05 dezembro 2014

Crônica da despedida

Estou aqui para fazer uma despedida. Portanto, serei breve.
Nossos grandes escritores estão morrendo.  E todos de uma vez.
Como dizia um colega meu, sergipano, “Deus quando manda, manda de ruma”.  Comecei a tomar consciência disso quando perdemos o Chico Anysio. Não sei se os críticos literários o consideram grande escritor ou apenas um humorista mas, para mim, ele era ambas as coisas. Assisti a alguns espetáculos dele, inclusive um em Manaus, imaginem, onde a plateia delirou. Por que em Manaus? Porque ele estava lá e eu também.

Depois veio o... - veio, não, foi-se - o Millôr Fernandes que  não só  foi  grande escritor mas também teatrólogo, poeta, caricaturista e, sobretudo, um grande filósofo. O meu primeiro encontro com Millôr foi uma piada. Eu estava em Natal, para a inauguração de uma fábrica. Amparados pela  sombra de cajueiros, os convidados tomavam aperitivo enquanto aguardavam a hora do almoço. Eu me aproximei de uma mesa onde estavam sentados alguns colegas de trabalho. Um deles não me pareceu muito familiar, mas me lembrava  alguém. Despejei-lhe um tapão nas costas e disse:  “Nossa! Como você é parecido com o Millor”.
Ele apontou o dedo indicador da mão direita para o meu nariz, enquanto afagava, com a mão esquerda, a parte dolorida do ombro, e disse:  “Eu sou o Millor” !

Seguiu-se o João Ubaldo, prematuramente. Foi difícil de acreditar. Eu me acordava cedo, todos os domingos, só para ler suas crônicas. Ficou a saudade da Ilha de Itaparica e seus personagens folclóricos.

Agora, Ariano Suassuna. Quem poderia imaginar! Eu o ouvia, extasiado, quando ele contava suas histórias de Taperoá  ou quando citava  Inocêncio Bico Doce para alguma tirada cômica. Para não falar de suas presepadas do tempo de estudante,  como quando foi preso porque estava tomando banho nu no Rio Capibaribe. Levado à presença do delegado, este passou-lhe  uma reprimenda: “Então, o senhor estava tomando banho nu, não é, seu moleque?”  E Ariano, impávido: “Por que, seu Delegado, o senhor toma banho vestido, é? Uma vez, quando acabava de lançar seu Movimento Armoral,  Ariano mandou chamar três de seus amigos para uma reunião, talvez a mais curta da história: Francisco Brennand,  José Laurênio  de Melo e Gastão de Holanda, que participava, junto com Ariano e Laurênio, do “Gráfico Amador`”, a valorosa editora artesanal: -  “Chamei vocês aqui pra lhes dizer que vocês estão proibidos de morrer”. E despachou-os.

Sempre achei que os grandes escritores não morreriam nunca.  Descobri que estava enganado, e me conformo. E só não digo que serei o próximo da fila porque não quero parecer presunçoso.


27 novembro 2014

Ruim de vida



Raimundo Nonato mal completou quinze anos de idade. Acorda cedo. Naquela manhã fresca e úmida percorre  a longa alameda que o separa da escola,  serpenteando por entre os oitizeiros. Da calçada coberta pelos frutos maduros,  levanta-se o  cheiro dos oitis, inundando o ar. É um cheiro acre, pungente, desagradável.  Causa-lhe náuseas. Vez por outra Raimundo interrompe sua caminhada para ouvir o canto de um pássaro, contemplar as gotas de orvalho que ainda cobrem as folhas nos jardins ou examinar uma teia de aranha que se destaca no contra luz do sol.
Raimundo sente-se angustiado. Por mais bucólica que fosse aquela manhã não consegue liberar-se das inquietações que o perseguem. Não vislumbra um  futuro.  Estará aprendendo alguma coisa? Como será o amanhã?  E  se não houver amanhã?  E esse maldito cheiro de oitis que não termina nunca?

