18 maio 2013

Kirin biru no Braziro



Eu estava acostumado com o nome da Schincariol na enorme placa da fábrica de cerveja por onde passo toda a vez que desço a Serra para ir ao Rio. Desta vez foi diferente. A placa havia dobrado de tamanho e dizia: Kirin Brasil. O nome Kirin me era familiar. No Japão eu me havia acostumado a pedir uma “kirin biru” nos restaurantes, quando queria tomar cerveja. “Biru” é a palavra criada no Japão para designar “cerveja”, uma adaptação da palavra “beer”, do inglês, tornada pronunciável para a articulação dos japoneses. O mesmo aconteceu com outras  tantas palavras: sorvete,  virou “aicicrimu” , como o verbo spinning ( fiar, em português) virou “supining” ... e...  bem, não resisto, vou dizer o meu nome em japonês:  “Ruigi Superafico” , com uma pausa  respiratória entre o u e o p.   E Brasil virou “Brasiro”.

Bem vinda,  Kirin biru ao nosso país!  E obrigado por me trazer tantas recordações do convívio que mantive com aquele povo educado e cordial, disciplinado, trabalhador, estudioso e rigorosamente pontual, com quem tanto aprendi.  Certa vez, numa viagem de trem que ia de Osaka para uma pequena cidade do interior, paramos numa estação intermediária. Haveria uma permanência de dez minutos, tempo suficiente para tomar uma cerveja no pequeno quiosque instalado no meio da plataforma. Duas velhinhas, com um sorriso perpétuo, atendiam. Quando você se afasta dos grandes centros, no Japão, dificilmente encontra alguém que fale inglês. Imagine duas velhinhas. Mas ali não havia problema.  Bastava dizer “kirin biru, kudasai” e elas entenderiam. De fato, imediatamente uma latinha de kirin foi colocada sobre o  balcão. Eu queria um copo e como o meu japonês não ia além do “uma kirin, por favor”, fiz o pedido em inglês. E depois em italiano e espanhol e francês, sem resultado. As duas se entreolhavam e riam sem parar,  balançando a cabeça, sem entender nada. Foi quando se aproximou em colega de trabalho brasileiro que viajava comigo:
- Por que diabos  você está gesticulando tanto, galego? 

- Nada,  eu só queria um copo.
E a velhinha, arregalando os olhos, escancarando  um riso de triunfo:
- Han? Copú? Hai, Hai !  – e tascou um copo no balcão.

Com suas conquistas no Oriente, Portugal introduziu muitas palavras, não só no Japão, como em outros países. Foi assim que pão virou “opan”,  e chá virou “ochá”. Na Indonésia sapato é “sapatú” e governo é “gubernúr”. Os espanhóis também deixaram sua marca. Nas Filipinas eu acompanhava a conversa de dois operários que falavam  em tegalog, o dialeto local, quando escuto:
- Que ura stá?
Interrompi a conversa e perguntei:
- Você  perguntou que horas são?
- Perfeitamente  -  foi a resposta.

Ainda no Japão, assisti a uma cena divertida e triste, numa loja de departamentos,  em Tókio.
Eu havia aprendido que na língua japonesa não existe a frase interrogativa  negativa. Portanto, se você perguntar: Você não tem medo de chuva, tem?  Em português a resposta usual seria : Não!  No Japão você ouvirá:  Sim! – ou seja, como você disse:  “Sim,  eu não tenho medo de chuva”.
Eu estava na fila do caixa. Um americano na minha frente entrega as mercadorias à mocinha e pergunta:
- “You have American Express, don’t you”?
- “Yes”  - responde a menina. (sim, eu não tenho American Express)
 O Americano entrega o cartão. A menina olha, balança a cabeça e diz:
- “No”.
- “ But you said you have American Express, diden’t you”? – novamente a interrogativa  negativa.
- “Yes” – responde a moça novamente. E o americano, já gritando:
- “Than process it, please”. A moça olha o americano, respira fundo, balança a cabeça e diz:
- “No”.
A cena que se seguiu foi patética. O americano enfurecido começa a gesticular, chamando o gerente. A moça chora. Os demais clientes olham atônitos, não entendem o motivo da fúria do americano. Ele ameaça chamar o consulado americano... ela está me fazendo de palhaço..., etc, etc... Tudo por causa de um “don’t you”.


07 maio 2013

Outra vez Saramago


Embarco num autocarro intercidades que me levará de Lisboa até Cerdeira de Côa, no Sabugal, centro do pais. Viajo com um propósito: entrevistar  Saramago, que vai  proferir uma conferência na “Associação de Municípios da Cova da Beira”.

Eu queria discutir   “A  Junta do Motor”, crônica  que ele escrevera em  em 2009, e que me havia tocado profundamente. Nela Saramago conta como, aos dezanove anos, trabalhava como serralheiro-mecânico numa oficina de automóveis:

- “Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas máquinas  de trabalho e de passeio... limpava carburadores, afinava válvulas, instalava calços e travões... , enfim, sob a precária proteção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que podia das nódoas de óleo efectuei com razoável eficiência quase todas as operações por que é obrigado a passar um automóvel”

Sendo eu também mecânico, queria entender como é que ele, partindo de uma simples serralheria, havia chegado ao prêmio Nobel de literatura. Fiz-lhe perguntas que ele, pacientemente, escutou. Olhando-me intrigado, sem desconfiar, creio eu, das minhas aspirações, começou a falar, com ar complacente:

- “Não me leve tão a sério, meu jovem.  Aquilo foi um desabafo de momento, um arroubo que me levou a contar como, naquela tenra idade, fui parar dentro de uma oficina mecânica.  São lembranças de um tempo que  há muito se foi.  E são verdades. E por verdades que são,  ninguém as acredita. Conte  uma mentira e todos te crerão. Porque  vivemos hoje  num mundo de cegos. Cegos que se enxergam mas não se veem. Cegos que se apalpam mas não se sentem. Cegos que correm mas não se encontram, não saem do lugar.  Algum dia ainda vou escrever sobre isto, você vai ver.”

