19 fevereiro 2011

Quando eu tinha 17 anos


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Quando cheguei aos 17 anos eu estava terminando o  curso de Mecânica de Máquinas na Escola Técnica do Recife, uma instituição da Rede Federal de ensino técnico. A prova final foi a construção de um torno mecânico completo. Cada aluno foi incumbido de um componente da máquina. A mim coube o  “cabeçote fixo”,  a parte mais complexa do equipamento. Isto porque eu era cdf. E dos mais  fervorosos. Como cdf eu tinha outros atributos. Nas férias, em lugar de refrescar-me nas águas verdes de Olinda, eu procurava emprego nas oficinas mecânicas do Recife. No contato com o quotidiano áspero do proletariado aprendi muito sobre o comportamento humano, desde a maldade mais perversa até as atitudes de solidariedade, de desprendimento, do sacrifício espontâneo e desinteressado. No ambiente rude das oficinas não havia clemência. Qualquer erro era punido no ato.

 Os quatro anos naquela escola técnica formaram o meu caráter ou, pelo menos, a parte melhor dele. A escola ficava na margem do  Capibaribe, onde o rio fazia uma curva. No lado oposto podia-se ver a Fábrica da Torre, com sua altíssima chaminé perfurando o céu. Bem na frente da escola, junto ao barranco da margem do rio erguia-se uma descomunal figueira sob a qual eu me sentava, nas tardes de sábado, à espera do por de sol. E por que nas tardes de sábado? Porque eu morava no alojamento da escola e só ia para casa, na cidade de Paulista, a trinta quilômetros dali, nas grandes ocasiões.

A minha vocação de cdf não me dava paz. Eu precisava praticar no ofício ao qual me dedicava e achava que as aulas não eram suficientes. Nos fins de semana a escola ficava deserta. A entrada e a saída do alojamento era livre. Não havia sequer porteiro. As oficinas eram localizadas em imensos galpões, divididos por especialidade. Descobri que a grande porta da Fundição tinha uma brecha pela qual eu podia passar confortavelmente. Sábados e domingos eu gastava o dia inteiro praticando a moldagem de peças. Naquela época a moldagem era feita em caixas de areia que, depois de receber o metal fundido – ferro, bronze, alumínio, antimônio e o que fosse – eram desmanchadas e a areia, uma areia especial, evidentemente, era reutilizada. Um dia eu moldei  quatro peças, entre elas um disco em alto relevo com o rosto do Cristo, com sua linda coroa de espinhos na cabeça. No dia seguinte iríamos fundir bronze. Em lugar de desmanchar as caixas que havia sorrateiramente moldado, deixei-as alinhadas junto aos moldes programados. O cadinho cumpriu  seu  percurso e derramou o metal líquido sob o meu olhar em êxtase. Enquanto o metal esfriava recebemos aulas teóricas do Mestre explicando a técnica usada em cada peça. Menos quatro. Abertas as caixas vejo o Mestre inquieto, prancheta na mão, andando de um lado para o outro, remexendo papeis, contando nos dedos, coçando a cabeça. Os alunos se haviam espalhado, esperando o encerramento da aula.

-- Aconteceu alguma coisa errada, Mestre? , arrisquei.
--Não, meu filho. Só não entendo quem foi que meteu essa cara do Cristo na programação!
-- Deixa pra lá, Mestre. Se não foi programada, distribui aí pros alunos!
E foi assim que eu ganhei um rosto do Cristo em bronze, com sua linda coroa de espinhos na cabeça.

Férias. Tempo de procurar emprego. Vai ser fácil. As oficinas já me conhecem. O diretor da escola manda me chamar e comunica que a Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil, que ainda estava em construção no Rio de Janeiro, estava oferecendo bolsas de estudo, abertas para todo o país. Pernambuco teria cinco vagas. Seria feito um exame de seleção e os cinco aprovados iriam para o Rio de Janeiro onde seriam submetidos a novo exame, para aprovação final. Aconselha-me a fazer as provas.
Embarquei num heróico DC3 que depois de fazer escalas em Maceió, Aracaju, Salvador, Vitória, Canavieiras, Cabrália, Ilhéus, desabou sobre a pista militar do velho Galeão e caminhou, trôpego, até a estação de passageiros. Dalí, uma camionete Dodge, com carroceria de madeira, me levaria até a Rua Bela, em São Cristovão, meu novo alojamento. E a linha 56, do bonde Alegria, entraria na minha vida.
                                                                                                                





16 fevereiro 2011

Por trás das Cortinas


Foi  por trás das cortinas, dentro  do quarto da Rainha,  que Hamlet  atravessou Polônio com uma espada, pensando tratar-se do Rei Claudio, assassino do seu pai.


