25 abril 2014

Cabeça dura


Passei a vida ouvindo dos meus amigos que eu era um cabeça dura. Nunca concordei. É verdade que, ainda na tenra idade, por volta dos oito anos, minha mãe já sentenciava:
 “Esse menino é cabeça dura. Vai dar trabalho aos professores na escola, à esposa quando se casar e aos médicos pelo resto da vida”.

Não nego que sempre defendi com tenacidade exacerbada algumas ideias que considerava inovadoras como por exemplo quando, no alvor da juventude, após devorar a história dos grandes convertidos começando por Santo Agostinho, Tomas Merton, Saint Exupery, Paulo Setubal e não sei quantos mais, eu mesmo me desconverti e me declarei ateu. Também não posso esconder que, logo depois, assustado com um temporal que disparava raios que só podiam ser mandados por Deus, amoleci a cabeça e, prudentemente, mudei para agnóstico. Nunca se sabe, vai que...

Outro exemplo do denodo com que defendi minhas ideias foi quando tentei convencer minha noiva de que o casamento era uma instituição falida e que o negócio era a amigação. Nisto eu não estava sendo original. Acabava de ler Bertrand Russel e ele mostrava isso. Minha noiva deu uma gargalhada e disse que eu era muito engraçado. Interpretei isso como um elogio e casei-me na Igreja. Para não perder a dignidade, contei com a  intervenção do meu amigo Valfrido Salmito que me dizia: “Galego, você é o ateu mais cristão que eu conheço. Vai casar na Igreja, sim.”
Agora, passados cinquenta anos, vocês concordarão comigo Eu estava certo. Não preciso entrar em detalhes. Examinem os casais à sua volta, consultem as estatísticas e vocês me darão razão.

Mas isto foi apenas uma digressão. Minha intenção é cuidar de outro assunto. A ciência nos ensina que a cabeça é composta de duas partes: o miolo e a casca. Por princípio, o miolo é mole e a casca é dura. Mas, vejam só, a expressão “cabeça dura” se aplica ao miolo e não à casca pois define o individuo que é teimoso ou, com um pouco de boa vontade, àquele que é tenaz na defesa de suas ideias. O miolo que defende a amigação dos casais é protegido pela casca. Não sabemos, até agora, se o grau de rigidez da casca é direta ou inversamente proporcional à dureza do miolo, mas que existe uma relação não há dúvida.
Uma experiência vivida há poucos dias demonstrou-me isto e devo dizer que, lamentavelmente, prevaleceu a segunda hipótese.

Eu caminhava com desenvoltura pela casa no cumprimento de tarefas inadiáveis de quem não tem o que fazer quando, inesperadamente, algo interrompeu o meu caminho. Dei de cara, quero dizer, de cabeça com uma pesada viga de madeira que cumpria o seu dever de sustentar o teto. Um estrondo e um relâmpago. Percebi que eu tombava, e para traz. Durante o percurso pensei: vou cair de costas, não tenho como apoiar-me com as mãos, espero cair sentado. Foi o que aconteceu. O impacto dos grandes glúteos com o solo não teve maiores consequências mas a energia cinética armazenada no primeiro estágio da queda fez com que o tronco continuasse o seu caminho em direção ao solo. Desta vez foi um estalo seco como o de um raio quando parte uma árvore ao meio. Um clarão enorme. Não sei quanto tempo fiquei deitado mas quando levantei o tronco, ainda sentado, apalpei a cabeça. Um galo havia se formado na base da nuca. Não havia sangue.
Olhei para traz. No percurso havia partido o canto de uma mesa de mármore com dois centímetros de espessura.  Descartei os estilhaços e recolhi o pedaço maior, que guardo comigo.  Levo-o  no bolso sempre que saio para caminhar. É o meu GPS.
Agora todo o mundo me chama de miolo mole.



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