Eu o contemplava embevecido, sem saber o que dizer. Tentei manifestar-lhe o quanto havia gostado da sua palestra na véspera. Sem dar-me tempo de terminar, Saramago me interrompe e continua  seu raciocínio:

- “Decididamente este é um mundo de cegos. Veja esta cidadezinha. Um lugar tão pequeno e harmônico e, no entanto, cheio de ciúmes e rivalidades que acabam por  minar-lhe  a paz e o convívio social. Acabo de saber que o Senhor  Antonio Ruas está indignado por ver o que se passa na sua região. Segundo li, ele  preside a  AMBC – Associação dos Municípios da Cova da Beira  -  e é, também, editor da  Capéia Arraiana, a qual, segundo suas palavras: “procura defender os interesses da Região que vai do Sabugal e do Distrito da Guarda, movido à paixão pela Raia, pelas terras do Forcão, pelas Serras da Estrela, da Malcata e das Mesas, pelo Rio Côa e pelo povo valoroso que luta pelo futuro de uma região que alguns querem condenar ao fracasso”.
 Saramago guardou silêncio por algum tempo. Depois  continuou:
-“Veja bem: - um povo valoroso,  uma luta pelo futuro, e alguns que querem condenar tudo ao fracasso. É demais! Tão pouca gente e tanta briga. São problemas paroquiais, nada posso fazer.”

Suspirou, como quem retoma o fôlego. Depois olhou-me com  ar esperançoso e continuou:
-“Mas nem tudo está perdido, meu rapaz.  Descobri que aqui mesmo, em Cerdeira de Côa, são produzidos os melhores caracóis de Portugal. Já veem limpos e cozidos”.  Hesitou por um momento.  Deu meia volta e apanhou um papel que me entregou dizendo:
 -“Faça bom proveito, meu rapaz” – e antes que eu tivesse tempo de olhar o papel desapareceu da sala. 
Meti o papel no bolso e caminhei cabisbaixo  até o meu albergue. Pensativo, desabei, sobre uma poltrona. Abri o papel e encontrei esta

Caracoleta Deliciosa
Você vai precisar de: manteiga, alho, cebola, salsa, caldo de galinha, molho de soja e, obviamente, caracóis. ( Os da  Cerdeira de Côa, fornecidos pela Caracol Real, são os melhores). Basta refogar o alho e a cebola na manteiga, acrescentar os demais ingredientes e, por fim os caracóis.

Como te invejo, Saramago, como te invejo!


01 maio 2013

A Mentira


Mentir, mentimos todos. A partir da mentirinha inocente, a chamada mentira social, supostamente destinada a proteger o destinatário ou preservar o mentiroso,  até a mentira criminosa que calunia, difama e leva o incauto à ruína. Ou mesmo a brincadeira estúpida com que se comemora o dia 1° de Abril.
Certo dia deixei minha primeira motocicleta estacionada na calçada da escola onde estudava . Em plena aula entra um colega e me diz:  -“Roubaram a tua motocicleta” Ao ver-me empalidecer e fechar os olhos o idiota grita: “Primeiro de Abril! Eu não tive um infarto porque naquela época eu tinha vinte anos.

Aprendi cedo que uma mentira,  por mais bem intencionada que seja, pode causar um dano irreparável. Quando nasceu o meu primeiro filho eu  morava no Chile. Naquela época, eu dispunha  de  automóvel - um  carrão enorme que me deixava encabulado - com o qual levava a criança para a escola. Para que ele aprendesse que a vida poderia ser diferente daquela que tínhamos eu o levava, de vez em quando, a passear de ônibus.
Nos anos sessenta havia em Santiago uma espécie de micro-ônibus   a que chamavam de “liebre”. No inverno as janelas da liebre permaneciam  fechadas e o fedor dentro do ônibus era inevitável, o que fazia parte do meu ensinamento. Um domingo saímos  para o passeio costumeiro e como o ônibus demorasse a chegar propus a meu filho que voltássemos para casa. Ele insistiu com o passeio. Depois de muitas tentativas sem que ele cedesse eu,  já cansado, resolvi inventar uma desculpa para não tomarmos o ônibus: Havia esquecido de levar dinheiro.
-“Se me olvidó la plata” - disse eu triunfante. A criança de quatro anos me olhou fixamente e permaneceu parada. Eu continuei andando, encabulado, sem olhar para trás. De repente senti sua pequena mão estalar de encontro ao meu bolso traseiro, onde costumava  guardar algumas cédulas.
-“Si que tu tienes ! – exclamou.

O ônibus passou alguns minutos depois. Foi a eternidade mais longa da minha vida. Entramos em silêncio e assim ficamos até o fim da viagem. Eu envergonhado e ele ferido. Ambos sabíamos que eu havia feito uma coisa muito feia.

“Si que tu tienes”. A mentira é nefasta, qualquer que seja ela. Cometida contra uma criança é um ato ignóbil, deletério, devastador. Isso eu aprendi cedo e tenho tomado muito cuidado.

Os críticos literários dizem que quem escreve memórias  mente sempre. Oscar Wilde também dizia isso. Mas eu discordo.