30 julho 2012

Viagem


Tenho saudades das viagens que fiz e mais ainda das que não fiz. Quantas vezes, perdido num bairro cinzento dos arredores de Londres ou comendo tortillas de oloroco na varanda de um bar em El Salvador  ou, ainda, fazendo Cooper nos jardins do templo Prat Keo, em Bangkoc, prometi a mim mesmo que um dia voltaria ali com minha mulher e meus filhos. Não cumpri a promessa e minha vida continuou numa avassaladora sucessão de embarques e desembarques, reuniões e relatórios, acordos e desacordos, contratos e distratos. De tanto trabalho e sofrimento pouco restou a não ser a saudade que me acalenta nos momentos de solidão, já que não tenho voz para cantar nem habilidade para dedilhar uma harpa. Alimentando a saudade  resta agora um amontoado de memórias que, como disse Humberto Eco, estão destinadas a receber uma etiqueta com o aviso   “lembrar-me mais tarde” ou, então, serão deixadas em repouso para amadurecer.  Como os vinhos.

De uns tempos para cá tenho passado meus dias fazendo monótonas viagens de ônibus entre Friburgo e o Rio de Janeiro. O trânsito caótico do Rio tem-me desestimulado a dirigir, coisa que só faço quando tenho algo a transportar. Por outro lado, dirigir um automóvel com 1.000 cc de motor  faz com que a viagem, além de  monótona, se torne cansativa e estressante.
No entanto, já fiz viagens bem mais interessantes na minha vida.  Algumas se destacaram pelo inusitado da rota. Outras, pelo deslumbramento da paisagem, ou pela inclemência do tempo ou pela bizarrice do convívio. Não faltaram, também, viagens bucólicas, como a que fiz, por trem, entre Salvador e Nazaré das Farinhas, na Bahia, contornando a baia de Todos os Santos onde, em certos trechos, o trem andava tão devagar que alguns passageiros saltavam para colher a cana que crescia ao longo da estrada, voltando ao trem alguns vagões atrás. Era muito divertido. Eu levava um toca-discos portátil, operado a bateria, o máximo da tecnologia para aquela época. Coloquei para tocar um disco com as canções de Lampião cantadas por Volta Seca e, em pouco tempo, todos estavam dançando xaxado dentro do vagão.  

Fiz uma viagem, pela Varig, de Tókio ao Rio de Janeiro,  que durou trinta e três horas sem sair do avião. Deu a volta pelo Pacífico. De Tókio a Los Angeles foram doze horas, com escala no Haway. O restante foi distribuído entre Caracas, Bogotá, Quito, Lima, La Paz, Santiago, Buenos Aires e Rio de Janeiro. A cada escala, gente nova. Conheci Astecas, Incas, Quechuas, Mapuches e Guaranis, bem como os indefectíveis Portenhos. Quando desembarquei, claro, os pés não cabiam nos sapatos. Quem viajou naquela época sabe do que estou falando.

No caminho inverso viajei de Frankfurt a Tókio num voo  experimental da Lufthansa, sobrevoando o Polo Norte, com a finalidade de  estudar  não-sei-o-que. Havia uma espécie de periscópio espetado no teto, manejado por um tripulante, que o fazia subir e descer, fazendo anotações apressadas. Voávamos a baixa altitude, o que me consolava, pois imaginei que se caísse, o avião deslizaria suavemente como um esqui sobre aquela imensa placa de gelo que não terminava nunca. 

Vi os mais lindos batiks da minha vida pendurados em varais,  à beira de uma estrada de ferro em Jakarta, Indonésia. Em viagem para  Bandung, distante cerca de quatrocentos quilômetros de Jakarta, o trem vai o tempo todo serpenteando  montanha acima em baixíssima velocidade. Olhando pela janela eu contemplava as encostas cobertas de mata quando,  subitamente, perdi o fôlego. Eu me vi simplesmente suspenso no ar, dentro de um vagão que continuava sua marcha, sem ter nada que o sustentasse. Só ao chegar na primeira curva foi que percebi a pequena estrutura feita de sarrafos de madeira onde se apoiavam os trilhos. E só eles.

Fiz, a pé, uma viagem em direção ao centro da terra. Não caminhei mais do que um quilômetro dentro de um túnel com uma pendente que daria, creio eu, cerca de vinte por cento. Envolto em um espesso capote percorri o caminho iluminado por pequenas lâmpadas bruxuleantes devidamente escamoteadas nas paredes da rocha. Estava em Viena onde, na véspera, eu me havia esbaldado nas festas da vindima em Grinzing, abusando daquele vinho branco voluptuoso e enganador. Não posso dizer que me cansei com a caminhada mas eu sentia um leve torpor e estou seguro que não era consequência da esbórnia da véspera. Foi quando dei de frente com um enorme lago, que refletia tantas luas quantos eram os holofotes que o iluminavam. Um deslumbramento. O silêncio, a quietude do ar, a água imovel,  faziam do lago uma placa sólida que se perdia na penumbra sem que se pudesse ver a  margem oposta. Fiquei preso ao chão esperando que um anjo descesse e me fizesse desaparecer no centro do lago.
Apareceu um barco a remo, manejado por um baixinho parrudo que, imaginei, deveria ter sido mandado por Guilherme Tell.  Navegamos a torto e a direito, perturbando a quietude das águas. Eu contemplava as ondas em círculo que se expandiam a partir de cada pingo d’água que caia dos remos. Aportamos na outra margem. Mais uma caminhada de quinze minutos na penumbra onde o relógio não marca as horas e, subitamente, outro lago! Outro passeio de barco, tendo como paisagem a escuridão. Eu custava a acreditar que pudesse existir tal coisa  escondida nas profundezas da terra.
Estes lagos subterrâneos são uma das atrações turísticas mais  interessantes da Áustria. No entretanto, são pouco conhecidas. Conversei com vienenses que sabiam da sua existência mas nunca as tinham visitado. A  maior parte deles nem sabia que existiam.

Outra viagem em direção ao centro da terra são as grutas de Frassassi.  Esta, juntamente com uma viagem na superfície do mar, em plena adolescência,  ficarão para  outra oportunidade.