A rotina era estafante: chegada na escola, ginástica, café da manhã, aulas práticas nas oficinas, almoço, aulas teóricas durante toda a tarde. E a volta pela longa alameda com o cheiro nauseabundo dos oitis.
Hoje é sábado, não haverá aula. Raimundo não sabe por que resolveu  fazer a caminhada. Quando se deu conta já estava no meio da alameda chutando oitis, marcando gols nos buracos das grades que cercam os jardins. Consolou-se. Seria interessante observar o velho prédio da escola pendurado sobre a margem do rio; as barcaças carregadas de areia, rio abaixo, levadas pela correnteza e rio acima, vazias, empurradas pelo varejão, a longa vara de pau que o remador apoia no ombro, caminhando pelo costado da embarcação. Com o prédio deserto, o cenário era de paz. Mas Raimundo sente-se intranquilo. Olha para o lado oposto. A poucos metros, dali, bem colado ao rio, encontra-se um velho tambor de caldeira que não teria mais do que um metro de diâmetro, sombreado por uma tamarineira.
Ali mora Zé da Cuia, um indigente que vive de magras contribuições em troca de pequenos serviços. Não aceita esmolas. Alimenta-se na escola com as sobras do café da manhã e do almoço.
Zé estava pescando, como fazia quase todas as manhãs. Raimundo puxa conversa.
- E aí, Zé, pescando?
- Não, rezando.
-Ahâ...
Raimundo resolve passar para o outro lado e atravessa por cima da vara de pescar que se encontra apoiada na terra.
- Não faça isso! Você não sabe que dá azar? Espanta os peixes.
- Desculpa. Você já comeu hoje?
- Já. Guardei de ontem. Tinha munguzá e tapioca.
Estimulado pelo interesse do rapaz, Zé da Cuia começou a falar um pouco de sua vida. Falou das dificuldades pelas quais tinha passado, do sofrimento e das agruras que o atormentaram por muito tempo.
- Não tinha onde dormir. Comida  eu catava nos baldes  que os restaurantes jogavam fora. Pra me vestir catava roupa no lixo...
Zé fez um longo silêncio, fitando o chão. E concluiu:
- É, meu amigo, eu já andei ruim de vida.
Ruim de vida!
 As palavras não saiam da cabeça de Raimundo. “O sofrimento relativo”.
Zé da Cuia vivia o sofrimento relativo. Portanto, havia alcançado a “felicidade relativa”. Nossa insatisfação cresce continuamente. Ansiamos ter. E quanto mais temos, mais queremos. E assim vamos ao encontro da infelicidade.
Raimundo Nonato contemplou demoradamente o rio. As barcaças de areia desciam levadas pela corrente e subiam levadas pelo homem. Despediu-se de Zé da Cuia com um beijo na testa.
E percorrendo o caminho de volta pela longa alameda, saltitava  por entre as árvores aspirando o aroma delicioso e inebriante dos oitis maduros.


05 novembro 2014

Y a Chile nos fuimos

O turista desavisado que chegasse ao Vale do Curicó encontraria uma paisagem árida, sem cor, sem atrações. Em pouco tempo descobriria que estava enganado. Na terra aparentemente seca e áspera extensos vinhedos se multiplicam, simétricos, intermináveis, mimetizados em sua cor pardacenta. O nosso turista mudaria de opinião ao contemplar os troncos retorcidos e secos das videiras centenárias. Aí ele descobriria a mágica que se esconde nessa paisagem aparentemente monótona  que produz  um dos maiores milagres da natureza: o vinho.
E era de vinho que iríamos tratar. Conduzidos por dois “chiflados” aventureiros, chegamos ao Vale em uma linda e ensolarada manhã. O nome do hotel - Raices - completava o quadro. Uma construção baixa, de estilo colonial, sem escadas, elevadores, corredores sem fim. Atendidos por funcionários eficientes e discretos, o hotel nos proporcionava o ambiente descontraído e discreto para que nos pudéssemos concentrar naquilo que realmente contava: o vinho. A primeira visita foi à Casa Silva, vinícola que produz vinhos premiados em muita exposições internacionais. O responsável por esse sucesso é o enólogo Mario Geisse, que, junto com os filhos Daniel e Rodrigo, fundou a Cave Geisse, na Serra Gaúcha, que também vem conquistando prêmios no exterior. Na degustação, além dos famosos tintos, destacamos um vinho branco: o Sauvignon Gris. No vinhedo desta uva, próximo ao prédio principal, uma placa nos informa:

“Sauvignon Gris  -  Ano do plantio: 1912 -  Espaçamento:1,0 x 1,5 m

No dia seguinte visitamos a Miguel Torres, prestigiosa vinícola que produz o Manso de Velazco e o Superunda, onde recebemos um tratamento especial e, no almoço, fomos brindados com uma original “cozinha participativa”. Fomos divididos em grupos de três e cada  grupo, sob o comando de um chef,  observou a elaboração de um prato. Em seguida cada participante elaborava , por sua vez, o mesmo prato o qual seguiria para ser servido no almoço. Tudo sincronizado à perfeição, uma insuperável aula de gastronomia ministrada pelos chefs da Miguel Torres. Vale destacar que o restaurante da Miguel Torres é considerado  o melhor do país, dentro de uma vinícola.
Sucederam-se as visitas à Baron Philippe Rotschild, produtora do famoso Escudo Rojo,  emblema da tradicional família de banqueiros e, em seguida, à Almaviva, outro ponto alto da nossa expedição. Em ambas fomos recebidos com muito carinho e atenção, o que fez com que nos sentíssemos velhos amigos. Em todas elas as degustações foram generosas e a exposição dos processos de produção sempre franca e totalmente aberta, o que mostra o prestígio e a confiança de que a corajosa Flajur Turismo desfruta junto às vinícolas chilenas.
Do ponto de vista gastronômico – recreativo,  a expedição nos reservaria um programa surpresa que, posso dizer foi um dos mais emocionantes que passei em toda a minha vida. Em Santiago: “Um dia na Cordilheira” A longa subida até três mil metros de altura, por uma estrada tortuosa, entre picos e abismos, pontilhada por placas de neve que ainda resistiam ao abrasador sol do quase verão, foi de tirar o fôlego. Literalmente. Porque todos sabem que nessa altura  sobre o nível do mar, qualquer movimento do corpo equivale a um esforço dobrado. Chegados ao topo, a visão dos penhascos oferecia um espetáculo deslumbrante, que conduzia a um estado contemplativo. Fazia-se mister encontrar um lugar adequado para repousar a carcaça já combalida pelas atividades precedentes e, não menos importante, fazer chegar ao estômago algo que o tranquilizasse posto que o relógio, de há muito, havia batido as 2 horas da tarde. Enquanto aguardava, meu olhar percorria  a gigantesca montanha, com suas escarpas íngremes e pedregosas, cheias de mistério. Não soprava mais o vento gelado do inverno. O sol era abrasador. Pensativo, veio-me à memória a canção que costumava ouvir em outras épocas:

                    Que sabes de cordillera
                    Si tu nasciste tan lejos
                    Hay que conocer la piedra
                    Que corona el ventisquero
                    Hay que recorrer callando
                    Los atajos del silencio
                    Y cortar por las orillas
                    De los lagos cumbrereños...
                    Mi padre anduvo su vida
                    Por entre piedras y cerros...

O tempo passava.  Eu estava esfomeado.  A vista ficando turva.  Por momentos pensei em ficar ali e deixar-me petrificar  entre as placas de neve que ainda resistiam em algum flanco da encosta. A canção produzira seu efeito. Consciente, recuperei-me e me lembrei de que aquilo era somente um passeio. Um passeio? Foi o que pensei mas logo descobriria que aquilo não era simplesmente um passeio.
Depois de alguma caminhada chegamos, finalmente, a um patamar esculpido na encosta onde três ou quatro abrigos ofereciam mesinhas e bancos talhados na pedra. À volta tudo era sol. Sentei-me num deles e fechei os olhos com a intenção de repousar. Mais uma vez o tempo passou. Voltei à mim e mal pude acreditar no que via. Em um abrigo próximo,  a dupla de  “chiflados”  montava o seu templo gastronômico. Um fogão, extraído das entranhas da terra, apareceu por encanto sobre a mesinha de pedra. Sobre ele, uma enorme panela. Facas, tábuas e apetrechos diversos saiam de bornais nunca antes vistos. Polvos, lulas, centollas e mariscos de todo o tipo eram limpos e esmiuçados pelas facas habilmente brandidas. Um aroma de mar inebriava o ambiente ... a três mil metros de altura!

