22 dezembro 2020

VER PARA CRER

http://memoriasdeumvago.blogspot.com/2020/12/ver-para-crer.html 

Severino Mandacaru amanheceu feliz. Havia tempo que ele andava escarafunchando os escombros da memória à procura de uma página de jornal que o havia impactado. Estou falando de 2012. Agora, com a ajuda de amigos, localizou-a e aqui vai, para gáudio dele mesmo e de seus incautos leitores.



Não deu pra ler a data ? Está no centro da página, debaixo do título GOURMET. Vou dizer : 7 de Dezembro de 2012. Agora é só voltar na "As Raizes do Severino" e ler: 6 de Setembro de 2011.

14 dezembro 2020

Idade Provecta


Perdoem-me se me refiro insistentemente à minha “Idade Provecta”, mas é a única que tenho neste momento. Atenham-se ao sentido lato da palavra e ignorem os superlativos. Para explicar, nada melhor do que um  exemplo extraído dos cafundós da memória.

Quando participei do Blog “Curta Crônicas”, que acabou sendo destruído pelo tempo, tínhamos que colocar um perfil que fosse expressivo mas de poucas palavras. Coloquei uma foto com a cabeça coberta por um chapeuzinho de malandro e escrevi o seguinte:

 “Vaidoso como um pavão, escreve para se exibir. Não acredite nessa foto. Ele é careca.”

 Quanto à Idade Provecta, espero tê-la ainda por muito tempo, diga-se de passagem. Epa ! Eu disse “de passagem”? Credo cruz, pois esta é a última coisa que poderia dizer na vida. Mas que vida? Depois da “passagem” a vida não é mais aqui (Desta, eu tratei, alhures, em “A Pena da Morte”). Eu estou me referindo à vida aqui na terra.

E agora nem sei se continuo, visto que é possível que já esteja morto e nem saiba. Já sei, vou tomar um copo de vinho e ficarei sabendo. “In vino veritas”.  Nem preciso explicar.

 Pois bem, alcançado este estágio nunca imaginei que a maior ocupação que eu viria a ter nestes dias de repouso absoluto fosse  “ Contar mortos ! ” Isso mesmo.         Diariamente, no final do dia, vou em busca do noticiário que divulga o número de almas que a Pandemonia sem acento mandou para o Paraíso. Com estes dados elaboro um gráfico que me poderá indicar o dia em que, mais ou menos, estaremos livres desta penitência.

 Mas até para saber isso a coisa se complica. Os dados estatísticos são divulgados pelo Ministério da Saúde e, simultaneamente, por um consórcio   de veículos de imprensa, que apresentam ligeira divergência entre si. Até aí, tudo bem. É só escolher o que agrada mais ou o valor médio. O que causa espécie é que o número dos falecidos decresce nos fins de semana !  Mas logo encontro a explicação: o “Sistema” entra em repouso nos Sábados e Domingos e não conta os óbitos, os quais serão computados no próximo dia útil. Se for pela fadiga dos funcionários da saúde que estão se arrebentando de trabalhar e arriscando sua vida, é perfeitamente compreensível. Mas se é por causa do “sistema” não faz sentido. Não é possível que o Ministério da Saúde, com toda a tecnologia disponível, não disponha de um “sistema” mais adequado. Aliás, não deveria causar surpresa. O comando dos principais cargos oficiais do ramo tem mudado com tanta frequência e tal rapidez que não fica tempo para a execução dos ajustes. Ademais é preciso reconhecer que assunto da pandemia é realmente complexo. Ouvi uma entrevista na imprensa que se encerrou com uma frase lapidar: “É, esse troço é muito complicado”.

 Digressões à parte, vamos aos fatos ou melhor, aos números. A pandemia instalou-se e começou a produzir casos fatais, inicialmente de forma lenta, mas que foi se acelerando ao longo do primeiro semestre de 2020.

Em meados de Abril estávamos por volta de 200 óbitos diários em todo o país. Esse número foi crescendo até atingirmos 1013 casos fatais, a cada 24 horas no final de Julho. Nesse ponto a curva se estabilizou e, aos poucos, o número  começou  a decrescer alcançando 344 óbitos por dia, nos primeiros dias de Novembro. A felicidade foi geral. Esperava-se que  logo chegaria a vacina e estariam criadas as condições para o controle da Pandemia.

 A alegria durou pouco. A partir daí, os números voltaram a crescer em ritmo acelerado. A média diária de óbitos registrada nas 4 semanas do mês de Novembro foi de 344 - 504 - 481 – 523 e continuou com 576 e 641 em Dezembro.                  

 Dizem as notícias que a população relaxou as medidas de proteção recomendadas pelos órgãos oficiais de saúde. Certamente nossa população é indisciplinada, como é em tantos outros países. Mas em situação de emergência como nas guerras, a população deve receber instruções de conduta, sujeitas a punição em caso de descumprimento.

Instruções temos, até em demasia. Conflitantes, confusas, interesseiras, enigmáticas e muito mais. Entre elas certamente estarão as corretas. Quando as autoridades se entenderem saberemos o que fazer. Enquanto isso, a única coisa segura é ficar em casa. Quem puder. Porque o pobre assalariado tem que enfrentar diariamente o seu ônibus inseguro, enfrentar filas de todo o tipo e deixar as crianças com a vizinha, sem máscara. E a economia . . . Economia? Pergunte aos universitários.

 Por falar nisso, devo dizer que me afastei das mídias sociais, onde eu tentava me manter atualizado e, sempre que eu comentava alguma coisa, qualquer coisa, eu era bombardeado com advertências do tipo “você checou a fonte? Cuidado com Fake News!”  