Foi por trás das cortinas do salão nobre do Palácio do Governo do Estado de Sergipe que ouvi o Governador Seixas Dória, convocado pelos militares em 1964, defender-se da acusação de comunista e subversivo.
O enorme salão dividia-se ao meio por uma cortina composta de faixas entre as quais ficava uma fresta. De onde eu estava, uma espécie de ante-sala, podia ver  a longa mesa de reuniões onde se destacava o colorido das fardas. O tom eufórico das discussões permitia que se ouvisse tudo.  Impotente, o Governador  se justificava com frases ingênuas, tentando demonstrar que não tinha nenhum envolvimento com a subversão e que sua única preocupação era fazer um governo digno e honesto.
Eu estava sentado ali  aguardando uma entrevista com o próprio  Governador , a  qual  havia sido postergada  justamente por aquela reunião imposta pelos militares. Testemunha involuntária dos acontecimentos, eu me sentia constrangido. Como podia um governador, eleito livremente pelo voto do seu povo, ser humilhado daquela maneira?
Encerrada a reunião,  as cortinas foram abertas e,  ironia, foi servido um coquetel. No momento em que me  apresentavam  ao Governador,  um soldado garçom se aproxima e oferece um drink. Lembro-me até hoje das palavras do Governador, abatido mas sorridente:
-- “O senhor aceita um cálice? Pode tomá-lo tranqüilo, não é o cálice da amargura”.
Mas, era. No dia seguinte o Governador Seixas Dória era conduzido, algemado, para o presídio de Fernando de Noronha.


Foi por trás das cortinas do Teatro Santa Isabel que vivi uma das maiores emoções da minha vida. Era a minha primeira experiência como ator e estreava a peça   “O Diário de Anne Frank”.  O ensaio geral havia transcorrido de maneira perfeita. Diálogos, marcações, figurinos, entradas e saídas, contra-regra, luz, som, tudo havia funcionado à perfeição. Noite de estréia, eu andava eufórico de um lado para outro do palco, conferindo falas com os colegas, melhorando inflexões, ajustando figurinos, deixando palavras de incentivo para os mais temerosos. Espiei através da cortina fechada e me deparei com o espetáculo deslumbrante do teatro vazio, feericamente iluminado. Um ligeiro calafrio me percorreu a espinha. Nada mais natural, pensei. Uma estréia é uma estréia e eu sabia que até o Sergio Cardoso, quando interpretava Hamlet, ficava nervoso. Continuei no meu vai-vem quando percebi  um certo rumor que, aos poucos, parecia crescer. Não dei importância e continuei na minha euforia. O ruído continuou subindo de tom, parecia vir do céu, um barulho cada vez mais alto, difuso, indecifrável. Suspeitei que viesse da platéia e resolvi espiar, mais uma vez,  através  da cortina.  O teatro completamente lotado de gente  conversava,  no  que,  para mim,  parecia um trovão. Fiquei petrificado. As três pancadas de Molière, repercutindo no chão de madeira, tiraram-me do torpor. Ocupei minha posição no palco . As cortinas se abriram.


Por trás das cortinas de uma sala de visitas um pai descobre a frivolidade do filho já adulto e resolve dar-lhe um conselho. No terceiro ano do curso primário do Grupo Escolar João Vieira de Almeida, na Vila Maria, onde eu só cheguei aos nove anos, tínhamos um “livro de leitura”. Esse livro trazia pequenas histórias, lições de civilidade, feitos históricos e, cá e lá, algumas poesias. Esse livro sumiu, evidentemente, tão logo terminei o curso primário,  mas dele gravei um soneto, que guardo na memória até hoje. O autor do soneto também se perdeu com o livro. Em todos estes anos não me preocupei em descobri-lo.
Vou transcrevê-lo, tal como o lembro:


TERTULIANO

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta,
E indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, em frente a um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

- Tertuliano,  és um rapaz  formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso? -

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvia tudo,
Serenamente  respondeu: - Juízo.  


