Apaixonei-me, à primeira vista, pelo
tablet da Mary. Comecei a vigiar o tablet ao perceber que ele não recebia de
sua proprietária os cuidados que sua função exigia. Abandonado ora aqui, ora
ali, eu sempre o via tristonho, sem brilho, sem vida. Minha preocupação
continuou comigo.
A viagem pelo Vale dos Vinhedos, na
Serra Gaúcha, me reservaria
encantamentos inesquecíveis. Eu já tinha andado por lá varias vezes mas
nunca havia, de fato, percorrido aquelas colinas e penetrado na alma daquela
gente que, com ternura e sabedoria, transforma uva em vinho. Desta vez foi
diferente. Juntei-me a um grupo de doze aventureiros organizado por dois
malucos: Jurandyr e Flamínio, dois magos da culinária, sim, aqueles mesmos que
promovem o “Mãos na Massa”, uma espécie de programa sócio cultural dedicado à
gastronomia, no Mercado Central de Nova Friburgo.
Durante cinco dias percorremos aquelas
terras em busca de novas sensações conhecendo suas uvas, seus vinhos, seus
toneis e seus cardápios elaborados dentro da inconfundível tradição dos
colonizadores vênetos. Flamínio e
Jurandyr conseguiram manter aceso o nosso espírito e ativo o nosso corpo, desde
a alvorada até o cair da noite, durante todo o tempo que durou a longa jornada
de visita às principais vinícolas da região.
Na Casa Valduga, uma empresa grande e
bem organizada, encontramos uma recepção calorosa que nos surpreendeu. Andrei,
seu enólogo, discorreu sobre as diferentes castas de uva plantadas em seus
vinhedos e os respectivos métodos de produção. Durante a degustação aprendemos
a distinguir a delicadeza de um pinot noir, a suavidade de um merlot, a
potencia do cabernet e a robustez do tannat.
Não longe dali encontramos o mestre
Antonio Dal Pizzol, proprietário de uma vinícola que tem coração de gente. Com
uma proposta inovadora a Vinícola Dal Pizzol cultiva um acervo denominado
“Vinhedo do Mundo” com mais de 500 variedades de uva destinadas à pesquisa.
Oferece, também, à visitação, um pequeno museu onde exibe prensas, filtros,
dornas, balanças e todo o tipo de apetrecho usados pelos colonizadores no
início da produção de vinho na Serra Gaúcha. Numa curiosa adega adaptada em um
antigo forno de cerâmica, mestre Antonio armazena centenas de garrafas de
safras inimagináveis, muitas com mais de vinte anos. Generosamente, Antonio nos
brindou com a degustação de um cabernet sauvignon safra 1995, que se apresentou
surpreendentemente vivo. Durante o jantar que nos ofereceu, montado sobre um
cardápio tipicamente vêneto, invadimos a cozinha e fomos ajudar a mexer a
polenta.
Visitamos a Cave Geisse, um modelo perfeito de
empreendimento que une a pesquisa a atividade produtiva, fundada pelo enólogo
chileno Mario Geisse. Geisse veio para o Brasil e estabeleceu-se como diretor
de uma grande vinícola. Ao conhecer a
Serra Gaúcha percebeu que algumas colinas ofereciam as condições ideais para a
cultura de determinadas cepas. Com sua experiência e muita dedicação começou a
produzir vinhos em caráter experimental. Incorporando aos poucos novas áreas de
cultivo e depois de muita pesquisa, Mario Geisse, com sua família, fundou a
Cave Geisse concentrando-se na produção de espumantes. Hoje produz vinhos de
altíssima qualidade nessa categoria. O seu Geisse 98, por exemplo, foi
classificado entre os “20 mais” pela crítica Jancis Robinson no principal
evento mundial de vinho que se raliza em Hong Kong.
No edifício principal da Cave fomos
recebidos por seu filho Daniel, também
enólogo, que nos guiou durante a visita às instalações e dirigiu o longo
ritual de degustações. E aí tivemos uma grande surpresa: Nossos guias Flamínio
e Jurandyr, cobriram-se com os paramentos de chef e ocuparam a cozinha da Cave
para montar nosso almoço, um delicioso e variado cardápio que dispensou os três
pratos típicos da tradição vêneta, exaustivamente degustados nos dias
anteriores: a sopa de cappelletti, a polenta e o creme de sagu. Este, com
vinho.
Flamínio apresentou sua renomada “pasta
fresca”, desta vez com molho de salvia. Jurandyr esmerou-se nas entradas:
iniciou com um cornetto de salmão cru temperado com que, só ele sabe. Uma
delícia que só parei de comer quando percebi que a bandeja estava vazia. Foi a
primeira vez que consegui harmonizar peixe cru com vinho (até então eu só
combinava peixe cru com saquê). Usei um Cave Geisse Nature – 12,5%.
