O
título se justifica. Estamos perdendo nossa sensibilidade no contato diário com
a vida. Os cinco sentidos básicos que nos ligam ao mundo exterior - Visão, Audição,
Tato, Paladar e Olfato - estão sendo substituídos por maquinas, aparelhos e programas de
computador (atenção: não esqueça de atualizar os seus) que não só facilitam o
seu trabalho de pensar como também o substituem, determinando como você deve
comer, se vestir, ouvir, caçar e pescar e falar mal do Governo.
Não
tente se opor a isso. Você será abduzido. O avanço tecnológico continuará em
ritmo cada vez mais acelerado. Nos dias de hoje estamos automatizando tudo e,
com isso, precisamos abandonar os velhos hábitos. Melhor seria usarmos nossos sentidos tal como
eles nos foram dados pela natureza.
Vou
propor alguns exercícios: Andei garimpando pequenos trechos escritos ao longo
das minhas crônicas, onde associo dois ou mais sentidos. São cenários simples,
curiosidades banais, vivências da juventude.
Sem
trocadilhos, vamos ler “saboreando as palavras”. Vamos
resgatar nossos sentidos !
Visão e
Olfato -
O sabor das palavras
Um cenário pacato no Nordeste do Brasil.
A conjunção entre um bairro de periferia do Recife e a cidade de Olinda. Um
riacho de água lamacenta serve de divisa. Sobre ele, uma pequena ponte. Do
outro lado, um velho edifício em estilo colonial entristecido pelo tempo,
disfarça o tom ocre das cores que um dia o embelezaram. É a fábrica de doces.
Descrevi a cena na crônica “O Coronel e Eu” :
“ Quem percorresse
a pequena estrada de terra batida que ligava Recife a Olinda, chegando ao
Varadouro, seria surpreendido pelo cheiro pungente de goiabas e cajus. Ali, bem
cedo, caboclos curtidos pelo sol, sentados junto aos seus balaios, esperavam
que a Fábrica de Doces abrisse as portas para entregar sua mercadoria. O
amarelo vibrante das goiabas e o vermelho sanguíneo dos cajus lembravam um
quadro de Van Gogh. O forte aroma das frutas na manhã úmida inundava o
quarteirão e embriagava os sentidos para o resto do dia. Ao cair da tarde, um
outro cheiro, ainda mais forte, emanava do prédio da fábrica indicando que a
goiabada estava pronta. E este perfume, este sim, ficaria impregnado pelo resto
da vida. ”
Paladar e Olfato - O
sabor oculto das coisas
Em Novembro do longínquo ano de 2012
escrevi uma crônica com o titulo de “O
sabor oculto das coisas” onde comentava o sucesso, na época, dos restaurantes
de cozinha molecular. E dizia:
“A cozinha molecular tem-nos revelado
o que acontece dentro das panelas quando cozinhamos o nosso angu. O que se
espera disso é que, sabendo o que ocorre com os alimentos sob a ação do
calor, possamos aprimorar o sabor, melhorar a textura, despertar os aromas e
iluminar a imagem visual daquilo que comemos”
Aproveitei para mostrar minha admiração
pelo trabalho que fazem os “sommeliers”, capazes de identificar as características
de um vinho em seus menores detalhes. Descobri, na época, o livro do Hervé This,
físico-químico do Laboratório de Química das Interações Moleculares do “College
de France”, em Paris, sobre gastronomia molecular, onde, sob o titulo “O sabor
oculto do vinho”, ele explica como os compostos voláteis aromáticos contribuem
para a percepção olfativa. Com esta linguagem, certamente acessível a um enólogo,
descreve as pesquisas que estão sendo feitas para desencantar os aromas
escondidos no vinho:
“A última etapa da hidrólise dos
glucosídeos devida aos glucopiranosídeos é aquela que limita a liberação dos
torpenois da uva e do vinho porque as enzimas naturais agem muito pouco sobre
os monoglucosídeos que têm, como parte não glucosídea ( chamada aglicone)
alguns álcoois terciários ( linalol e terpineol). O betaglucosídeo das
leveduras enológicas revela, no entanto, uma fraca atividade para o linalil
beta-glucosídeo, um dos principais glucosídeos da uva. Além do mais,
se a uva for dotada de ... ... ... ” e por aí vai”.