Depois destas evocações eu não podia deixar de  investigar  alguma coisa sobre este soneto. Descobri  que a memória me traiu em vários pontos:
1.     O autor, cujo nome não lembrava, é  Artur Azevedo
2.     O nome do soneto, que eu julgava ser  “Tertuliano”, é  “Velha anedota”
3.     Em lugar de “em frente  a um espelho”  é:  “diante de um espelho”
4.     Em lugar de  “ouvia tudo”  é  “ouvira tudo”
5.     Em lugar de  “Serenamente  respondeu”  é  “Severamente respondeu”


Assim é, amigos, se lhes parece.  Como eu ouvia dizer naquela época:
 “O mundo gira e a Lusitana roda”

Severino Mandacaru

07 fevereiro 2011

A flor que caiu do céu

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Memórias.  Sempre memórias. Para que servem? Por que as contamos? Para quem as contamos?  Se eu tivesse  resposta para essas perguntas, eu jamais  as escreveria.  Memórias!  Com algumas nos sentimos glorificados. Com outras, envergonhados. Muitas nos rejuvenescem - Picasso dizia que  “levamos muito tempo para ficar jovens”.  Outras apenas nos mostram o peso da senilidade. Contamos verdades. E quem acredita nelas?

Eu não havia ainda completado  sete anos de idade quando caminhava com minha mãe pela calçada da Avenida Guilherme Cotching, na Vila Maria, o então bairro proletário encarapitado no topo do morro que dá continuação à várzea direita do Rio Tietê. A avenida está lá até hoje, com o mesmo nome ridículo. As caminhadas com minha mãe eram sempre longas. Minha mãe caminhava com rapidez . Eu me arrastava lentamente, sempre cansado. Em dado momento, vendo que eu me atrasava,  deteve-se e, virando-se para mim, fulminou-me com seu olhar meigo:
-- Anda depressa, Gino!
Nesse exato momento, a um passo do lugar onde ela se detivera, e na mesma direção, desabou um enorme vaso de barro, espatifando-se no chão,  espalhando  terra e margaridas por todos os lados.
Minha mãe passou o resto da vida contando que a minha lentidão lhe salvara a vida.
                                                                          

01 fevereiro 2011

Coisas que eu quero contar

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COISAS QUE EU QUERO CONTAR


Quero contar os amores que vivi e os amores que perdi.
Quero contar as dores que sofri e os males que causei.
Quero contar de vales e cordilheiras por onde andei.
Quero contar de lagos e montanhas onde nasci.
Quero falar das árvores que plantei, dos filhos que criei e dos livros que não escrevi.
Quero contar as desventuras por que passei nos mares que singrei e nos ares que cruzei.
Quero contar como é dura a vida na caatinga, a pele calcinada pelo sol, o olhar de angústia na criança faminta, o riso amargo saindo das rugas do velho desamparado.
Quero contar o pôr do sol no São Francisco, o brilho da lua cheia no Capibaribe, o verde cristalino do mar além dos arrecifes.
Quero falar dos vinhos que bebi e da sede que sofri.
Quero contar como ressoa o apito da fábrica, como estala a batida intermitente do tear e como ecoa a voz alegre da tecelã.
Quero contar como vivem as almas penadas dos insetos assassinados nos campos de lavoura.
Quero contar fábulas. Para dizer cobras e lagartos, engolir sapos, desvendar o segredo da aranha, cantar como a cigarra, ser astuto como a raposa, ágil e faceiro como o serelepe, vaidoso como o pavão. E beber como um gambá.
Tudo isso quero contar. E antes que os tempos acabem, quero deixar pronto o meu epitáfio, que  dirá:

“Aqui jaz aquele que pouco contou.
Porque o que contou era verdade. E ninguém acreditou.
Aqui jaz aquele que sofreu a angústia de não saber contar
tudo aquilo que queria contar”.
                                                                                                                                        Luigi Spreafico