Incapaz de administrar tamanha complexidade, além do volume despropositado do que circula nas mídias sociais - já ouvi muitos profissionais dizerem que isso é “Máquina de fazer doidos” - decidi abandonar o campo e voltar aos meus métodos convencionais de me manter instruído: A Enciclopédia Barsa e o Tesouro da Juventude. Este último menos, porque quando eu era jovem, ele já andava meio velhinho.

Portanto, não esperem de mim nada fora dos varais. A Barsa sei que todos conhecem. Quanto ao Tesouro da Juventude, perguntem aos Universitários.

 

 

 

29 novembro 2020

As Raízes do Severino


A Macaxeira - Aipim - https://youtu.be/YdHAHJJHXM4.

 Surprenda-se com as informaçôes do Prof. Fernando Lemos sobre as propiedades da mandioca e as doenças do intestino. Está no Youtube.

No dia 6 de Setembro de 2011, publiquei uma crônica no Blog  “Curta Crônicas” atendendo ao tema " Sabores" , proposto para aquela semana.

Dei-lhe o título de “Raízes” porque pretendia falar do aipim em confronto com a batata, na gastronomia, fruto de uma conversa que eu havia tido com uma colega durante o chopinho  que sucedia às nossas aulas. Para fazer graça, iniciei o texto falando das nossas raízes culturais  derivando, em seguida, para as raízes alimentícias. Como não tive muito sucesso na discussão com a minha colega, no meu empenho em defender a supremacia do aipim sobre a batata, na crônica resolvi carregar nas tintas invocando o meu amigo Severino Mandacaru. Escrevi:

 

“Severino aproveitou a abundância da safra de macaxeira para implantar uma fábrica de tapioca”... ... “Mandaria amostras para seus clientes na  Holanda, para onde já exporta a raiz “in natura”. Severino estava duplamente feliz: caso a oferta vingasse melhoraria sua renda e, consequentemente, o PIB do país, bem como aumentaria o valor agregado de nossas exportações”.

Para meu espanto, no sábado, dia 7 de Janeiro de 2012,  o  suplemento  “ELA GOURMET” de O Globo publica na capa, em página inteira:

 

“Mandioca levanta o PIB”

“Deu nos jornais: graças à mais popular e brasileira das raízes comestíveis do país, o Brasil fechou suas contas no azul. A Rainha do Brasil foi a salvação da lavoura”.

 

A matéria segue, na página interna: “O aipim, ou macaxeira  ...  recentemente se encarregou de dar um providencial empurrãozinho no PIB  brasileiro. Na última safra nacional, segundo dados do IBGE, a brasileiríssima mandioca puxou os dígitos para o alto. Foi, literalmente, a salvação da lavoura”

 

Transcrevo a crônica completa, para algum incauto leitor:

 

 

RAIZES

 

Nossas  raízes são a nossa cultura. Quero dizer, nossa cultura é produto de nossas raízes. Nossas raízes são o nosso caldo cultural. E é na sua base que tem origem a afirmação da nacionalidade. Através delas nos fixamos ao solo pátrio, fortalecemos nossa personalidade, garantimos nossa saúde e, imaginem, consolidamos a nossa economia, assegurando o equilíbrio da combalida balança de pagamentos do país. Nossos índios sobreviveram graças às suas raízes quando a pesca e a caça escassearam. Desculpem o  “pesqueacaçaescassearam”, mas não vou refazer isso.

 

Há poucos dias eu conversava com meu amigo Severino Mandacaru, que acabava de voltar de Cabaceiras, onde fora inspecionar suas plantações de macaxeira e inhame, raízes que lhe dão o sustento.  Voltou entusiasmado porque o inverno, este ano, havia sido generoso em chuvas, duplicando a sua produção. Severino aproveitou a abundância da safra de macaxeira  para implantar uma fábrica de tapioca, esse milagre sensorial  -  ia dizendo “organoléptico”, mas ele não iria gostar - , proporcionado pela exuberante raiz. Mandaria  amostras para seus clientes na  Holanda, para onde já exporta a raiz “in natura”.  Severino estava duplamente feliz: caso a oferta vingasse, melhoraria sua renda e, consequentemente, o PIB do país, bem como aumentaria o valor agregado das nossas exportações.

 

Falei de  “organoléptico”, e fiz muito bem. Porque um dia destes eu me envolvi numa acalorada discussão com uma colega que  se dedica à gastronomia,  explorando aromas e sabores com grande maestria. Estávamos num grupo de controlados abstêmios e tomávamos chá de cevada fermentada  quando minha colega, gentilmente, me ofereceu batatas fritas. Aceitei de bom grado, até porque gosto de batatas fritas mas confessei que preferiria aipim frito, para acompanhar a bebida.

 

-- Mas, por que aipim frito?

 

Expliquei-lhe que a razão da minha escolha era apenas um apego ideológico às minhas raízes.

 

--  Mas a batata é mais saborosa, disse ela.

 

--  Mas o aipim é mais saudável, retruquei. Não discutirei o gosto mas o aipim    é superior em tudo. Você sabia que a batata se decompõe a partir de duas horas depois de cozida? Faça uma experiência: Deixe uma batata e um aipim ao ar livre. A batata apodrecerá e exalará um odor insuportável. O aipim mumificará, esperando a sua consumação pelos tempos.

 

--  Mas a batata é mais versátil, atacou ela astutamente.

 

--   Se vamos falar de versatilidade,  o aipim ganha longe. Com a batata você faz um purê, essa mistura esdrúxula de amido e leite e, se você o comer, terá grandes possibilidades de passar o resto do dia aventando flatos alegremente. Com o aipim você também faz um purê, mas não precisa de leite para lhe dar consistência e sabor. Depois disso, além da pecaminosa batata frita, principal responsável pela maior parte da celulite das nossas donzelas, o que mais você pode fazer com a batata? Já sei, a batata rosti, esse repositório descomunal de gordura saturada, porque é feita com manteiga, do contrário não teria sabor. Das batatas ao vapor e das batatas coradas, versão lubrificada das primeiras, nem vale a pena falar. Ah!, sim você vai me falar da vichyssoise, mas eu pergunto: Vale a pena estragar um alho porró para fazer uma sopinha? Bem, agora você poderia me dizer que a fécula de batata é importante para engrossar o queijo do fondue. Certamente, mas ela é importante na  Suíça porque lá  só se planta batata. Aqui pode-se fazer isso perfeitamente com a goma de mandioca.

