Raimundo
Nonato mal completou quinze anos de idade. Acorda cedo. Naquela manhã fresca e
úmida percorre a longa alameda que o
separa da escola, serpenteando por entre
os oitizeiros. Da calçada coberta pelos frutos maduros, levanta-se o cheiro dos oitis, inundando o ar. É um cheiro
acre, pungente, desagradável. Causa-lhe
náuseas. Vez por outra Raimundo interrompe sua caminhada para ouvir o canto de
um pássaro, contemplar as gotas de orvalho que ainda cobrem as folhas nos
jardins ou examinar uma teia de aranha que se destaca no contra luz do sol.
Raimundo
sente-se angustiado. Por mais bucólica que fosse aquela manhã não consegue
liberar-se das inquietações que o perseguem. Não vislumbra um futuro. Estará aprendendo alguma coisa? Como será o
amanhã? E se não houver amanhã? E esse maldito cheiro de oitis que não
termina nunca?
A
rotina era estafante: chegada na escola, ginástica, café da manhã, aulas
práticas nas oficinas, almoço, aulas teóricas durante toda a tarde. E a volta
pela longa alameda com o cheiro nauseabundo dos oitis.
Hoje
é sábado, não haverá aula. Raimundo não sabe por que resolveu fazer a caminhada. Quando se deu conta já
estava no meio da alameda chutando oitis, marcando gols nos buracos das grades
que cercam os jardins. Consolou-se. Seria interessante observar o velho prédio
da escola pendurado sobre a margem do rio; as barcaças carregadas de areia, rio
abaixo, levadas pela correnteza e rio acima, vazias, empurradas pelo varejão, a
longa vara de pau que o remador apoia no ombro, caminhando pelo costado da
embarcação. Com o prédio deserto, o cenário era de paz. Mas Raimundo sente-se
intranquilo. Olha para o lado oposto. A poucos metros, dali, bem colado ao rio,
encontra-se um velho tambor de caldeira que não teria mais do que um metro de
diâmetro, sombreado por uma tamarineira.
Ali
mora Zé da Cuia, um indigente que vive de magras contribuições em troca de
pequenos serviços. Não aceita esmolas. Alimenta-se na escola com as sobras do
café da manhã e do almoço.
Zé
estava pescando, como fazia quase todas as manhãs. Raimundo puxa conversa.
-
E aí, Zé, pescando?
-
Não, rezando.
-Ahâ...
Raimundo
resolve passar para o outro lado e atravessa por cima da vara de pescar que se
encontra apoiada na terra.
-
Não faça isso! Você não sabe que dá azar? Espanta os peixes.
-
Desculpa. Você já comeu hoje?
-
Já. Guardei de ontem. Tinha munguzá e tapioca.
Estimulado
pelo interesse do rapaz, Zé da Cuia começou a falar um pouco de sua vida. Falou
das dificuldades pelas quais tinha passado, do sofrimento e das agruras que o
atormentaram por muito tempo.
-
Não tinha onde dormir. Comida eu catava
nos baldes que os restaurantes jogavam
fora. Pra me vestir catava roupa no lixo...
Zé
fez um longo silêncio, fitando o chão. E concluiu:
-
É, meu amigo, eu já andei ruim de vida.
Ruim
de vida!
As palavras não saiam da cabeça de Raimundo.
“O sofrimento relativo”.
Zé
da Cuia vivia o sofrimento relativo. Portanto, havia alcançado a “felicidade
relativa”. Nossa insatisfação cresce continuamente. Ansiamos ter. E quanto mais
temos, mais queremos. E assim vamos ao encontro da infelicidade.
Raimundo
Nonato contemplou demoradamente o rio. As barcaças de areia desciam levadas
pela corrente e subiam levadas pelo homem. Despediu-se de Zé da Cuia com um
beijo na testa.
E
percorrendo o caminho de volta pela longa alameda, saltitava por entre as árvores aspirando o aroma delicioso
e inebriante dos oitis maduros.
Muito bonito e emocionante o texto.
ResponderExcluirO que mais gosto quando leio suas estórias são as imagens que me vêm. Me sinto parte da cena, nesse caso, fui caminhando com o Raimundo, sentindo o cheiro dos oitis (que delícia!)e até as angústias. Um forte abraço, Silvana
...e aí a gente descobre que, quanto mais simples a vida, mais felicidade podemos ter...
ResponderExcluirViva esse Zé da Cuia! Viva o aprendizado de Raimundo Nonato!!!
Shirley
Mudando de perspectiva, melhora ou piora o cheiro dos oitis. É verdade.O oiti que achei sob a chuva , neste verão de suspenses, permanece sobre uma mesa, sem destino. Suas crônicas ... não encontro adjetivos, sem cair no lugar comum. Enfim, muito boas. Não deixe de escrever.
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