Logo começaram a chegar à nossa mesa as primeiras iguarias, acompanhadas do inseparável companheiro: o vinho. Eu espiava tudo, sem acreditar. Jurandyr  agitava os braços brandindo as armas, esticava o pescoço, gritava ordens, virava sobre os calcanhares, executando uma coreografia diabólica. Terminada a pajelança, declarou  pronto o panelão,  para que fosse servido. Eu, restaurado moral e fisicamente,
recuperei a confiança na humanidade.

Nova experiência eletrizante nos aguardava ainda em Santiago. Chegamos ao hotel, uma construção convencional sem maiores atrativos se não fosse o seu ar majestático e sua decoração  no melhor estilo hindu. Situado em pleno centro, o que significa estar próximo à Plaza  de Armas e ao Palacio de La Moneda. Tratava-se,  portanto, de uma ótima localização para políticos e homens de negócios. Aparte o fascínio exercido pela decoração hindu, à qual se somava o delicioso cheiro de  curry que exalava do seu restaurante, não dava para entender a sua localização. Soube depois que a escolha resultara de uma falha ocorrida durante a operação de magia que pautava o processo decisório. Não se sabe como, a fada que deveria dar o toque final com sua varinha mágica foi substituída por uma bruxa má.
E deu no que deu.

Entrei no meu quarto. Era minúsculo e, portanto, acolhedor. E foi suficiente para abrigar as malas debaixo da cama e colocar o relógio e o celular sobre a mesinha de cabeceira. Outra coisa boa: não havia, no banheiro, aqueles malditos mini sabonetes que só fazem atrapalhar. No seu lugar um lindo provedor de sabão líquido colado junto à pia. Ademais, fomos regalados pela  “Fla Jur Turismo”  com um rico sabonete de tamanho normal, acompanhado de uma linda saboneteira. Quem estava sozinho no quarto, obviamente recebeu meio sabonete , prova de que a Flajur aplica seus recursos  de maneira consciente.
Procurei uma janela para ver o que havia à minha volta. Eu tinha notado que, existia, bem na frente do hotel, um movimentadíssimo  ponto de ônibus e estava curioso para ver como a galera santiagueña se virava na hora do “rush”.
Encontrei a janela, era bem grande, fechada por uma cortina, dessas de correr, vertical. Levantei a cortina, surgiu uma grande parede de vidro e, do outro lado ... surpresa! uma linda sala de estar, com mesinhas, poltronas e quadros na parede. Entusiasmado com a engenhosidade do arquiteto, procurei o caminho para chegar a ela mas não o encontrei. Achei bom pois, assim, eu não precisaria dividir com ninguém a linda paisagem que eu contemplava da minha janela. Orgulhoso com as minhas descobertas, chamei a atenção da minha esposa para a majestade do nosso hotel e mostrei o nosso quarto como exemplo bem sucedido de minimalismo, tão de moda em nossos dias.

“In vino veritas” , queridos amigos. Este não faltou. Foram sete dias alegres, bem vividos, onde aprendemos muito e de tudo, onde aprendemos a cultivar a convivência, o relacionamento fraternal, praticando a tolerância e a solidariedade, o respeito às ideias conflitantes, a criar a verdadeira amizade, incondicional. Parabéns a todos. Parabéns ao Fla, ao Jur, e à “Fla Jur Turismo”. Parabéns às Vinícolas, às videiras  e seus frutos e .... ao Vinho!

Lembrete: “ Se você busca aventuras procure a “Fla Jur Turismo”




22 maio 2014

A Grande Receita


Rigatoni com carvoezinhos de carne e sálvia


         Preparei "a grande receita" mas resolvi que só a publicaria depois que alcançasse, pelo menos, 80 por cento de aprovação numa pesquisa feita entre os meus incautos leitores. Já alcancei 9 por cento. Estou pensando em ampliar o universo da pesquisa, mas, com quem? 

