28 novembro 2006

Seu Albano, o Salvador

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Na Vila Maria, toda a molecada “chocava” bonde. A extensa planície da Avenida Guilherme Cotching (que nome!) prestava-se perfeitamente para a prática daquele maravilhoso esporte que, visto com os olhos de hoje, era muito mais arriscado do que qualquer corrida de Fórmula 1. Colocado num ponto estratégico do estribo do bonde, o praticante, (não quero chamá-lo de “chocador”), esperava que o bonde alcançasse uma velocidade compatível com as suas habilidade e coragem e, inclinando o corpo para trás para compensar a força da inércia que, caso contrário, o faria mergulhar de “ponta cabeça”, saltava. Ao alcançar o solo o corpo do atleta já deveria estar na vertical. A partir daí era só continuar correndo e amortecer a velocidade até parar. Ele tinha, ademais, que assegurar-se de que, na hora do salto, o caminho à sua frente estivesse livre. Não foram poucos os casos em que inocentes crianças, bondosas senhoras e trôpegos velhinhos foram abalroados, felizmente sem maiores conseqüências do que a ressonância dos impropérios dirigidos aos respectivos genitores. Éramos heróis. O mais novo (eu) tinha oito anos. O mais velho não devia estar muito longe dos quatorze. Competíamos todos. Classificavam-se os vencedores por grupos. O último a saltar, obviamente, era o vencedor. Na etapa seguinte os vencedores de cada grupo formavam um novo grupo e competiam entre si. E daí saia o Campeão da rodada. Ganhei algumas etapas mas nunca cheguei a Campeão. Tinha o Nestinho, que, com quatorze anos já era soprador na fábrica de vidros, calçava 44, e ganhava todas; tinha o Toninho, de pernas arqueadas e que pulava descalço, ágil como um serelepe, e muitos outros, todos difíceis de vencer. Um dia saltei mal. O bonde havia atingido uma velocidade que estava acima das minhas possibilidades de equilíbrio. Vi apenas o solo aproximando-se do meu rosto, senti o impacto tremendo no chão de terra e depois a derrapagem, de bruços, por um bom par de metros. Permaneci por um tempo com o rosto colado ao chão, as pernas e os braços ardendo em fogo. Percebi que, no alto, havia se formado uma roda de gente. Abri os olhos. Quatro botões dourados me ofuscaram a vista e, vagarosamente, me levantaram. Eram os botões das mangas do uniforme do Seu Albano. Seu Albano era português e morava ao lado da minha casa, um vizinho que nos orgulhava. Era guarda civil e eu admirava os botões dourados do seu uniforme azul marinho, sempre bem passado. Além de autoridade, Seu Albano encantava-me porque devia ter acesso a muitos livros, já que vivia sempre lendo. Seu Albano apalpou-me as pernas e, certificando-se de que eu podia permanecer de pé, avaliou os estragos. Tirou um lenço, enxugou, como pode, o sangue que me escorria dos joelhos e cotovelos, tomou-me pela mão e, lentamente, iniciou o caminho de casa. A subida da ladeira íngreme até o topo da Vila Maria foi penosa. Os joelhos ralados me ardiam como brasas. Eu não me sentia dono dos braços. Parecia que tinham passado à propriedade do Seu Albano. Eu escondia as lágrimas. Seu Albano não falava. Quando chegamos, era noite. Meu pai já havia voltado do trabalho. -- “Seu Guilherme, olha aqui este teu filho que anda a chocar os bondes. Estatelou-se no chão e, por pouco não racha a cabeça oca que tem. Tive vontade de dar-lhe uns cachações eu mesmo, mas só tu podes fazê-lo. Toma que é teu.” Meu pai levou-me para um pequeno aposento de terra batida que havia por trás da cozinha. Contemplou-me demoradamente. Depois levou ambas as mãos às costas, onde afivelava o cinturão. Eu, de cabeça baixa, fitava o chão, envergonhado. Seu Guilherme levantou meu queixo com o dedo indicador e, fitando-me firmemente, falou com voz entristecida: -- “Gino... você não pode chocar bondes... é... perigoso... e... muito feio. Mas... pelo menos... vê se aprende a chocar direito, seu salame!

24 novembro 2006

O FALSÁRIO

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 Comecei minha vida como falsário. Vivi todos estes anos escondendo um estelionato que me envergonha e me pesa na consciência. Nunca contei nada a ninguém. Mas agora a dor tornou-se insuportável.
Quero reparar o meu delito, ainda que não o possa fazer materialmente, mas, pelo menos, expondo-me à execração pública. Abro o meu sigilo bancário. Não só este, abro também o meu sigilo religioso, o ideológico, o doméstico e, principalmente, o de alcova, onde sempre me comportei com dignidade, respeito e pontualidade.

