Passei a vida ouvindo dos meus amigos
que eu era um cabeça dura. Nunca concordei. É verdade que, ainda na tenra
idade, por volta dos oito anos, minha mãe já sentenciava:
“Esse menino é cabeça dura. Vai dar trabalho
aos professores na escola, à esposa quando se casar e aos médicos pelo resto da
vida”.
Não nego que sempre defendi com
tenacidade exacerbada algumas ideias que considerava inovadoras como por
exemplo quando, no alvor da juventude, após devorar a história dos grandes
convertidos começando por Santo Agostinho, Tomas Merton, Saint Exupery, Paulo
Setubal e não sei quantos mais, eu mesmo me desconverti e me declarei ateu.
Também não posso esconder que, logo depois, assustado com um temporal que disparava
raios que só podiam ser mandados por Deus, amoleci a cabeça e, prudentemente,
mudei para agnóstico. Nunca se sabe, vai que...
Outro exemplo do denodo com que defendi
minhas ideias foi quando tentei convencer minha noiva de que o casamento era
uma instituição falida e que o negócio era a amigação. Nisto eu não estava
sendo original. Acabava de ler Bertrand Russel e ele mostrava isso. Minha noiva
deu uma gargalhada e disse que eu era muito engraçado. Interpretei isso como um
elogio e casei-me na Igreja. Para não perder a dignidade, contei com a intervenção do meu amigo Valfrido Salmito que
me dizia: “Galego, você é o ateu mais cristão que eu conheço. Vai casar na
Igreja, sim.”
Agora, passados cinquenta anos, vocês
concordarão comigo Eu estava certo. Não preciso entrar em detalhes. Examinem os
casais à sua volta, consultem as estatísticas e vocês me darão razão.
Mas isto foi apenas uma digressão.
Minha intenção é cuidar de outro assunto. A ciência nos ensina que a cabeça é
composta de duas partes: o miolo e a casca. Por princípio, o miolo é mole e a
casca é dura. Mas, vejam só, a expressão “cabeça dura” se aplica ao miolo e não
à casca pois define o individuo que é teimoso ou, com um pouco de boa vontade,
àquele que é tenaz na defesa de suas ideias. O miolo que defende a amigação dos
casais é protegido pela casca. Não sabemos, até agora, se o grau de rigidez da
casca é direta ou inversamente proporcional à dureza do miolo, mas que existe
uma relação não há dúvida.
Uma experiência vivida há poucos dias
demonstrou-me isto e devo dizer que, lamentavelmente, prevaleceu a segunda
hipótese.
Eu caminhava com desenvoltura pela casa
no cumprimento de tarefas inadiáveis de quem não tem o que fazer quando,
inesperadamente, algo interrompeu o meu caminho. Dei de cara, quero dizer, de
cabeça com uma pesada viga de madeira que cumpria o seu dever de sustentar o
teto. Um estrondo e um relâmpago. Percebi que eu tombava, e para traz. Durante
o percurso pensei: vou cair de costas, não tenho como apoiar-me com as mãos,
espero cair sentado. Foi o que aconteceu. O impacto dos grandes glúteos com o
solo não teve maiores consequências mas a energia cinética armazenada no
primeiro estágio da queda fez com que o tronco continuasse o seu caminho em
direção ao solo. Desta vez foi um estalo seco como o de um raio quando parte uma
árvore ao meio. Um clarão enorme. Não sei quanto tempo fiquei deitado mas
quando levantei o tronco, ainda sentado, apalpei a cabeça. Um galo havia se
formado na base da nuca. Não havia sangue.
Olhei para traz. No percurso havia
partido o canto de uma mesa de mármore com dois centímetros de espessura. Descartei os estilhaços e recolhi o pedaço
maior, que guardo comigo. Levo-o no bolso sempre que saio para caminhar. É o
meu GPS.
Agora todo o mundo me chama de miolo
mole.
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