Certamente há um mérito indiscutível nesse
trabalho, Mas, francamente, para nós que estamos aqui esperando o nosso copo de
vinho você acha que vai fazer alguma diferença?
“Por fim, será interessante ressaltar
a discussão que trata da capacidade dos degustadores e a
possibilidade de criar meios artificiais de detecção de aromas. Em “O
teleolfato”, no mesmo livro, This pergunta: “Quando alcançaremos esta nova forma
de comunicação? Se fomos capazes de reproduzir imagens e sons, se conseguimos
registrar as sensações tácteis, estamos em falta com o sabor e o olfato, para
tristeza dos gourmets.” Em seguida, explica o avanço das pesquisas
que estão em curso para a criação de um nariz artificial: Um aparelho
analisador criado no laboratório INRA, de Theix, França, foi capaz de
identificar, pelo cheiro, a origem de uma ostra proveniente da costa francesa.”
A gastronomia é fascinante, não é? A
literatura também. Passaríamos horas falando do sabor oculto das palavras. E se
você chegou até aqui, incauto leitor, saiba que conta com a minha compaixão.
Agora relaxe, encha o copo e ... Saúde!
Visão e Tato - Os
conflitos internos de um adolescente
Deixei
o Recife aos 17 anos de idade, quando concluí o curso industrial básico de Mecânico de Máquinas na Escola Técnica
Federal do Recife, no Derby. Embarquei num DC3 cargueiro com destino ao Rio, numa
viagem que durou 8 horas. Eu havia sido
contemplado com uma bolsa de estudos para fazer o curso técnico de indústria têxtil
em outra escola técnica, a Escola Técnica Federal de Indústria Química e
Têxtil. Fui alojado em uma casa em São Cristóvão, mais exatamente na Rua Bela, até
que se concluísse o edifício da própria escola onde haveria um internato.
As
aulas haviam começado. Minha mente mal podia conter o entusiasmo pelas aulas e
meu corpo mal podia refrear os impulsos do desejo.
No percurso entre o alojamento e a escola, passávamos pela
Avenida Brasil e, num quarteirão paralelo à Avenida, principalmente ao cair da
tarde, eu notava um movimento inusitado de gente atarefada que parecia não
fazer nada. Quando perguntei o que era aquilo responderam-me solenemente:
Aaa
. . . a . . . a . . . aquilo é . . . o Mangue
!
O
Mangue ? O Mangue, a cidade proibida, a
cidade do pecado...
O Mangue
fervilhava de gente vinte e quatro horas por dia. No Mangue não havia descanso.
O Mangue não podia parar. O Mangue era a turbina que proporcionava a energia
para o Rio funcionar. O Mangue aliviava tensões, apaziguava discórdias,
equilibrava emoções, saciava desejos, alimentava sonhos. O Mangue fazia do
carioca um ser equilibrado. O enorme gasômetro ao lado, com sua cúpula que subia
e descia sobrepondo-se ao casario baixo da área, criava um cenário de atividade
industrial. A sua população deslocava-se com rapidez como operários saindo das
fábricas. Um delicado cheiro de gás ocupava todos os espaços, fixava-se nas
narinas e no cérebro, e se tornaria, com o tempo, um eficiente afrodisíaco.
O Mangue! A cidade profana que não tinha dia nem noite. Ali aprendi
muito. Na voragem do desejo eu via o sofrimento; na subjugação do sexo eu via a
humilhação; numa palavra de carinho eu via o alento aflorar na expressão
contraída de um rosto sem esperanças. No Rio de Janeiro, fora os estudos, minha
ocupação era aprimorar minha
biografia com idas cada vez mais frequentes ao Mangue.
Quando
me desvecilhei de um casamento de conveniência contrário aos meus princípios, busquei
guarida num barracão de pescadores na Praia do Ó, um local deserto muitos quilômetros depois de Olinda. Ali
fiquei, totalmente só,
em recolhimento , até o fim das férias. E voltei ao Mangue aos prantos mas com
a consciência tranquila de que não me havia aproveitado de ninguém.