No final da década dos trinta, com dez anos de idade, a vida era mansa na Vila Maria. A única obrigação que eu tinha além de tirar água do poço para as necessidades diárias, molhar a horta, catar lenha para cozinhar três refeições, por magras que fossem, comprar pão na venda que não ficava a mais do que dois quilômetros de distância, picar cebolas, descascar batatas, engraxar os sapatos do meu pai, limpar o galinheiro, estender a roupa no varal, recolhê-la quando seca, lavar os pés antes de dormir, a única obrigação era, dizia eu, freqüentar a escola, esta sim que ficava a mais de dois quilômetros, para ser exato, a três. A pé.

Aos dez anos freqüentar a escola era, para mim, um prêmio que eu explorava ao máximo das minhas forças, com medo de que aquilo pudesse acabar. Cedo aprendera a ler, e os gibis, emprestados por colegas ou garimpados no lixo, satisfaziam a minha ânsia por desvendar os processos que punham a vida a funcionar. 
Por que a água virava gelo e o gelo virava água? Por que, quando eu apertava um botão, a luz acendia? Por que todas as noites, às onze horas, o trem da Cantareira apitava lá longe, como se estivesse chorando? Para onde ia? Por que o arroz que eu comia na casa do Seu Albano, o português vizinho, era mais gostoso do que aquele que minha mãe fazia? Por que a Itália ia entrar na guerra? 

Logo os gibis se mostraram insuficientes e eu descobri os livros de aventura. Estes eram mais difíceis de conseguir. Comprá-los nem me passava pela cabeça. Bastava contemplar minha mãe catando os tostões para comprar a mortadela que eu levaria como lanche para a escola para entender que, um livro, aquela fonte inesgotável de informações, capaz de explicar-me como viviam os animais na floresta, que os índios viviam nus e não ficavam doentes, que a terra era redonda e girava e, mesmo assim, a gente não caia quando ficava de cabeça para baixo, ora! Seria uma coisa simplesmente inatingível.

 Mas, aí, chegou o Café Jardim, com sua xícara fumegante em marrom escuro, sua nuvenzinha de vapor que parecia mover-se, seu pires de cor bege suave, tudo sobre um fundo amarelo que lembrava os campos de milho ao nascer do sol.
 Em baixo, do lado direito, poucas palavras: Café Jardim. Este é o café. E, de fato, era. Para contribuir com a difusão da cultura no país e, obviamente, aumentar suas vendas, o Café Jardim estava lançando umas figurinhas que, coladas em um álbum, contavam uma história.
Cada pacote de café trazia uma figurinha. O álbum devia ter, creio eu, de seis a oito páginas e, cada página, doze figurinhas. Cada página do álbum era uma história. 

Uma vês preenchido, o álbum podia ser trocado por um livro. Um livro de aventuras. E foi assim que, aos dez anos, eu me tornei o maior consumidor de café do planeta e o maior devorador de livros encadernados em brochuras “in octava”. Portanto, era preciso cortar as páginas para folheá-las, o que era feito com uma faca, quando em casa, ou com um pente, quando a bordo de um bonde. Foi, também, assim que fiquei conhecendo os heróis que encantaram tantas gerações. 
Quem não se lembra de Jack London, em “Caninos Brancos”, Robert Louis Stevenson em “Raptado’, Emilio Salgari com “O Corsário Negro”? E Karl Mai? e Rafael Sabatini? e Maine Reid? Devo estar errando a grafia de alguns nomes, mas eles sairam da minha vida há muito tempo.

Minha avidez pela leitura era tão grande que eu ficava esperando ansiosamente o dia em que meu pai chegava das compras com o cheiroso pacotinho de café trazendo a mágica figurinha. 
Devo esclarecer, a esta altura, e isto é muito importante, que a contribuição da minha família ao consumo do Café Jardim já era uma grande burla, posto que minha mãe, um gênio na administração das magras finanças domésticas, usava o mesmo pó duas vezes.
De madrugada preparava o café para meu pai e meu irmão, doze anos mais velho do que eu, antes de saírem para o trabalho. Mais tarde, usando o mesmo pó e calcando na fervura, fazia o café para ela e os filhos menores.

Mesmo com essa desvantagem eu ia completando meus álbuns e cavando meus livros. Mas, claro, havia as “figurinhas difíceis”, aquelas que demoram a sair ou não saem nunca, um mecanismo de tortura inventado pelos gênios do marketing obviamente com a boa intenção de ensinar as crianças que a vida não é mole, que você terá de esperar até que o tesoureiro do Café Jardim diga: “chefe, completamos a quota, pode liberar a figurinha”.
Enquanto a “figurinha difícil” não chegava eu via as duplicatas se amontoarem na minha caixa de papelão. E dane-se a beber café! E dane-se a comprar café! E dane-se a amontoar duplicatas! E nada da “figurinha difícil” aparecer! Aos meus dez anos de idade e, apesar das aulas de catecismo, parecia-me injusto. Comecei a procurar uma explicação.

