08 novembro 2020

Vida que segue

 

“Domine non sum dignus.”

Completados 90 anos, devo admitir que completei um ciclo de vida fecunda e modestamente prodigiosa e que deveria preparar-me para subir a Montanha de Narayama, assunto do qual já tratei, alhures, à exaustão.

No entanto, para não tropeçar no áspero caminho da subida e com isso irritar os deuses que até aqui me têm protegido, resolvi fazer isso com toda a calma e paciência que a provecta idade me recomenda.

Para tratar dessa narrativa resolvi dividir este ciclo em 10 períodos, o que daria 9 anos por período. Assim ficamos com números exatos - dos 9 aos 90 – quando enfrentei, criança de nove anos, à irrupção da segunda guerra mundial como súdito do Eixo e suas consequências. Tratarei disso a seu tempo.

 No último período, exatamente 16 de Setembro passado, minha família, carinhosamente, resolveu contemplar-me com a publicação do livro  “Memórias de um Vago” , um Blog no qual alguns incautos leitores garimpavam presepadas que cometi na minha infância e pior, na minha vida de adulto.

Reuniram-se filhos, netos, sobrinhos e correlatos e, junto com minha esposa, às escondidas, sem que eu suspeitasse, contrataram uma Editora e, no dia do meu aniversário, despejaram na minha frente quatro enormes caixas de livros, numa primorosa edição de 345 páginas, contendo 123 crônicas além de depoimentos de todos os participantes.

A surpresa, o espanto e a comoção foram enormes. Eu não acreditava no que via. Eu me sentia no deserto, vítima de uma miragem. Levei dias para convencer-me de que aquilo existia de verdade. Li as duas primeiras crônicas, tão remotas. Fiquei extasiado.

E tornei-me o maior leitor de mim mesmo.

Os dias foram passando. Dezembro está próximo e a Pandemonia sem acento continua distribuindo sua pestilência sobre nossas cabeças. Não podemos mais ver nossos amigos. Não podemos mais ir à padaria, à banca do  jornaleiro, ao culto da igreja, ao banco sacar uns trocados ou ao bar da esquina onde, nas tardes de fim de semana, nos encontrávamos para tomar um chope e chorar porque o nosso time havia perdido.

Dentro de casa, pais, mães, filhos, sobrinhos e netos, discutem por ninharias e brigam por coisa sérias. Perdem o bom humor e tornam-se grosseiros, quando antes eram alegres e delicados. Não entendem o porque do seu novo comportamento. Muitos perderam o emprego ou são obrigados a trabalhar diante de uma tela de computador sem ver a luz do dia sete dias por semana sem dar-se conta de que esse ambiente insalubre lhe afeta a visão e o cérebro, resultando em depressão grave.

Um castigo injusto para essa geração de jovens que nada tem a ver com as iniquidades e mal feitos cometidos pelos mais velhos, evidenciados pelo comportamento vergonhoso de certos líderes e subalternos de hoje, em todas as classes sociais.

 Diante desse quadro, no meu Castelo, sou um felizardo. Reduzido a uma vida monástica pela limitação da minha idade, consigo sobreviver graças a homeopática mesada com que o sistema oficial de previdência me contempla, mesmo depois de ter contribuído toda uma vida pelo nível mais alto dos rendimentos. Feitos os cálculos atuariais eu teria que viver 120 anos para recuperar o valor da minha contribuição!

Minha rotina é simples. Acordo com as primeiras luzes do dia. Ensaio um bocejo preguiçoso e faço meia dúzia de movimentos para ativar as pernas que insistem em continuar dormindo. Abro as janelas e escancaro a porta frontal, envidraçada, do Castelo. Dou bom dia aos sabiás, um cheiro no pé de alecrim e uma banana ao gambá. Tomo um copo d’agua. Como uma fruta. Com inveja do gambá, geralmente é uma banana.   Ou duas, se forem pequenas. O café é ralo e sem leite. O pão é de farinha integral e sou eu quem o faz.

 O resto do dia prossegue sem percalços. Divido com minha esposa as tarefas que entraram na minha vida por força das inovações tecnológicas que, por complexas, nunca me haviam chamado a atenção: fazer comida, lavar a louça, limpar banheiros, arrumar a cama, espanar moveis . . .  e, suprema função, acomodar o lixo da casa e dispô-lo na porta antes que passe o caminhão.

 Quando me ponho a meditar, analiso e concluo: Sou um felizardo !

E por isso digo

                             Domine non sum dignus”

11 comentários:

  1. Acho que o melhor jeito de se vingar dessa previdência mesquinha é viver esses 120 anos! (Jurava que o café da manhã de preferência eram os legumes cozidos 🤣)

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  2. Acho que deves, realmente, ajustar as contas com essa previdência e viver mesmo esses 120 anos!!!!!
    E nós aqui, vamos lendo crônicas....
    E nós aqui, vamos admirando seu trajeto...
    E nós aqui, vamos olhando o sol e agradecendo seu calor e luz!

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  3. Obrigado Thais e Ana Alice, pelas palavras de incentivo e carinho.

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  4. Concordo que deve realmente se vingar da previdência, seria uma vantagem pra nós!
    Bem observado o caos do dia a dia das pessoas nesta pandemia e parabéns por aproveitar tão bem os dias encarcerados..! Nós mais uma vez tiramos proveito disso e aprendemos com você!
    Um forte abraço,
    Silvana

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  5. Obrigado Silvana, pelo seu comentário. Acho que eu esagerei nos cálculos atuariais. Vou reduzir para 110 anos, e assim aumentar as chances de cumprir a meta.

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  6. QUe exagero! Desculpem o "esagero". Algum corretor Capeta . . .

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