quilômetros de distância. Eram encontros efusivos, como se fossemos amigos de longa data.

Aos poucos, nossa vida foi mudando. Descobri que estava em outro mundo. Não havia mais pressa. As coisas começavam quando tinham que começar e terminavam quando tinham que terminar. Não era eu, de olho no relógio, quem decidia: “anda depressa, você vai chegar atrasado; você tem que fazer isso hoje, sem falta, se não ... Não tinha mais nada disso. Eu parava de capinar quando um sabiá começava a cantar perto de mim, e esperava que terminasse. Passava horas, sentado, esperando que um gambá viesse comer a sua banana. Fiquei semanas tentando convencer as formigas a irem comer folhas na mata e poupassem as minhas roseiras.

Logo me acostumei às privações impostas pelo isolamento: banho frio e cerveja quente – aliás, eu já estava acostumado a tomar “cerveja quente” quando das minhas viagens à Alemanha e à Inglaterra. Preparar somente aquilo que se pudesse comer no dia, pois não havia geladeira para guardar as sobras. Renunciar a roupas passadas a ferro - que maravilha! 

– pois não havia ferro de passar, e tantas outras pequenas coisas. Comecei a ver o mundo de modo diferente. As pessoas eram boas, confiáveis e simpáticas. Eu conversava com todos e todos sorriam. Procurei entender por que esse pequeno mundo que me circundava era diferente. Percebi que não tomando conhecimento das notícias sobre roubos, assassinatos, estupros, golpes e sequestros, greves e invasões, acidentes nas estradas, corrupção e desmandos políticos, achaques e depredações, enfim, tudo aquilo que é notícia nos jornais do dia e na televisão da noite, desempenhava um papel importante nesse processo de mudança. A supressão dessas informações por mais de um ano, me haviam transformado num ingênuo. Obviamente, as pessoas não haviam mudado. O que havia mudado era a maneira como eu as via.

A volta ao contato direto com a vida urbana não chegou a criar qualquer tipo de desespero. O contato com as pessoas, apesar de barulhento, compensava, com sua alegria, a perda da serenidade com a qual havíamos passado nossos dias. Claro que o canto dos sabiás e bem-te-vis havia sido substituído por buzinas de carro e o canto noturno das rãs no charco, por uma música funk espalhafatosa saindo das crateras do inferno. Mas o próprio isolamento me havia ensinado a ser mais tolerante com essas perturbações. Lembro-me de que, ao desembarcar pela primeira vez no Rio, depois de tanto tempo de reclusão, as narinas me ardiam ao aspirar o ar poluído. Voltei correndo e permaneci por algum tempo em um bairro pacato ainda na Serra, numa espécie de quarentena. Aos poucos fui retomando a rotina do caos urbano e reaprendi a conviver com ele. Hoje leio jornais e vejo televisão com respeito. E muita cautela.


Thaís: “Atualmente a televisão tenta encaixar cada vez mais as modernidades em nosso cotidiano. Antigamente, nas novelas, não havia uma aceitação de relações inter-raciais e de pessoas do mesmo sexo. Partindo do pressuposto de que a visão da sociedade não é unânime, como você se posicionaria? Acha aceitável ou não?”

A resistência de parte da sociedade à aceitação de relações inter-raciais e de pessoas do mesmo sexo é compreensível pois é fruto da cultura em que cada segmento dessa sociedade foi educado. No meu entender, essa resistência está sendo vencida, a passos lentos, é verdade, mas de modo irreversível e a televisão, mencionada na pergunta, tem um papel importante nesse processo. Quanto a mim, acho perfeitamente aceitável a convivência com essa diversidade, e entendo que a eliminação de preconceitos não será obtida somente com leis, em que pese o papel fundamental que estas desempenham, mas sim através de educação e conscientização. Eu tive a sorte de aprender, ainda criança, a conviver com pessoas de diferentes classes sociais, e de origens étnicas as mais diversas. Sofri, com elas, as agruras do preconceito. Mais tarde, quando surgiram as discussões sobre relações homofóbicas, eu já estava moral e intelectualmente preparado para a sua aceitação. Não posso avaliar a qualidade dos exemplos dados pelas novelas pois não sou um espectador habitual de televisão. Mas arrisco-me a dizer que não creio que sejam muito edificantes.


Thaís: “Considerando as evoluções sociais e tecnológicas, você acha que todo esse avanço foi positivo ou negativo? Se pudesse voltar no tempo e mudar uma característica do mundo atual, qual seria ela?

”Posso dizer que acompanhei as evoluções sociais e tecnológicas durante os 72 anos que me separam do primeiro emprego, aos 12 de idade. Assisti ao desaparecimento de coisas lindas como, por exemplo, as cartas de amor escritas em papel perfumado; as sacolas de papel nos mercados de “secos e molhados”; as cópias termofax, ou fotocópias, que impunham a necessidade buscar no dia seguinte, para gerar o que é hoje uma simples xerox; as máquinas de escrever e a linotipo, aquela máquina gigantesca que preparava as matrizes para imprimir o jornal; os telegramas da Western, via cabo submarino. Eu estava presente quando foi lançada a Coca Cola no Brasil. Vi a primeira televisão em preto e branco, só disponível nas casas mais abastadas.

Assisti à montagem da praia do Botafogo e vi como as enormes dragas cuspiam água e areia para os céus. Acompanhei o desmonte do morro de São Bento serpenteando por entre os caminhões que deixavam ruas e calçadas tintas de sangue do barro vermelho extraído da colina. Conheci os primeiros computadores, que eram do tamanho de uma sala de visitas; mais tarde, quando estes se tornaram accessíveis aos mortais, usei o Carta-Certa, o programa de texto de computador onde você precisava fazer acrobacias sobre o teclado para digitar uma letra que tivesse um acento agudo e exigia o dobro do esforço se tivesse cedilha ou til.

Como poderia eu me opor às evoluções sociais e tecnológicas? Sem dúvida, esse avanço foi positivo. Tenho defendido com entusiasmo o lema proposto por Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor do “O Leopardo”: “É preciso mudar para que tudo fique como está” Essa é a verdade. Se você não muda, você simplesmente não para, você regride. Se pudesse voltar no tempo eu apenas recomendaria que se desse mais atenção ao relacionamento humano. Nas últimas décadas, progredimos em tudo e em ritmo acelerado, menos no que diz respeito à organização do ser humano, quero dizer, da forma como se administram as sociedades. Basta ver a bagunça em que deram o Comunismo, o Socialismo, o Capitalismo... e agora o Bolivarianismo. Cruz, Credo!

N.B. Hoje é dia 12 de julho de 2019. Passaram-se 4 anos desde o nosso Encontro. Causou-me espanto a atualidade do que foi dito na época, especialmente no que concerne à evolução tecnológica, e ao aperfeiçoamento do ser humano. Por outro lado, haveria um mundo de coisas novas a discutir que surgiram neste período, entre elas, as redes sociais, por exemplo. Esperemos que a Thaís volte, um belo dia. Mas, desta vez, ela seria a entrevistada.