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Passados alguns dias preparei-me, como disse, para ampliar o universo da  minha  pesquisa  buscando  melhorar o índice de aprovação à minha grande receita, que só havia alcançado 9 por cento. Para meu espanto, 7 por cento haviam desaparecido, mas eu ainda continuava com 2 por cento. Não desanimei. Resolvi publicar a receita assim mesmo, sempre inspirado  naqueles cientistas geniais que acabam inventando coisas uteis porque o que estavam fazendo dava  errado. Você conhece as histórias: a descoberta da borracha para pneus, a invenção do velcro, do papelzinho de recados que cola, descola, e cola, etc.  etc.

Não sou muito de ver televisão mas disseram-me que ali são frequentes os programas de culinária que ensinam a aproveitar sobras das refeições do dia a dia para fazer pratos deliciosos. Procurei na geladeira o que havia sobrado da noite anterior. Nada de volumoso ou coisa que me permitisse efetuar grandes elaborações. Apenas um prato de carpaccio, você sabe, aquela carninha cortada com o micrótomo e que se come crua. Imaginei utilizá-lo, não como carpaccio, por natureza cru, mas como carne cozida. Picado e refogado na manteiga, adicionado de salvia, eu teria um molho para um prato de massa. Esta seria o rigatoni, uma massa curta, e eu teria, assim um prato clássico que na Itália recebe o nome de  “Alla Bergamasca”.

Piquei a carne com cuidado pois a espessura das lâminas não permitia exageros. Coloquei a manteiga para aquecer e prestei muita atenção à sua temperatura para não queimar aquelas micro partículas de carne. Tudo funcionou como podia ter sido previsto. Ao dar a primeira volta com a colher de pau minhas ricas partículas de carne haviam se transformado em ricos grânulos de carvão. Um prato singelo, de valor estético inestimável. O contraste dos pontinhos pretos envolvendo o tubo branco do rigatone era, realmente, uma coisa nova e difícil de obter. Fiquei contemplando a minha obra e cheguei à conclusão de que havia criado algo digno da cozinha molecular. Quando li o livro do Hervè This, há um par de anos,  sobre cozinha molecular,  não pensei que um dia chegaria tão perto de criar uma coisa do gênero. Eu tratei desse assunto muitas crônicas atrás em  “O sabor oculto das coisas”, creio que foi em Novembro de 2012. Não sei como as coisas evoluíram de lá pra cá.  Mas fiquei muito orgulhoso com a minha invenção.  Inventar é muito bonito. Duro é comer o fruto da invenção.

Já sei, você está dizendo que roubei o título do Paolo Sorrentino "La Grande Bellezza". Roubei mesmo. E você, já viu o filme? Não perca.






25 abril 2014

Cabeça dura


Passei a vida ouvindo dos meus amigos que eu era um cabeça dura. Nunca concordei. É verdade que, ainda na tenra idade, por volta dos oito anos, minha mãe já sentenciava:
 “Esse menino é cabeça dura. Vai dar trabalho aos professores na escola, à esposa quando se casar e aos médicos pelo resto da vida”.

Não nego que sempre defendi com tenacidade exacerbada algumas ideias que considerava inovadoras como por exemplo quando, no alvor da juventude, após devorar a história dos grandes convertidos começando por Santo Agostinho, Tomas Merton, Saint Exupery, Paulo Setubal e não sei quantos mais, eu mesmo me desconverti e me declarei ateu. Também não posso esconder que, logo depois, assustado com um temporal que disparava raios que só podiam ser mandados por Deus, amoleci a cabeça e, prudentemente, mudei para agnóstico. Nunca se sabe, vai que...

Outro exemplo do denodo com que defendi minhas ideias foi quando tentei convencer minha noiva de que o casamento era uma instituição falida e que o negócio era a amigação. Nisto eu não estava sendo original. Acabava de ler Bertrand Russel e ele mostrava isso. Minha noiva deu uma gargalhada e disse que eu era muito engraçado. Interpretei isso como um elogio e casei-me na Igreja. Para não perder a dignidade, contei com a  intervenção do meu amigo Valfrido Salmito que me dizia: “Galego, você é o ateu mais cristão que eu conheço. Vai casar na Igreja, sim.”
Agora, passados cinquenta anos, vocês concordarão comigo Eu estava certo. Não preciso entrar em detalhes. Examinem os casais à sua volta, consultem as estatísticas e vocês me darão razão.