E a explicação veio justamente das aulas de catecismo: Deus estava me castigando porque minha mãe usava o pó de café duas vezes!
É difícil descrever o que eu sentia. Sentia uma pena muito grande por minha mãe, com o seu engenho nas improvisações dos alimentos, sentia pena por meu pai e meu irmão que saiam de madrugada para uma fábrica insalubre e só voltavam tarde da noite, sentia pena por minhas irmãs ainda pequenas, a carinha suja brincando no chão de terra do porão da casa, improvisando bonecas com palha de milho . . .

Mesmo assim aceitei resignadamente a condenação já que, usando duas vezes o mesmo pó, minha mãe havia burlado as regras de consumo impostas pela sociedade e, com a redução fraudulenta do nosso consumo, o Café Jardim poderia ser levado à falência. Vejo-me, ainda hoje, triste, sentado no chão da cozinha, com as pernas cruzadas, o queixo entre as mãos, contemplando aquele retângulo branco bem no centro da página, aquele vazio imenso, aquele instrumento de danação , de expiação de uma culpa inconsciente. A “figurinha difícil”! Perdido em divagações, comecei a prestar atenção à história daquela página. Era uma das aventuras do Barão de Munchausen, o alemão bigodudo e simpático que contava lorotas.

Nessa história ele havia saído para caçar num dia muito frio, com temperatura abaixo de zero, e ao tocar uma corneta, creio eu que para atiçar os cães de caça, não ouviu nenhum som. Guardou a corneta sem maiores indagações. Ao chegar em casa tirou o capote, pendurou a corneta junto à lareira acesa e foi tomar seu chá. E foi aí que, com o calor da lareira, a corneta começou a tocar a melodia que, segundo explicações do próprio Barão, havia ficado congelada no seu interior. 
E eu ali, esperando que a corneta, figurinha difícil, me aparecesse para completar o meu álbum. Não sei quanto tempo fiquei segurando o queixo, pensativo, contemplando o vazio da figurinha faltante. Sei que me levantei e caminhei lentamente até o lugar que chamávamos de quarto de dormir e tirei, de debaixo da cama, a caixa de papelão onde guardava os álbuns velhos, já trocados por livros. 

O escritório do Café Jardim, onde se distribuíam os brindes, ficava ao lado da Estação da Luz. O sistema de troca era rápido e sem burocracia. Eu entregava o álbum a um funcionário que o folheava rapidamente para verificar se estava completo.
Feita a conferência colocava-o debaixo de uma perfuradora, acionava uma alavanca e a broca atravessava as figurinhas deixando um furo pouco menor que o diâmetro de um lápis. 
Em seguida colocava o álbum assim sacramentado juntamente com o livro escolhido dentro de uma grande bolsa de papel, a qual trazia estampada uma enorme xicrona fumegante do Café Jardim, em suas cores marrom, bege e amarelo, que eu me orgulhava de ostentar, mostrando aos passageiros do bonde a minha edificação cultural. 
Tudo muito simples, sem código de barras que a gente não sabe o que diz, sem plim-plim nem trek-trek de máquinas autenticadoras, sem precisar mostrar cartão de fidelidade, nem número de cadastro, nem carteira de identidade (só original, xérox não serve). Bebeu o café? Tirou a figurinha difícil? Tome o seu livro. Parabéns, garoto! Parabéns, Café Jardim! 

Eu já havia completado aquela história da corneta do Barão de Munchausem em um álbum anterior. Localizei-a nos álbuns devolvidos. Ali estava a figurinha que me faltava, com seu furinho bem no meio, sobre um campo vermelho do capote do astuto Barão.
Com a habilidade que eu havia desenvolvido ao fabricar meus próprios brinquedos descolei, com perfeição, a figurinha perfurada do álbum. Recortei, também, de outra figurinha um pedaço de fundo vermelho de igual tonalidade e colei-o no verso da figurinha, tapando o furo. Agora era só colar a figurinha restaurada no novo álbum. 

Fiquei contente com o resultado. Claro que havia o desnível na superfície do papel mas este só seria notado se alguém concentrasse a atenção naquela figurinha. Folheando rapidamente o álbum, como era feito, seria impossível detectar o enxerto. 
Grande garoto! Eu me sentia duplamente recompensado. Primeiro porque ia receber um novo livro encerrando, assim, um jejum de semanas sem leitura. Segundo porque eu me vingaria do desgraçado fosse-lá-quem-fosse que não emitia as figurinhas de acordo com um programa decente e honesto.