 

A essa altura, percebendo que minha arenga interminável havia impedido minha colega de se defender, comecei a me sentir mal. Mas,  ao fazer uma pausa, ela disparou:

 

-- Para, para .  Chega !  você está me embromando! Prefiro discutir isto diretamente com o Severino.

 

--  Isso. Isso mesmo, fale com ele. Ele vai lhe explicar as vantagens do aipim frito e as virtudes do purê de aipim, da tapioca, do polvilho azedo para fazer o pão de queijo e do doce para pudins, do pé de moleque feito com massa puba, que não tem nada a ver com pé de moleque do sul, feito de amendoim. E vai falar, também, da joia das sobremesas do Nordeste: o bolo Souza Leão. Severino lhe ensinará a comer farinha de mandioca com mel de engenho e lhe mostrará o montão de farofas que você pode fazer para o seu feijão. E a casquinha de siri? De que é feita além do siri?  Farinha de mandioca!  Isto sim, minha musa, é que é versatilidade.

 

E assim, após algumas taças de chá,  notei que o meu bolodório não a convencia. Ela me fitava complacente, sem bater pestana. Encarei-a com brio, mas não consegui articular palavra. Queria dizer-lhe que eu não estava ali defendendo sabores mas tão somente por fidelidade ideológica as minhas raízes. Levantei-me e me despedi com um beijo fraterno.

Assim que a encontrar vou pedir-lhe desculpas. E às batatas, também.

 

 


23 novembro 2020

O Resgate dos Sentidos


O título se justifica. Estamos perdendo nossa sensibilidade no contato diário com a vida. Os cinco sentidos básicos que nos ligam ao mundo exterior - Visão, Audição, Tato, Paladar e Olfato - estão sendo substituídos  por maquinas, aparelhos e programas de computador (atenção: não esqueça de atualizar os seus) que não só facilitam o seu trabalho de pensar como também o substituem, determinando como você deve comer, se vestir, ouvir, caçar e pescar e falar mal do Governo.

Não tente se opor a isso. Você será abduzido. O avanço tecnológico continuará em ritmo cada vez mais acelerado. Nos dias de hoje estamos automatizando tudo e, com isso, precisamos abandonar os velhos hábitos.  Melhor seria usarmos nossos sentidos tal como eles nos foram dados pela natureza.

Vou propor alguns exercícios: Andei garimpando pequenos trechos escritos ao longo das minhas crônicas, onde associo dois ou mais sentidos. São cenários simples, curiosidades banais, vivências da juventude.

Sem trocadilhos, vamos ler “saboreando as palavras”.  Vamos resgatar nossos sentidos !

 Visão e Olfato  -  O sabor das palavras

Um cenário pacato no Nordeste do Brasil. A conjunção entre um bairro de periferia do Recife e a cidade de Olinda. Um riacho de água lamacenta serve de divisa. Sobre ele, uma pequena ponte. Do outro lado, um velho edifício em estilo colonial entristecido pelo tempo, disfarça o tom ocre das cores que um dia o embelezaram. É a fábrica de doces. Descrevi a cena na  crônica  “O Coronel e Eu” :

“ Quem percorresse a pequena estrada de terra batida que ligava Recife a Olinda, chegando ao Varadouro, seria surpreendido pelo cheiro pungente de goiabas e cajus. Ali, bem cedo, caboclos curtidos pelo sol, sentados junto aos seus balaios, esperavam que a Fábrica de Doces abrisse as portas para entregar sua mercadoria. O amarelo vibrante das goiabas e o vermelho sanguíneo dos cajus lembravam um quadro de Van Gogh. O forte aroma das frutas na manhã úmida inundava o quarteirão e embriagava os sentidos para o resto do dia. Ao cair da tarde, um outro cheiro, ainda mais forte, emanava do prédio da fábrica indicando que a goiabada estava pronta. E este perfume, este sim, ficaria impregnado pelo resto da vida. ”

  Paladar e Olfato  -  O sabor oculto das coisas

 Em Novembro do longínquo ano de 2012 escrevi uma crônica com o titulo de  “O sabor oculto das coisas” onde comentava o sucesso, na época, dos restaurantes de cozinha molecular. E dizia:

“A cozinha molecular tem-nos revelado o que acontece dentro das panelas quando cozinhamos o nosso angu. O que se espera disso é que, sabendo o que ocorre com os alimentos sob a ação do calor, possamos aprimorar o sabor, melhorar a textura, despertar os aromas e iluminar a imagem visual daquilo que comemos”

 Aproveitei para mostrar minha admiração pelo trabalho que fazem os “sommeliers”, capazes de identificar as características de um vinho em seus menores detalhes. Descobri, na época, o livro do Hervé This, físico-químico do Laboratório de Química das Interações Moleculares do “College de France”, em Paris, sobre gastronomia molecular, onde, sob o titulo “O sabor oculto do vinho”, ele explica como os compostos voláteis aromáticos contribuem para a percepção olfativa. Com esta linguagem, certamente acessível a um enólogo, descreve as pesquisas que estão sendo feitas para desencantar os aromas escondidos no vinho:

“A última etapa da hidrólise dos glucosídeos devida aos glucopiranosídeos é aquela que limita a liberação dos torpenois da uva e do vinho porque as enzimas naturais agem muito pouco sobre os monoglucosídeos que têm, como parte não glucosídea ( chamada aglicone) alguns álcoois terciários ( linalol e terpineol). O betaglucosídeo das leveduras enológicas revela, no entanto, uma fraca atividade para o linalil beta-glucosídeo, um dos principais glucosídeos da uva. Além do mais, se  a uva for dotada de ...  ... ... ” e por aí vai”.

