16 agosto 2020

Sonhos

 

" Sonhos que fogem . . . e aos corações não voltam mais "



Minha alma vagava em desatino

 Negando-se a cumprir o seu destino

Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura

Onde pudesse iniciar vida mais pura

                                                                                                             

 

Esta semana visitei meu bambuzal. A neblina espessa, muito comum nesta época do ano, baixava sobre o Vale do Cônego, criando uma atmosfera de triste melancolia. Perfurando o lençol branco da neblina sobressaía, soberbo, o cocoruto do Chapéu da Bruxa.Foi nesse clima nebuloso que, saindo do meio das brumas, me deparei com o Severino Mandacaru.Mostrando uma expressão de espanto, Severino contemplava o Chapéu da Bruxa meneando a cabeça negativamente num sinal inconfundível de desaprovação.

 “ Galego safado, o que é que você andou aprontando? Todo mundo está se queixando de você.”

 “ Não sei porque, nem vejo motivo. Tenho prestado contas da minha vida com toda a sinceridade e cordura. Aos meus parentes, que me sustentam, aos meus amigos, que me apoiam, me prestigiam e me alegram e à Divina Potestate, segundo Dante, quando me for exigido. Por isso não vejo motivo para queixas.                                                        Ah! Se for por causa das minhas ideias políticas, fiquem tranquilos. Não tenho nenhuma. Resta-me agora cuidar dos meus fantasmas e dos meus sonhos.

“ Mas Galego, e que história foi aquela que você andou falando, de uma tal de Narayama, no topo de uma montanha que . . . . . . .”

 “ Metáforas, Severino ! Metáforas. Narayama existe e todos haveremos de enfrentá-la, seja na forma de Montanha ou de Abismo. Cada um poderá  escolher a sua forma ou entregar-se ao Destino, ao Sincro-Destino de que fala o poeminha do Sonho. Mas este não é o momento para tratar disso. Falemos de você. O que você tem feito?”

 “ Nada. Isso diz tudo. Com Pandemonia sem acento e sem endereço, como diz você, me vejo condenado a comer minhas próprias tapiocas. Também tenho sonhado muito Galego. Sonhado com um mundo mais decente, mais justo, mais equilibrado, o que quer que isso signifique. Um mundo sem preconceitos, sem ódio, sem guerras. Um mundo de paz no qual eu iria dormir com a certeza de acordar no dia seguinte feliz por fazer parte desse mundo. E por falar em sonho, como acabou aquele sonho que você teve em 2014 e  você narrou  num poema que mais parecia um necrológio ?”

 “ Bem lembrado, Severino, bem lembrado! Porque aquele sonho, eu tive, de verdade! Eu flutuava no ar, e me sentia feliz. Tanto é que termino o poema com um epitáfio à altura do evento. Chamei o poema de  “A Pena da Morte” , para não confundir com  “A Pena de Morte”, que seria só a condenação. Ali não. Ali, a morte era ao vivo. Quem ler vai entender.”

 Então, aqui vai:                    

 

A Pena da Morte

Eu tive um sonho

E no meu sonho eu morria

E morrendo eu não me via

Sofrer  como devia.

 

Porque sofrendo passei a vida inteira

E mesmo sabendo que a vida é passageira

Não me dei conta de que um dia eu morreria

 

De repente uma pena apareceu no espaço

Riscando os ares  rápida e matreira

E apontando  meu peito zombeteira

Disparou letras com desembaraço

 

A pena desenhava no ar letras  mal feitas

Que eu arrumava sem zelo em linhas tortas

Para que fossem consideradas letras mortas

 

E assim passou-se o tempo

Minha alma vagava em desatino

 Negando-se a cumprir o seu destino

Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura

Onde pudesse encontrar vida mais pura

 

Eu me deixava flutuar no ar disperso

Para não perder  as letras e desperdiçar o verso

 

Foi quando a pena, com sua ponta de platina

Tresloucada  insana  escreveu ferina:

     

“Aqui  jaz aquele que achava

Que em sonho morreria

Mas no seu sonho delirava

Porque morto  já estava e não sabia”

 

 

“ Galego da gota serena. Você  não toma jeito mesmo.  Onde é que já se viu brincar com um assunto desses. E ninguém,  ninguém   reclamou ? ”

 “ Sei lá. Foi há tantos anos. Naquele tempo não se discutia política como hoje. Se fosse hoje iriam logo dizer que sou conivente com o governo e, por isso, responsável pelas mazelas de todo mundo. Se eu disser que não apoio o governo vão dizer que não acreditam nisso que eu apenas estou fingindo que mesmo assim sou responsável porque não faço nada, que tem milhões morrendo de fome etc. etc.  E dizem isso a um pobre perneta que só está aqui esperando completar o seu primeiro século e dar um ciao. Dominus Vobiscum.”

 “ É, Galego, não se amofine. Faça como eu, vá cuidar de suas tapiocas. Mas você não veio aqui para falar de sonhos?”

 " É verdade, Severino. Sonhos. Só Sonhos. Você lembra do Raimundo Correia? Claro,  foi você que me recitou um dos poemas dele: “As Pombas”. Vou citar as últimas estrofes e depois me despeço. Com uma furtiva lágrima.

 

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

“Também dos corações onde abotoam

, Os sonhos, um por um céleres voam,

 Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam

Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,

 E eles aos corações não voltam mais...

 


Em tempo: 

Eu havia preparado uma outra versão para o epitáfio, mais adequada ao "evento". Aqui vai ela:

Aqui  jaz o bobão que achava

Que em sonho morreria

E bobão ele era

Porque morto  já estava e não sabia”

 




 

2 comentários:


  1. Eu também tenho sonhos Galego! E nesses sonhos várias músicas ecoam... e hoje, 16 agosto de 2020, eu me emocionei com essa ...

    Não há, ó gente, ó não
    Luar como esse do sertão
    Não há, ó gente, ó não
    Luar como esse do sertão
    Se a lua nasce por detrás da verde mata
    Mais parece um sol de prata prateando a solidão
    E a gente pega na viola que ponteia
    E a canção e a lua cheia a nos nascer do coração


    São tantos sonhos Galego! Deixa-me te contar outro... sabe aquele sonho do que é aprender a viver, Galego? Que a gente navega, rema, navega... e quando acha que já remou tanto, ainda temos força para mais algumas braçadas e remadas! Sabe o por quê, Galego? Porque sempre é tempo de encontrar alguma coisa dentro de gente que ainda não descobrimos!

    Que linda narração Galego!
    Te mando um abraço!

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  2. Entendo teu desânimo Galego
    E compartilho dele.
    O Brasil de hoje está muito chato.
    Bem fazes em se refugiar no seu Castelo.

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