Mas isto foi apenas uma digressão. Minha intenção é cuidar de outro assunto. A ciência nos ensina que a cabeça é composta de duas partes: o miolo e a casca. Por princípio, o miolo é mole e a casca é dura. Mas, vejam só, a expressão “cabeça dura” se aplica ao miolo e não à casca pois define o individuo que é teimoso ou, com um pouco de boa vontade, àquele que é tenaz na defesa de suas ideias. O miolo que defende a amigação dos casais é protegido pela casca. Não sabemos, até agora, se o grau de rigidez da casca é direta ou inversamente proporcional à dureza do miolo, mas que existe uma relação não há dúvida.
Uma experiência vivida há poucos dias demonstrou-me isto e devo dizer que, lamentavelmente, prevaleceu a segunda hipótese.

Eu caminhava com desenvoltura pela casa no cumprimento de tarefas inadiáveis de quem não tem o que fazer quando, inesperadamente, algo interrompeu o meu caminho. Dei de cara, quero dizer, de cabeça com uma pesada viga de madeira que cumpria o seu dever de sustentar o teto. Um estrondo e um relâmpago. Percebi que eu tombava, e para traz. Durante o percurso pensei: vou cair de costas, não tenho como apoiar-me com as mãos, espero cair sentado. Foi o que aconteceu. O impacto dos grandes glúteos com o solo não teve maiores consequências mas a energia cinética armazenada no primeiro estágio da queda fez com que o tronco continuasse o seu caminho em direção ao solo. Desta vez foi um estalo seco como o de um raio quando parte uma árvore ao meio. Um clarão enorme. Não sei quanto tempo fiquei deitado mas quando levantei o tronco, ainda sentado, apalpei a cabeça. Um galo havia se formado na base da nuca. Não havia sangue.
Olhei para traz. No percurso havia partido o canto de uma mesa de mármore com dois centímetros de espessura.  Descartei os estilhaços e recolhi o pedaço maior, que guardo comigo.  Levo-o  no bolso sempre que saio para caminhar. É o meu GPS.
Agora todo o mundo me chama de miolo mole.



25 março 2014

"Si vas para Chile ...

... te ruego viajero,
que digas a ella
que de amor me muero”

Esta é uma canção chilena. Nela, um apaixonado descreve a casa e o lugar onde morava e chora o amor que lá deixou. O lugar é Las Condes, hoje um moderno e próspero bairro de Santiago, mas no seu tempo apenas um povoado. Em certo momento a canção diz:

“Campesinos y gentes del pueblo
Te saldrán al encuentro viajero
Y verás como quierem em Chile
Al amigo cuando es forastero”

A descrição do lugar é comovente, faz com que a gente se sinta parte da paisagem e viva a dor do apaixonado que lá deixou sua amada. A estrofe de boas vindas, original em seus termos, prepara o forasteiro para uma acolhida calorosa e, mais do que tudo, fraterna.

Com seus vinhos, seu pisco, suas empanadas, seus damascos e cerejas, com a riqueza dos mariscos do Pacífico,  e de suas  canções dolentes sobre lagos e cordilheiras, o Chile é um lugar encantador. Aqui, eu pouco tenho a dizer. Quem pode falar é o seu maior poeta, Pablo Neruda, que escreveu uma ode ao vinho. É um poema longo, por isso, vou transcrever somente alguns versos. Depois de alguns copos vocês se animarão a procurar o resto.




Oda al Vino

                                Pablo Neruda

 VINO color de día,
vino color de noche,vino con pies de púrpura
 o sangre de topacio,
vino,
estrellado hijo
de la tierra,
vino, liso
como una espada de oro,
suave
como un desordenado terciopelo...