Certamente há um mérito indiscutível nesse trabalho, Mas, francamente, para nós que estamos aqui esperando o nosso copo de vinho você acha que vai fazer alguma diferença?

 “Por fim, será interessante ressaltar a discussão que trata  da capacidade dos degustadores e a possibilidade de criar meios artificiais de detecção de aromas. Em “O teleolfato”, no mesmo livro, This pergunta: “Quando alcançaremos esta nova forma de comunicação? Se fomos capazes de reproduzir imagens e sons, se conseguimos registrar as sensações tácteis, estamos em falta com o sabor e o olfato, para tristeza dos gourmets.”  Em seguida, explica o avanço das pesquisas que estão em curso para a criação de um nariz artificial: Um aparelho analisador criado no laboratório INRA, de Theix, França, foi capaz de identificar, pelo cheiro, a origem de uma ostra proveniente da costa francesa.” 

A gastronomia é fascinante, não é? A literatura também. Passaríamos horas falando do sabor oculto das palavras. E se você chegou até aqui, incauto leitor, saiba que conta com a minha compaixão. Agora relaxe, encha o copo e ... Saúde!

 Visão e Tato  -  Os conflitos internos de um adolescente

 Deixei o Recife aos 17 anos de idade, quando concluí o curso industrial básico  de Mecânico de Máquinas na Escola Técnica Federal do Recife, no Derby. Embarquei num DC3 cargueiro com destino ao Rio, numa viagem  que durou 8 horas. Eu havia sido contemplado com uma bolsa de estudos para fazer o curso técnico de indústria têxtil em outra escola técnica, a Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil. Fui alojado em uma casa em São Cristóvão, mais exatamente na Rua Bela, até que se concluísse o edifício da própria escola onde haveria um internato.

As aulas haviam começado. Minha mente mal podia conter o entusiasmo pelas aulas e meu corpo mal podia refrear os impulsos do desejo.

No percurso entre o alojamento e a escola, passávamos pela Avenida Brasil e, num quarteirão paralelo à Avenida, principalmente ao cair da tarde, eu notava um movimento inusitado de gente atarefada que parecia não fazer nada. Quando perguntei o que era aquilo responderam-me solenemente:

Aaa . . . a . . . a . . . aquilo é . . .  o Mangue !

 

O Mangue ?  O Mangue, a cidade proibida, a cidade do pecado...  

O Mangue fervilhava de gente vinte e quatro horas por dia. No Mangue não havia descanso. O Mangue não podia parar. O Mangue era a turbina que proporcionava a energia para o Rio funcionar. O Mangue aliviava tensões, apaziguava discórdias, equilibrava emoções, saciava desejos, alimentava sonhos. O Mangue fazia do carioca um ser equilibrado. O enorme gasômetro ao lado, com sua cúpula que subia e descia sobrepondo-se ao casario baixo da área, criava um cenário de atividade industrial. A sua população deslocava-se com rapidez como operários saindo das fábricas. Um delicado cheiro de gás ocupava todos os espaços, fixava-se nas narinas e no cérebro, e se tornaria, com o tempo, um eficiente afrodisíaco.

O Mangue! A cidade profana que não tinha dia nem noite. Ali aprendi muito. Na voragem do desejo eu via o sofrimento; na subjugação do sexo eu via a humilhação; numa palavra de carinho eu via o alento aflorar na expressão contraída de um rosto sem esperanças. No Rio de Janeiro, fora os estudos, minha ocupação era aprimorar minha  biografia com idas cada vez mais frequentes ao Mangue.

 Quando me desvecilhei de um casamento de conveniência contrário aos meus princípios, busquei guarida num barracão de pescadores na Praia do Ó, um local deserto  muitos quilômetros depois de Olinda. Ali fiquei, totalmente só, em recolhimento , até o fim das férias. E voltei ao Mangue aos prantos mas com a consciência tranquila de que não me havia aproveitado de ninguém.

 

 

 

20 novembro 2020

Eu fiz o meu papel

Decididamente, a Pandemonia sem acento está mexendo com a cabeça das pessoas. O isolamento rigoroso que nos  oprime vem afetando o comportamento das pessoas tornando-as irascíveis e intolerantes.

Na minha última crônica “Vida que segue” tive a oportunidade de abordar esse tema quando tratei do confinamento pandemonico sem acento. Escrevi o seguinte:

Dentro de casa, pais, mães, filhos, sobrinhos e netos, discutem por ninharias e brigam por coisa sérias. Perdem o bom humor e tornam-se grosseiros, quando antes eram alegres e delicados.

Acompanho esse quadro, abatido e consternado.  Não quero desempenhar esse papel. Dado o esclarecimento, chegou a hora de falar de “verdadeiros papéis”. E devo avisar aos meus, ia dizendo “incautos leitores”, como de costume, mas vi que aqui não cabe a advertência. Eles estão devidamente alertados. Vou tratar de papéis de verdade.

Eu fiz  o meu papel quando interpretei “O Diário de Anne Frank”. A peça foi montada no Teatro Santa Isabel do Recife. Fiz o papel de Otto Frank. Foi emocionante. O teatro estava apinhado e, quando caiu o pano, o público delirava. Aqui cabe uma inconfidência: Fiz o papel de Otto Frank vestido com um terno “risca de giz” emprestado pelo Coronel Arthur Lundgren, proprietário do complexo têxtil de Paulista, em Pernambuco.