Orgulhoso da minha obra, coloquei a trapaça debaixo do braço e saí de casa com o ímpeto de quem ia invadir a Argentina. 
Desci a galope a lamacenta ladeira que liga o Alto de Vila Maria até o ponto final do bonde, lá bem no meio da várzea. Linha 34-Vila Maria! 
O bonde saiu dando pinotes de alegria, percorreu a extensa planície da Avenida Guilherme Cotching (que nome!) até alcançar o Rio Tietê, atravessou a estreita ponte de madeira, continuou mais um pouco e virou à esquerda, embicando pela Rua Catumbi, sempre em subida, até alcançar novamente a planície, na Avenida Celso Garcia. 
Já refeito do esforço de subida da Catumbi o bonde saiu deslizando suave e sereno como um cisne. Passou pela Igreja do Belenzinho, pela Estação do Brás e alcançou a Avenida Rangel Pestana. No trecho final da Rangel iniciava nova subida com uma inclinação tão acentuada, que eu temia que qualquer dia o bonde se desgovernasse e despencasse lá de cima espatifando-se somente quando chegasse no Campo do Corinthians. 
Vencida a ladeira, entrava-se na Praça da Sé, ponto final, o bonde dava a volta e retomava a ladeira em descida. O ponto de parada ficava em frente ao prédio da Caixa Econômica, em granito preto, como está até hoje. (pelo menos estava até a semana passada). 

Dali, caminhei a pé até a Estação da Luz, tomando o cuidado de não correr para não chegar suado e arfando, o que poderia causar suspeitas. Fui atendido por um velhinho de enormes sobrancelhas brancas, tão grandes que praticamente escondiam as pupilas. Melhor, pensei, assim me pouparia o confronto na hora da verdade, se houvesse. 

Coloquei o álbum sobre o balcão. O velhinho abriu um sorriso enorme, terno, generoso e tão paternal, que me confortou. Tomou o álbum nas mãos e, antes de abri-lo perguntou-me se eu já havia escolhido o livro. -- “O Corsário Negro”, gritei. -- "Ah! Salgari", ouvi-o balbuciar. Começou, então, a folhear o álbum, como sempre era feito. Senti-me seguro. Seria impossível notar qualquer coisa no meio de tanta figurinha.
Terminada a inspeção, fechou o álbum e, abrindo novo sorriso, fitou-me nos olhos, retesando o cenho para que eu pudesse ver bem suas pupilas escondidas atrás das sobrancelhas. Enfrentei o seu olhar com serenidade. Não percebia nele um tom acusador, mas, antes, uma certa curiosidade. 
Afinal ele já havia passado pela tramóia sem notá-la. Talvez fosse solidariedade pela minha escolha por ser ele também admirador de Emilio Salgari, quem sabe?

Permanecemos, assim, fitando-nos por um tempo que me pareceu uma eternidade e suas pupilas foram diminuindo, diminuindo, até que eu só via o emaranhado das sobrancelhas. O bom velhinho tomou, então, novamente, o álbum e começou a folheá-lo lentamente. 
Ao chegar na página do valoroso Barão de Munchausen, parou. Meu sangue gelou. Suas mãos ficaram imóveis. Ele fixava o centro da página. Eu tinha me transformado numa estátua de granito. Em nenhum momento ele me olhou. Pensei que ele fosse passar o dedo sobre o furo escamoteado para dar-me a entender que ele havia percebido o engodo. Mas não o fez. Eu baixei a cabeça envergonhado, preparando-me para as conseqüências. Ele, então, voltou-se, retirou o livro da estante, colocou-o, juntamente com o álbum, dentro da enorme bolsa de papel marrom, bege e amarela com a estampa da xicrona fumegante do Café Jardim, saiu de trás do balcão e, alcançando-me, pendurou a bolsa no meu ombro, deu uma palmadinha nas minhas costas e voltou ao seu balcão. Não disse uma palavra.

Eu sai cabisbaixo, contando as lajotas no chão. Arrastei os passos, lentamente, até a Praça da Sé. Entrei no 34 e desejei que ele nunca chegasse ao fim da viagem. Queria morrer ali mesmo. Passei pelo portão de casa. Minha mãe estava no tanque lavando os macacões sujos de graxa do meu pai e cantava, como sempre, “Son tornate a fiorire le rose”. Entrei no quarto, joguei o livro debaixo da cama e deitei-me. Ainda ouvi minha mãe cantar uma última estrofe: “Queste rose non parlano piu” e adormeci. Nunca mais tirei o livro de lá e nunca soube que fim levou. Estou lendo “O Corsário Negro”, agora, aos setenta e seis anos. Espero que o livro me faça bem.