15 junho 2013

O Cheiro dos Oitis

Na manhã úmida de Junho, o cheiro dos oitis se eleva do chão, invade o espaço e ocupa o dia. Intenso e pungente afeta os sentidos, embriaga. Na longa alameda os oitizeiros  perfilados desprendem seus frutos maduros e atapetam o chão. É a Rua Manoel Borba. São seis horas da manhã. Um menino de doze anos percorre a longa via até alcançar a Praça do Derby onde tem sua escola.* O cheiro dos oitis o acompanha. Ali faz ginástica e toma café, preparando-se para um novo dia. Aulas pela manhã e prática nas oficinas à tarde. Sairá dali como “mecânico de máquinas”, uma redundância que significa torneiro mecânico, fresador e serralheiro. Era o ano de 1942.  Ele era o aluno mais feliz do mundo.

Não posso dizer que a Rua Manoel Borba continua a mesma. Recife não é mais o mesmo. Mas os oitizeiros ainda estão  lá embora não tenha visto frutos pelo chão. Talvez não seja a época, não sei, ou talvez estejam velhos demais para frutificar. Acontece também com a gente. Mas a maior parte das casas – naquele tempo eram mansões – também continua lá. O prédio da escola  também, milagrosamente intacto. A mesma entrada com portão de ferro, os mesmos ladrilhos no piso e a mesma árvore de tronco enorme no pátio de recreio agora transformado em repartição pública.

Beirando as paredes da escola desfilava, majestoso, o Rio Capibaribe. Poucos metros adiante uma gigantesca tamarineira e, logo depois, um tambor de caldeira abandonado que teria, aos olhos de hoje, um metro e meio de diâmetro. Ali morava o Zé da Cuia. Seria impróprio dizer que ele era um mendigo, pois não pedia esmolas. Todos os dias ele recolhia uma parte da comida que sobrava na cozinha da escola e isto lhe garantia a sobrevivência. Quase todas as tardes pescava.  Eu o ajudava a estender as linhas e abastecer as iscas. Um dia contou-me sua vida. Falou das dificuldades por que  já havia passado, do sofrimento e das agruras que o torturaram  por muito tempo. Agora não. Agora tinha casa e comida. Era um homem feliz. E para fechar o assunto concluiu, pensativo:
 -- É, meu amigo, eu já andei ruim de vida...

Ruim de vida! Aprendi muito com isso. As nossas insatisfações crescem continuamente. Ansiamos ter. Quanto mais temos, mais queremos. E assim vamos ao encontro da infelicidade. Hoje estou convencido de que existe alguma coisa que se pode chamar de "felicidade relativa". Se pensarmos bem sempre encontraremos  uma  felicidade relativa  com a qual podemos nos acomodar. Como o Zé da Cuia.
Não me censure, incauto leitor, se chegou até aqui esperando encontrar algo que o emocionasse e só encontrou palavras ocas. Nada tenho para acrescentar a não ser palavras e com estas me contento. Afinal, eu não tenho como lhe transmitir o cheiro dos oitis.

*A Escola Técnica do Recife pertencia à rede federal de escolas técnicas fundadas pelo presidente Nilo Peçanha. Oferecia dois tipos de cursos, ambos com oito horas de aula por dia: o curso básico, de quatro anos, que correspondia ao antigo ginasial e o curso técnico, de três anos, que correspondia ao curso científico. Foi transformada em  Instituto Tecnológico e ocupa hoje um grande prédio em outro local. No antigo prédio, que se conservou intacto até hoje, funciona a Fundação Joaquim Nabuco. Eu fiz, na Escola Técnica do Recife, o curso básico de Mecânica de Máquinas. Ao terminá-lo ganhei uma bolsa para fazer o curso técnico no Rio de Janeiro onde se acabava de criar a Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil.


05 junho 2013

Quixaba !