Eu fiz o meu papel quando levei “A Pena e a Lei” de Ariano Suassuna, no Teatro do Parque. A peça foi dirigida por Hermilo Borba Filho que havia criado o Teatro Popular do Nordeste, juntamente com Ariano, Capiba, Chico Brennand e os própios atores, além de outros nomes ligados à cultura. Fiz o papel de Cheiroso, o dono do Mamulengo, que no terceiro ato se transforma no Cristo.

Eu fiz o meu papel quando interpretei “Três Anjos sem Asas” no Teatro de Arena, do Recife. Era um peça francesa que contava a história de três presidiários em Caiena, na Guiana Francesa. Eu fiz o papel de um mentecapto, papel que coube ao ator Peter Ustinov na produção francesa. O personagem era totalmente careca.

Eu fiz o meu papel no espetáculo da Paixão de Cristo em Fazenda Nova. Aquilo é que era teatro. Durante três dias, num cenário esculpido em pedra por artesãos locais, transcorriam os fatos efetivamente ocorridos durante os dias da Paixão: Sexta-feira Santa, Sábado e Domingo da Ressureição. Ficávamos hospedados na Fazenda do pai do Luiz Marinho que bancava o evento. Não se cobrava ingresso.

Os personagens coadjuvantes eram desempenhados pela população local, todos vestidos como na época. Eu entrei para fazer uma ponta: a cena do “Longuinho” o soldado romano Longinus, que era cego e participava da crucificação. Ele pediu a outro soldado que guiasse a sua mão pois queria espetar o coração do Cristo com a sua lança. Ao fazer isto, o sangue cobriu-lhe o rosto e ele recuperou a visão.

O espetáculo era dirigido magistralmente por Clênio Wanderlei. A mãe do Cristo era Ilva Ninho, que vi há um par de anos fazendo o papel de empregada numa novela da Globo.

 Atuei em Fazenda Nova três anos. Nós chegávamos na segunda-feira para os ensaios e voltávamos na segunda seguinte depois das comemorações. No último ano, o ator que fazia o papel de Caifás não compareceu na segunda feira. Terça feira . . . nada. Clenio entrou em pânico. Na quarta ele me chamou.

“Você vai fazer o papel do Caifás”.

Era um dos textos mais longos da peça. Eu sabia algumas falas do personagem. Algumas. Fiz o papel e o espetáculo se salvou. Mas para contar essa aventura eu precisaria de uma peça inteira.

 Aqui termina o meu papel. E não se fala mais nisso.

Absit injuria verbis.  Dominus vobiscum.

 


08 novembro 2020

Vida que segue

 

“Domine non sum dignus.”

Completados 90 anos, devo admitir que completei um ciclo de vida fecunda e modestamente prodigiosa e que deveria preparar-me para subir a Montanha de Narayama, assunto do qual já tratei, alhures, à exaustão.

No entanto, para não tropeçar no áspero caminho da subida e com isso irritar os deuses que até aqui me têm protegido, resolvi fazer isso com toda a calma e paciência que a provecta idade me recomenda.

Para tratar dessa narrativa resolvi dividir este ciclo em 10 períodos, o que daria 9 anos por período. Assim ficamos com números exatos - dos 9 aos 90 – quando enfrentei, criança de nove anos, à irrupção da segunda guerra mundial como súdito do Eixo e suas consequências. Tratarei disso a seu tempo.

 No último período, exatamente 16 de Setembro passado, minha família, carinhosamente, resolveu contemplar-me com a publicação do livro  “Memórias de um Vago” , um Blog no qual alguns incautos leitores garimpavam presepadas que cometi na minha infância e pior, na minha vida de adulto.

Reuniram-se filhos, netos, sobrinhos e correlatos e, junto com minha esposa, às escondidas, sem que eu suspeitasse, contrataram uma Editora e, no dia do meu aniversário, despejaram na minha frente quatro enormes caixas de livros, numa primorosa edição de 345 páginas, contendo 123 crônicas além de depoimentos de todos os participantes.

A surpresa, o espanto e a comoção foram enormes. Eu não acreditava no que via. Eu me sentia no deserto, vítima de uma miragem. Levei dias para convencer-me de que aquilo existia de verdade. Li as duas primeiras crônicas, tão remotas. Fiquei extasiado.

E tornei-me o maior leitor de mim mesmo.

Os dias foram passando. Dezembro está próximo e a Pandemonia sem acento continua distribuindo sua pestilência sobre nossas cabeças. Não podemos mais ver nossos amigos. Não podemos mais ir à padaria, à banca do  jornaleiro, ao culto da igreja, ao banco sacar uns trocados ou ao bar da esquina onde, nas tardes de fim de semana, nos encontrávamos para tomar um chope e chorar porque o nosso time havia perdido.

Dentro de casa, pais, mães, filhos, sobrinhos e netos, discutem por ninharias e brigam por coisa sérias. Perdem o bom humor e tornam-se grosseiros, quando antes eram alegres e delicados. Não entendem o porque do seu novo comportamento. Muitos perderam o emprego ou são obrigados a trabalhar diante de uma tela de computador sem ver a luz do dia sete dias por semana sem dar-se conta de que esse ambiente insalubre lhe afeta a visão e o cérebro, resultando em depressão grave.

Um castigo injusto para essa geração de jovens que nada tem a ver com as iniquidades e mal feitos cometidos pelos mais velhos, evidenciados pelo comportamento vergonhoso de certos líderes e subalternos de hoje, em todas as classes sociais.

 Diante desse quadro, no meu Castelo, sou um felizardo. Reduzido a uma vida monástica pela limitação da minha idade, consigo sobreviver graças a homeopática mesada com que o sistema oficial de previdência me contempla, mesmo depois de ter contribuído toda uma vida pelo nível mais alto dos rendimentos. Feitos os cálculos atuariais eu teria que viver 120 anos para recuperar o valor da minha contribuição!