...Que lo beban,
que recuerden en cada
gota de oro
o copa de topacio
o cuchara de púrpura
que trabajó el otoño
hasta llenar de vino las vasijas
y aprenda el hombre oscuro,
en el ceremonial de su negocio,
a recordar la tierra y sus deberes,
a propagar el cántico delfruto.







19 março 2014

Harmonia no Vale

Apaixonei-me, à primeira vista, pelo tablet da Mary. Comecei a vigiar o tablet ao perceber que ele não recebia de sua proprietária os cuidados que sua função exigia. Abandonado ora aqui, ora ali, eu sempre o via tristonho, sem brilho, sem vida. Minha preocupação continuou comigo.

A viagem pelo Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha, me reservaria  encantamentos inesquecíveis. Eu já tinha andado por lá varias vezes mas nunca havia, de fato, percorrido aquelas colinas e penetrado na alma daquela gente que, com ternura e sabedoria, transforma uva em vinho. Desta vez foi diferente. Juntei-me a um grupo de doze aventureiros organizado por dois malucos: Jurandyr e Flamínio, dois magos da culinária, sim, aqueles mesmos que promovem o “Mãos na Massa”, uma espécie de programa sócio cultural dedicado à gastronomia, no Mercado Central de Nova Friburgo.

Durante cinco dias percorremos aquelas terras em busca de novas sensações conhecendo suas uvas, seus vinhos, seus toneis e seus cardápios elaborados dentro da inconfundível tradição dos colonizadores vênetos.  Flamínio e Jurandyr conseguiram manter aceso o nosso espírito e ativo o nosso corpo, desde a alvorada até o cair da noite, durante todo o tempo que durou a longa jornada de visita às principais vinícolas da região.

Na Casa Valduga, uma empresa grande e bem organizada, encontramos uma recepção calorosa que nos surpreendeu. Andrei, seu enólogo, discorreu sobre as diferentes castas de uva plantadas em seus vinhedos e os respectivos métodos de produção. Durante a degustação aprendemos a distinguir a delicadeza de um pinot noir, a suavidade de um merlot, a potencia do cabernet e a robustez do tannat.

Não longe dali encontramos o mestre Antonio Dal Pizzol, proprietário de uma vinícola que tem coração de gente. Com uma proposta inovadora a Vinícola Dal Pizzol cultiva um acervo denominado “Vinhedo do Mundo” com mais de 500 variedades de uva destinadas à pesquisa. Oferece, também, à visitação, um pequeno museu onde exibe prensas, filtros, dornas, balanças e todo o tipo de apetrecho usados pelos colonizadores no início da produção de vinho na Serra Gaúcha. Numa curiosa adega adaptada em um antigo forno de cerâmica, mestre Antonio armazena centenas de garrafas de safras inimagináveis, muitas com mais de vinte anos. Generosamente, Antonio nos brindou com a degustação de um cabernet sauvignon safra 1995, que se apresentou surpreendentemente vivo. Durante o jantar que nos ofereceu, montado sobre um cardápio tipicamente vêneto, invadimos a cozinha e fomos ajudar a mexer a polenta.

Visitamos a  Cave Geisse, um modelo perfeito de empreendimento que une a pesquisa a atividade produtiva, fundada pelo enólogo chileno Mario Geisse. Geisse veio para o Brasil e estabeleceu-se como diretor de uma grande vinícola. Ao conhecer  a Serra Gaúcha percebeu que algumas colinas ofereciam as condições ideais para a cultura de determinadas cepas. Com sua experiência e muita dedicação começou a produzir vinhos em caráter experimental. Incorporando aos poucos novas áreas de cultivo e depois de muita pesquisa, Mario Geisse, com sua família, fundou a Cave Geisse concentrando-se na produção de espumantes. Hoje produz vinhos de altíssima qualidade nessa categoria. O seu Geisse 98, por exemplo, foi classificado entre os “20 mais” pela crítica Jancis Robinson no principal evento mundial de vinho que se raliza em Hong Kong.  