Seguiu-se um desfile de defumados que o
próprio Jurandyr produz em seu santuário de Nova Friburgo, o que nos
proporcionou um novo festival de harmonizações. Seguiram-se os pratos. A
cozinha foi invadida. Todos perguntavam tudo. Jurandyr, sempre solícito e
paciente, entoava alegremente explicações e conselhos. Vinho não faltou. Faltou
tempo, porque a hora já era tarda e devíamos marchar para uma nova ventura.
Meia hora serpenteando pelas colinas por
entre lindas casas coloniais e vinhedos, e alcançamos a Pizzato Vinhas e
Vinhos. Localizada a noroeste de Bento Gonçalves, a Vinícola Pizzato desenvolveu
uma diversificada linha de vinhos de alta qualidade. Com vinhedos espalhados
pelo Vale dos Vinhedos e o Planalto Gaúcho, a Pizzato oferece uma ampla gama de
vinhos produzidos a partir das cepas merlot, cabernet, tannat, alicante,
egiodola, pinot noir e chardonnay. No seu catálogo constam também cinco
variedades de espumantes (um deles produzido com a uva pinot noir) e três cortes de tintos cuidadosamente
selecionados.
E aqui nossos guias nos surpreenderam
mais uma vez com uma nova e incrível experiência: preparar nosso próprio vinho.
Alfredo e Carolina orientaram os trabalhos.
A turma foi dividida em três grupos. Cada grupo deveria montar o seu
blend a partir de quatro cepas fornecidas pela vinícola. O resultado seria
avaliado por um júri de enólogos e someliers e os vinhos seriam classificados
conforme os pontos recebidos. Deveria ser desenhado um rótulo e feita uma
descrição do conceito adotado. Foi um sucesso. Cada grupo comemorou seu
resultado com se tivesse sido o vencedor e, orgulhosos, fomos todos para a mesa
deleitar-se com um jantar de cinco pratos. Vida longa à Pizzato e aos nossos
dois malucos!
Estão de parabéns promotores e
participantes.
Os promotores, pela originalidade do
empreendimento; pela perfeita organização das atividades cuja intensidade não
permitiu sequer um minuto de tédio; pela escolha dos anfitriões e suas
calorosas recepções; pelo cuidado que tiveram na escolha dos trajetos, feitos
em veículos confortáveis, com pontualidade impecável e conduzidos por profissional
competente, atencioso e ainda por cima bem humorado; pela qualidade da
hospedagem, elegante mas sem exageros; pelo que deram de si transmitindo
conhecimentos, revelando experiências pessoais e cuidando dos distraídos mesmo
aqueles que não tinham tablet.
Os participantes, pelo comportamento
educado, sempre alegres, pontuais, criativos nas brincadeiras, solidários nas
necessidades e atenciosos com os mais
avançados na idade.
Na manhã de quarta feira, dia do
regresso, já pairava no ar um clima de nostalgia. Daqueles dias de feliz
convívio, do prazer sensual pela estética da paisagem, dos sabores, dos aromas,
da inebriante experiência proporcionada pelas harmonizações dos vinhos - e das pessoas.
Continuei vigiando o tablet. Não queria
que ele se perdesse. Quanto à Mary, não sei. Desapareceu afundada na mesma
poltrona em que chegou, levando consigo os demais companheiros. E deixando uma
profunda sensação de vazio.
Perfeito! não lhe passou nada despercebido. Fazendo a leitura voltei a sentir até o cheiro da polenta com galinha do Sr. Antonio,o arrepio de prazer do 1º SABRE,o almoço harmonioso na Cava Giesse o disfarce de todos os "chorões de plnatão" Epopéia Italiana; Genaro e Rosa, não nessa ordem. Anciosa a espera do próximo encontro para treinar nosso paladar com as próximas surpresas da Flatur que já não é mais Flatur kkk sdes bjks e aguardando
ResponderExcluirNossa!!! Que poder descritivo é esse? Por algum tempo, estive nesses lugares, na companhia do grupo e juro que senti o gosto gostoso do vinho.
ResponderExcluirJá te disse que seu poder de criar, de traduzir sua realidade em palavras é fabuloso. Parabéns pelo texto. Não canso de ler o que escreve.
Abraços!
Shirley
Cada vez que leio, me emociono. O casal Luigi e Dorotea, que vieram como handicap por ser amigo e parceiro do Flaminio, são uma escola de vida. Um exemplo.
ResponderExcluirA narrativa, que eu chamaria de epopéia friburguense é de uma generosidade enorme.
A verdade, a verdade verdadeira, é que o melhor da viagem, o melhor mesmo, foi o privilégio de termos o casal conosco.
Jurandir.