Minha rotina é simples. Acordo com as primeiras luzes do dia. Ensaio um bocejo preguiçoso e faço meia dúzia de movimentos para ativar as pernas que insistem em continuar dormindo. Abro as janelas e escancaro a porta frontal, envidraçada, do Castelo. Dou bom dia aos sabiás, um cheiro no pé de alecrim e uma banana ao gambá. Tomo um copo d’agua. Como uma fruta. Com inveja do gambá, geralmente é uma banana.   Ou duas, se forem pequenas. O café é ralo e sem leite. O pão é de farinha integral e sou eu quem o faz.

 O resto do dia prossegue sem percalços. Divido com minha esposa as tarefas que entraram na minha vida por força das inovações tecnológicas que, por complexas, nunca me haviam chamado a atenção: fazer comida, lavar a louça, limpar banheiros, arrumar a cama, espanar moveis . . .  e, suprema função, acomodar o lixo da casa e dispô-lo na porta antes que passe o caminhão.

 Quando me ponho a meditar, analiso e concluo: Sou um felizardo !

E por isso digo

                             Domine non sum dignus”

24 outubro 2020

Dezembro está chegando

https://memoriasdeumvago.blogspot.com/2020/10/dezembro-esta-chegando.html 

Dezembro está chegando e é bom que o faça. Depois que Setembro se foi fiquei à cata de migalhas nos vastos jardins do meu Castelo, atividade que, inicialmente enfadonha, tornou-se fascinante e desafiadora.

 Nestes tempos de confinamento pandemonico, sem acento e sem endereço,  os dias parecem discorrer vazios, monótonos, tediosos e enfadonhos. Parecem. Mas não é o que está acontecendo. Quando me sentei hoje na sacada que dá vista aos jardins e contemplei os pinheiros que contornam a colina, com seu perfil esguio, sua altura infinita perfurando os céus, percebi que eles me apontavam a Montanha de Narayama. Apenas tomei conhecimento pois o mês de Dezembro é para ser festejado e os Deuses têm o momento certo para serem venerados.

 Continuei na minha quietude, usufruindo das delícias que o Castelo sempre me oferece. Os sabiás cantam sem parar, os cães ladram reclamando não sei de que, o sol aumenta seu brilho a cada dia e a temperatura sobe envergonhada, resistindo ao verão que se aproxima.

Depois do esculacho que levei do Severino na semana passada, não vi mais as crianças alegres saltando Amarelinha com uma perna só. Nem com duas. Aproveitei a lição e desencavei um velho disco do Kasparov. E passei a capturar Bispos e Damas no computador.

 Pensando nas alegrias que o mês de Dezembro vai nos proporcionar está, sem dúvida, e para gáudio dos gulosos, o de . . . comer Panettone.

Muitos anos atrás dediquei tempo e esforço a fim de encontrar uma receita para fazê-lo em casa. Tive êxito numa delas, justamente na especialidade mais difícil e inexistente, pelo menos no mundo civilizado que eu frequentava: um Panettone de farinha totalmente integral. Quem já trabalhou em Confeitaria sabe muito bem, é como trabalhar com areia. Mas eu tive sucesso e o aproveitei comercialmente quando, depois de aposentado, precisei encontrar uma atividade que me permitisse complementar a mísera mesada que o Serviço Social me proporcionava.

 Era a época em que o Mister Cooper visitava o Rio de Janeiro e as corridas de rua se tornaram moda. Eu participava de todas elas. As lojas de produtos naturais também. Eu vendia meu panettone lá, pois muitos atletas preferiam esse tipo de alimento. Todas as manhãs, depois de ter ralado a noite inteira na produção, eu partia com duas enormes sacolas para repor as peças vendidas. E, muitas vezes, o que acontecia é que me cabia trazer de volta as peças encalhadas, com o prazo de validade vencido. Vida dura seu Gino, vida dura !

 Mas, a necessidade faz o inventor. Eu usava, para a embalagem, papel manteiga em folhas grandes, que eu cortava conforme a necessidade. Nessa operação sobrava uma tira estreita e longa que, obviamente, era descartada.

Eu havia criado a marca “Panettone do Flamínio”. Então me veio a ideia: Escrevi nas tiras, em letras vermelhas,  a frase  Panettone do Flamínio. A energia do corredor “. A fita foi fixada ao panettone, como um galhardete flamejante. As prateleiras das lojas ficaram reluzindo. E as vendas dispararam.

 Ora pois, mas eu não vim aqui para falar disso. Acontece que o Severino Mandacaru anda me atazanando. Telefonou-me de Cabaceiras onde se encontra confinado, perguntando como eu iria festejar este Natal. Respondi-lhe secamente:

 “ Confinado, como todo o mundo “

“ Seu Galego da gota serena, por que você não faz o  “Natal Tropical ?”

 Eu havia tratado disso muitas crônicas atrás. A ideia era fazer uma festa mais adequada ao clima tropical, sem a neve fabricada com flocos de algodão, nem aquela carroça enorme que desliza sobre as planícies geladas dos campos europeus.    

 O novo cenário já estava definido: Estava no poema de um amigo meu, Wanderlino Teixeira Neto, denominado “Noel Tropical”.

 Ilustrei o poema com uma receita de pé de moleque pernambucano, como sugestão para substituir o clássico panettone. É a crônica de número 75 – “Bolo de Natal”

Tá bom, Severino, você ganhou.  “Fiat voluntas tua” . Aqui vai :

 

NOEL TROPICAL

                                                                            Wanderlino Teixeira Neto

 “Enfeitarei com bolas de bexiga meu pé de angico 

plantado lá no fundo do quintal.

Não virá, neste Natal, Noel, aquele tal:

gordo, patusco, bem nutrido .


