20 novembro 2020

Eu fiz o meu papel

Decididamente, a Pandemonia sem acento está mexendo com a cabeça das pessoas. O isolamento rigoroso que nos  oprime vem afetando o comportamento das pessoas tornando-as irascíveis e intolerantes.

Na minha última crônica “Vida que segue” tive a oportunidade de abordar esse tema quando tratei do confinamento pandemonico sem acento. Escrevi o seguinte:

Dentro de casa, pais, mães, filhos, sobrinhos e netos, discutem por ninharias e brigam por coisa sérias. Perdem o bom humor e tornam-se grosseiros, quando antes eram alegres e delicados.

Acompanho esse quadro, abatido e consternado.  Não quero desempenhar esse papel. Dado o esclarecimento, chegou a hora de falar de “verdadeiros papéis”. E devo avisar aos meus, ia dizendo “incautos leitores”, como de costume, mas vi que aqui não cabe a advertência. Eles estão devidamente alertados. Vou tratar de papéis de verdade.

Eu fiz  o meu papel quando interpretei “O Diário de Anne Frank”. A peça foi montada no Teatro Santa Isabel do Recife. Fiz o papel de Otto Frank. Foi emocionante. O teatro estava apinhado e, quando caiu o pano, o público delirava. Aqui cabe uma inconfidência: Fiz o papel de Otto Frank vestido com um terno “risca de giz” emprestado pelo Coronel Arthur Lundgren, proprietário do complexo têxtil de Paulista, em Pernambuco.

Eu fiz o meu papel quando levei “A Pena e a Lei” de Ariano Suassuna, no Teatro do Parque. A peça foi dirigida por Hermilo Borba Filho que havia criado o Teatro Popular do Nordeste, juntamente com Ariano, Capiba, Chico Brennand e os própios atores, além de outros nomes ligados à cultura. Fiz o papel de Cheiroso, o dono do Mamulengo, que no terceiro ato se transforma no Cristo.

Eu fiz o meu papel quando interpretei “Três Anjos sem Asas” no Teatro de Arena, do Recife. Era um peça francesa que contava a história de três presidiários em Caiena, na Guiana Francesa. Eu fiz o papel de um mentecapto, papel que coube ao ator Peter Ustinov na produção francesa. O personagem era totalmente careca.

Eu fiz o meu papel no espetáculo da Paixão de Cristo em Fazenda Nova. Aquilo é que era teatro. Durante três dias, num cenário esculpido em pedra por artesãos locais, transcorriam os fatos efetivamente ocorridos durante os dias da Paixão: Sexta-feira Santa, Sábado e Domingo da Ressureição. Ficávamos hospedados na Fazenda do pai do Luiz Marinho que bancava o evento. Não se cobrava ingresso.

Os personagens coadjuvantes eram desempenhados pela população local, todos vestidos como na época. Eu entrei para fazer uma ponta: a cena do “Longuinho” o soldado romano Longinus, que era cego e participava da crucificação. Ele pediu a outro soldado que guiasse a sua mão pois queria espetar o coração do Cristo com a sua lança. Ao fazer isto, o sangue cobriu-lhe o rosto e ele recuperou a visão.

O espetáculo era dirigido magistralmente por Clênio Wanderlei. A mãe do Cristo era Ilva Ninho, que vi há um par de anos fazendo o papel de empregada numa novela da Globo.

 Atuei em Fazenda Nova três anos. Nós chegávamos na segunda-feira para os ensaios e voltávamos na segunda seguinte depois das comemorações. No último ano, o ator que fazia o papel de Caifás não compareceu na segunda feira. Terça feira . . . nada. Clenio entrou em pânico. Na quarta ele me chamou.

“Você vai fazer o papel do Caifás”.

Era um dos textos mais longos da peça. Eu sabia algumas falas do personagem. Algumas. Fiz o papel e o espetáculo se salvou. Mas para contar essa aventura eu precisaria de uma peça inteira.

 Aqui termina o meu papel. E não se fala mais nisso.

Absit injuria verbis.  Dominus vobiscum.

 


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