No edifício principal da Cave fomos recebidos por seu filho Daniel, também  enólogo, que nos guiou durante a visita às instalações e dirigiu o longo ritual de degustações. E aí tivemos uma grande surpresa: Nossos guias Flamínio e Jurandyr, cobriram-se com os paramentos de chef e ocuparam a cozinha da Cave para montar nosso almoço, um delicioso e variado cardápio que dispensou os três pratos típicos da tradição vêneta, exaustivamente degustados nos dias anteriores: a sopa de cappelletti, a polenta e o creme de sagu. Este, com vinho.
Flamínio apresentou sua renomada “pasta fresca”, desta vez com molho de salvia. Jurandyr esmerou-se nas entradas: iniciou com um cornetto de salmão cru temperado com que, só ele sabe. Uma delícia que só parei de comer quando percebi que a bandeja estava vazia. Foi a primeira vez que consegui harmonizar peixe cru com vinho (até então eu só combinava peixe cru com saquê). Usei um Cave Geisse Nature – 12,5%.
Seguiu-se um desfile de defumados que o próprio Jurandyr produz em seu santuário de Nova Friburgo, o que nos proporcionou um novo festival de harmonizações. Seguiram-se os pratos. A cozinha foi invadida. Todos perguntavam tudo. Jurandyr, sempre solícito e paciente, entoava alegremente explicações e conselhos. Vinho não faltou. Faltou tempo, porque a hora já era tarda e devíamos marchar para uma nova ventura.

Meia hora serpenteando pelas colinas por entre lindas casas coloniais e vinhedos, e alcançamos a Pizzato Vinhas e Vinhos. Localizada a noroeste de Bento Gonçalves, a Vinícola Pizzato desenvolveu uma diversificada linha de vinhos de alta qualidade. Com vinhedos espalhados pelo Vale dos Vinhedos e o Planalto Gaúcho, a Pizzato oferece uma ampla gama de vinhos produzidos a partir das cepas merlot, cabernet, tannat, alicante, egiodola, pinot noir e chardonnay. No seu catálogo constam também cinco variedades de espumantes (um deles produzido com a uva pinot noir)  e três cortes de tintos cuidadosamente selecionados.

E aqui nossos guias nos surpreenderam mais uma vez com uma nova e incrível experiência: preparar nosso próprio vinho. Alfredo e Carolina orientaram os trabalhos.  A turma foi dividida em três grupos. Cada grupo deveria montar o seu blend a partir de quatro cepas fornecidas pela vinícola. O resultado seria avaliado por um júri de enólogos e someliers e os vinhos seriam classificados conforme os pontos recebidos. Deveria ser desenhado um rótulo e feita uma descrição do conceito adotado. Foi um sucesso. Cada grupo comemorou seu resultado com se tivesse sido o vencedor e, orgulhosos, fomos todos para a mesa deleitar-se com um jantar de cinco pratos. Vida longa à Pizzato e aos nossos dois malucos!

Estão de parabéns promotores e participantes.
Os promotores, pela originalidade do empreendimento; pela perfeita organização das atividades cuja intensidade não permitiu sequer um minuto de tédio; pela escolha dos anfitriões e suas calorosas recepções; pelo cuidado que tiveram na escolha dos trajetos, feitos em veículos confortáveis, com pontualidade impecável e conduzidos por profissional competente, atencioso e ainda por cima bem humorado; pela qualidade da hospedagem, elegante mas sem exageros; pelo que deram de si transmitindo conhecimentos, revelando experiências pessoais e cuidando dos distraídos mesmo aqueles que não tinham tablet.
Os participantes, pelo comportamento educado, sempre alegres, pontuais, criativos nas brincadeiras, solidários nas necessidades e atenciosos  com os mais avançados na idade.

Na manhã de quarta feira, dia do regresso, já pairava no ar um clima de nostalgia. Daqueles dias de feliz convívio, do prazer sensual pela estética da paisagem, dos sabores, dos aromas, da inebriante experiência proporcionada pelas harmonizações dos vinhos - e das pessoas.

Continuei vigiando o tablet. Não queria que ele se perdesse. Quanto à Mary, não sei. Desapareceu afundada na mesma poltrona em que chegou, levando consigo os demais companheiros. E deixando uma profunda sensação de vazio.