 O que há de vir é nanico, endividado, sofrido,

sem gorro na cabeça chata,

de bermuda, camiseta e alpercata.

Em vez da alva barba, a boca em caco

e um balaio, não o saco.

 

Haverá Sol em lugar da neve de algodão

e os sinos não badalarão neste Natal:

os sons serão de berimbau!

 

Nada de castanhas, nozes, avelãs e vinhos de outros cais,

apenas aguardente e frutos tropicais!”

Vejam só: Noel virá de jegue, não de trenó!

 

Até nem será Noel quem virá neste Natal,

mas Severino e Ribamar, e Juvenal e Zé...

que hão de dispensar a sorrateira chaminé!”

 

16 outubro 2020

Setembro se foi

 

Eu fiquei. E comigo ficou a primavera com seu clima ameno e seu sol encabulado. Os sabiás com seu chilreado, não se cansam de cantar. Os saguis pulam, cada um no seu galho e tentam nos confundir com seus assobios disfarçados. A natureza penetra polos nossos poros e nos obriga a viver felizes mesmo contra a nossa vontade. Crianças alegres saltitam agilmente brincando de Amarelinha sobre os retângulos desenhados com giz branco sobre a calçada.

 “ Você tá variando, Galego. Amarelinha ?  Quem já viu criança brincando na calçada hoje em dia ? Pulando amarelinha, e com uma perna só, não é, Galego ? Também viu moleques no meio da rua jogando pelada com bolas improvisadas, feitas de meias velhas não é ?  Você tá leso, pirou de vez Galego. “.

 “ Ué, você táva aí, Severino ?

 “ Criança hoje só faz joguinho no celular. Está todo o mundo ali, com a cabeça mal espetada no topo do esqueleto, ninguém fala, olhar fixo na tela procurando adivinhar de onde vem a próxima paulada, facada, bomba, relâmpago, estrondo ou a suprema desgraça : a frase  “ game over ”

 “ Pera aí Severino, não é bem assim . . . o mundo de hoje . . . “

 “ Quer saber de uma coisa, Galego ? Vai jogar xadrez, vai ! “

 Setembro se foi. E foi um mês de muita felicidade e alegria. Foi um mês de comemorações, de festejos, de agradecimento a todos os membros da família dispersos por este mundo afora, separados por fronteiras que a Pandemonia, sem acento nem endereço, resolveu tornar intransponíveis.

 Foi um mês, também, de reconhecimento aos amigos, que nos acompanharam com sua presença, agora virtual, suas palavras de apoio e incentivo, sua contribuição na solução das mazelas quotidianas que nos alcançam na flor da idade, ou melhor, na idade provecta.

“Domine non sum dignus”.

Pois agora é preciso viver o Outubro e tudo o que vem pela frente: Consertar ossos quebrados, endireitar colunas tortas e desinchar os pés, cozinhar macaxeira e lavar as próprias panelas.De resto, pouco tenho a lhes oferecer. Fica pelo menos o consolo de que esta crônica saiu bem curtinha.

12 setembro 2020

Setembro chegou

 

Setembro chegou

 

Setembro chegou. E com ele a Primavera que explode em cores, sabores, aromas, sorrisos e murmúrios para as nossas almas trancadas por força do castigo universal que se abateu sobre nossas cabeças. Feliz apesar do castigo, sigo minha vidinha rica de surpresas, ao lado da minha companheira e dos entes queridos e abnegados que cuidam de nós cuidando, até o mínimo detalhe, para que nada nos falte.

Nada obstante, aproximando-me da chamada “provecta idade” estou consciente das minhas limitações. Entre estas, o uso de um implemento  que termina com  uma curva em forma de ganso invertida, e que se tornou o móvel mais importante da casa: a Bengala. Ontem mesmo, depois de saciar a fome com um prodígio culinário proporcionado pelo Bistrô Primavera, sentindo-me merecedor de um descanso reparador, também chamado cochilo, resolvi deitar-me na cama. Para tanto tratei de levar comigo a bengala já que precisaria dela para, depois, levantar-me.

Nada. Não a encontrava. Procurei em todos os recantos. Fui até a sala. Nada. Passei pela cozinha, pelo banheiro. Nada. Contrariado, fiquei enfurecido e disse: “Ah, é assim ? Então não vou dar cochilo coisa nenhuma, que se dane tudo. Eu vou pro meu computador que lá eu me divirto.”  Joguei a bengala em cima da cama e fui !

 

28 agosto 2020

Amar o Transitório




 Tristeza, dor, sofrimento, frustação, vingança, represália, abandono, traição, angústia.  Afinal, o que é que te sobrou ?  Nada.  O que é feito de tua vida ?  Nada. O que é feito dos teus desejos, da tua esperança, da tua alegria, do teu sorriso, dos teus sonhos ? Nada. Sobrou-me o vazio, o vácuo, a solidão ?
Não. Decididamente, não. Veja o que diz o Poeta:

 A Solidão e Sua Porta      
Carlos Pena Filho


Quando nada mais resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)

Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho nz batalha

Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo o que é insolvente e provisório
e  de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório 


Carlos Pena Filho, poeta pernambucano que encantou os jovens intelectuais do Recife com suas tertúlias no Bar Savoy, na Av. Guararapes, com os seus chopes: 

“São Trinta copos de chope,
São Trinta homens sentados,
Trezentos desejos presos, 
Trinta mil sonhos frustados" 

Carlos foi vítima de um  acidente  automobilístico em 1960. Tinha trinta anos de idade. Tive o privilégio de conhecê-lo quando eu frequetava o Bar Savoy, no início de 1959 e eu andava fazendo teatro, encenando a Paixão de Cristo em Fazenda Nova. Aprendi com ele e por isso ouso dizer que ainda me resta uma saída: “Entrar no acaso e amar o transitório”