Fazia tempo que eu não via o Severino Mandacaru. Depois, soube que ele havia embarcado. Achei estranho que viajasse assim, sem deixar palavra.
Tendo que ir ao Recife por alguns dias, resolvi procura-lo. Estava em Caruaru, voltando não sei de onde. Marquei com ele um encontro para comer umas tapiocas e trocarmos amarguras.
-- Então, Severino, que diabo você anda fazendo metido nesses sertões?
-- Você não sabe? Estou voltando de um lugar mágico. Uma cidadezinha do interior, contida em si mesma, altaneira, ignorada pela Coorte. Está dando um exemplo ao País em matéria de cultura e educação...
-- Não imagino qual seja. Tenho notado que Pernambuco está dando exemplos em matéria de turismo e no desenvolvimento industrial e...
É Quixaba, em pleno Sertão do Pajeú. Foi destaque no noticiário nacional por conta de suas escolas e agora seus alunos estão vencendo maratonas intelectuais em todo lugar do mundo.
-- Era lá que você estava este tempo todo?
-- Só um par de dias. É uma cidade pequena com seis mil e oitocentos habitantes comandados por um prefeito sereno e competente. Conta com três escolas estaduais de ensino fundamental e médio. Conta ainda com uma escola municipal que, como as outras, mereceu muitos destaques.

A Escola Tomé Francisco da Silva, no Distrito de  Lagoa da Cruz, conquistou, durante quatro anos consecutivos, o primeiro lugar em todo o Estado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB, obtendo notas que superaram as metas estabelecidas pela Secretaria Estadual de Educação. Em 2012 concorreu em nível nacional ao Prêmio Gestão Escolar e conquistou o primeiro lugar recebendo, por  isso, o título de  “ESCOLA REFERÊNCIA BRASIL”.
Não fazemos apenas diferente. Fazemos com muita paixão” diz Ivan Nunes, seu  gestor.

Visitei a Escola num dia de aula normal como qualquer outro. Quando se entra, a impressão que se tem é de que ali está se realizando uma grande festa. Tudo tem movimento. Nada é estático. As folhas das plantas se agitam no jardim bem cuidado e os livros parecem cantar. A alegria vibra e contamina o visitante. As paredes estão cobertas de cartazes coloridos incentivando à leitura, ao estudo, à dedicação, à solidariedade, ao amor. Não há espaços vazios. O semblante dos alunos, normalmente carrancudo em qualquer escola, ali resplandece refletindo alegria e felicidade.
Na Escola Solidônio Pereira de Carvalho, bem como na Escola Veríssima D’Arc e ainda na Escola Municipal São Miguel, no Sítio Gato, o ambiente é o mesmo: o entusiasmo, a competência e a dedicação se fazem presentes nos menores detalhes.  O  resultado se vê na expressão de alunos e professores.
Na Escola Solidônio Pereira tive a oportunidade de participar de um evento que estava em curso quando cheguei: Uma espécie de “Café Literário” no qual interagiam professores e alunos lendo e discutindo literatura num ambiente alegre e descontraído.
--  Pois é, meu caro Severino. E a gente ainda acha que conhece o Brasil.
--  Nessa  Escola também conheci uma senhorinha que, aos dezoito anos, foi nomeada a primeira professora de Quixaba. Na cidade ela é considerada a “pedra fundamental” de tudo isso. Casou-se com um galego com o qual aprendeu culinária italiana. Parece que faz sucesso lá no teu Rio de Janeiro.
--  A é? E ele, o que faz?
--  Ele faz tapioca e bolo de macaxeira.
--  Êta mundo bom!
--  Mas você não sabe da melhor, galego: Quixaba tem índice zero de dengue. Absolutamente zero.
--  Acredito.
--  E você não me pergunta como conseguiram isso?
--  Devem ter matado os mosquitos de tanto rir!
--  Teve uma Secretária Municipal de Saúde que ocupou o cargo durante 16 anos. Quando chegou a dengue ela encheu  uma bacia de larvas do mosquito e colocou-a na mesa do Prefeito, dizendo: - "Olhe isto! Temos que fazer alguma coisa”. O Prefeito respondeu de imediato: - “Pois faça logo!”
Aí descobriram que a piaba, o inocente peixinho que os matutos comem frito, era um valente devorador de mosquitos. Então encheram lagoas e riachos de piabas e proibiram a sua fritura. E nunca mais tiveram casos de dengue.
-- Fantástico, Severino. Preservaram uma espécie ameaçada e livraram a população do dengue. Posso dizer então que a piaba é o “animal sagrado” da região?
--  Como você disse, galego, este mundo é bom. Quando se sabe e se quer fazê-lo.