E, antes de me despedir, queridos e distantes amigos, quero deixar-lhes a estrofe de outro grande poeta, Fernado Pessoa, com quem aprendi que

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A  dor que deveras sente”


16 agosto 2020

Sonhos

 

" Sonhos que fogem . . . e aos corações não voltam mais "



Minha alma vagava em desatino

 Negando-se a cumprir o seu destino

Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura

Onde pudesse iniciar vida mais pura

                                                                                                             

 

Esta semana visitei meu bambuzal. A neblina espessa, muito comum nesta época do ano, baixava sobre o Vale do Cônego, criando uma atmosfera de triste melancolia. Perfurando o lençol branco da neblina sobressaía, soberbo, o cocoruto do Chapéu da Bruxa.Foi nesse clima nebuloso que, saindo do meio das brumas, me deparei com o Severino Mandacaru.Mostrando uma expressão de espanto, Severino contemplava o Chapéu da Bruxa meneando a cabeça negativamente num sinal inconfundível de desaprovação.

 “ Galego safado, o que é que você andou aprontando? Todo mundo está se queixando de você.”

 “ Não sei porque, nem vejo motivo. Tenho prestado contas da minha vida com toda a sinceridade e cordura. Aos meus parentes, que me sustentam, aos meus amigos, que me apoiam, me prestigiam e me alegram e à Divina Potestate, segundo Dante, quando me for exigido. Por isso não vejo motivo para queixas.                                                        Ah! Se for por causa das minhas ideias políticas, fiquem tranquilos. Não tenho nenhuma. Resta-me agora cuidar dos meus fantasmas e dos meus sonhos.

“ Mas Galego, e que história foi aquela que você andou falando, de uma tal de Narayama, no topo de uma montanha que . . . . . . .”

 “ Metáforas, Severino ! Metáforas. Narayama existe e todos haveremos de enfrentá-la, seja na forma de Montanha ou de Abismo. Cada um poderá  escolher a sua forma ou entregar-se ao Destino, ao Sincro-Destino de que fala o poeminha do Sonho. Mas este não é o momento para tratar disso. Falemos de você. O que você tem feito?”

 “ Nada. Isso diz tudo. Com Pandemonia sem acento e sem endereço, como diz você, me vejo condenado a comer minhas próprias tapiocas. Também tenho sonhado muito Galego. Sonhado com um mundo mais decente, mais justo, mais equilibrado, o que quer que isso signifique. Um mundo sem preconceitos, sem ódio, sem guerras. Um mundo de paz no qual eu iria dormir com a certeza de acordar no dia seguinte feliz por fazer parte desse mundo. E por falar em sonho, como acabou aquele sonho que você teve em 2014 e  você narrou  num poema que mais parecia um necrológio ?”

 “ Bem lembrado, Severino, bem lembrado! Porque aquele sonho, eu tive, de verdade! Eu flutuava no ar, e me sentia feliz. Tanto é que termino o poema com um epitáfio à altura do evento. Chamei o poema de  “A Pena da Morte” , para não confundir com  “A Pena de Morte”, que seria só a condenação. Ali não. Ali, a morte era ao vivo. Quem ler vai entender.”

 Então, aqui vai:                    

 

A Pena da Morte

Eu tive um sonho

E no meu sonho eu morria

E morrendo eu não me via

Sofrer  como devia.

 

Porque sofrendo passei a vida inteira

E mesmo sabendo que a vida é passageira

Não me dei conta de que um dia eu morreria

 

De repente uma pena apareceu no espaço

Riscando os ares  rápida e matreira

E apontando  meu peito zombeteira

Disparou letras com desembaraço

 

A pena desenhava no ar letras  mal feitas

Que eu arrumava sem zelo em linhas tortas

Para que fossem consideradas letras mortas

 

E assim passou-se o tempo

Minha alma vagava em desatino

 Negando-se a cumprir o seu destino

Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura

Onde pudesse encontrar vida mais pura

 

Eu me deixava flutuar no ar disperso

Para não perder  as letras e desperdiçar o verso

 

Foi quando a pena, com sua ponta de platina

Tresloucada  insana  escreveu ferina:

     

“Aqui  jaz aquele que achava

Que em sonho morreria

Mas no seu sonho delirava

Porque morto  já estava e não sabia”

 

 

“ Galego da gota serena. Você  não toma jeito mesmo.  Onde é que já se viu brincar com um assunto desses. E ninguém,  ninguém   reclamou ? ”

 “ Sei lá. Foi há tantos anos. Naquele tempo não se discutia política como hoje. Se fosse hoje iriam logo dizer que sou conivente com o governo e, por isso, responsável pelas mazelas de todo mundo. Se eu disser que não apoio o governo vão dizer que não acreditam nisso que eu apenas estou fingindo que mesmo assim sou responsável porque não faço nada, que tem milhões morrendo de fome etc. etc.  E dizem isso a um pobre perneta que só está aqui esperando completar o seu primeiro século e dar um ciao. Dominus Vobiscum.”

 “ É, Galego, não se amofine. Faça como eu, vá cuidar de suas tapiocas. Mas você não veio aqui para falar de sonhos?”

 " É verdade, Severino. Sonhos. Só Sonhos. Você lembra do Raimundo Correia? Claro,  foi você que me recitou um dos poemas dele: “As Pombas”. Vou citar as últimas estrofes e depois me despeço. Com uma furtiva lágrima.

 

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

“Também dos corações onde abotoam

, Os sonhos, um por um céleres voam,

 Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam

Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,

 E eles aos corações não voltam mais...

 


Em tempo: 

Eu havia preparado uma outra versão para o epitáfio, mais adequada ao "evento". Aqui vai ela:

Aqui  jaz o bobão que achava

Que em sonho morreria

E bobão ele era

Porque morto  já estava e não sabia”