17 dezembro 2011

Bolo de Natal

O Natal chegou e eu vou  comemorá-lo. Mas este ano quero fazer um Natal diferente. Não quero ver aqueles pinheiros de plástico verde desbotado com aquela neve de algodão hidrófilo que só fazem me lembrar as feridas da infância. Não quero ver o gordo barbudo suando dentro de um macacão de veludo  vermelho, com temperatura interna de quarenta e oito graus. Não quero comer peru assado com ameixas (ameixas!) e tâmaras, estas, vindas de outros desertos que não a caatinga. Não quero ouvir gingosbels ...gingosbels ...Quero ouvir  “A manteiga derramou”, ao som de berimbaus e atabaques.
 Este ano vou mudar as cores do  meu Natal: no lugar do verde necrófilo do falso pinheiro, colocarei o  verde do mar do Cabo de Santo Agostinho; no lugar do vermelho  veludo,  o vermelho do pôr de sol do Rio São Francisco e no lugar da alvura das neves eternas, pois que não se dissolvem nem a quarenta graus, o prateado  reflexo da lua no Cais do Apolo.

E vou fazer o meu bolo de Natal com massa puba, uma receita que o Severino Mandacaru trouxe lá da caatinga do Brejo da Madre de Deus, em Pernambuco, onde tem sua plantação de macaxeira. É uma joia da “pâtisserie nordestine”  e eu quero dividi-la com você. Prepare-se para trabalhar. Sua auto estima será outra quando você servir o bolo aos seus amigos e disser: “Fui eu que fiz. Aqui no sul você não vai encontrar isto em lugar nenhum”.

A  massa puba
Primeiro você precisa fazer a massa puba. Puba é o nome que se dá à macaxeira fermentada. Os índios obtinham essa fermentação colocando a macaxeira no remanso do rio.  Não desanime. Ela não dá trabalho. Só requer paciência.
Escolha três quilos e meio de macaxeira fresca. Descasque-a e lave-a bem. Coloque-a em um balde e cubra-a de agua, deixando pelo menos um palmo  acima do nível da macaxeira. Cubra o balde com um pano e amarre-o para que não  saia do lugar.
Não agite a agua nem movimente o balde, o que poderia interromper a fermentação. Em sete ou oito dias sua fermentação estará completa. A raiz estará mole e você sentirá um suave odor ácido resultante da fermentação.
Retire a macaxeira e lave-a bem, descartando o caldo da fermentação.
Rale a macaxeira e esprema o líquido em excesso. Você obterá de dois a dois quilos e meio de massa, suficiente para dois bolos. Separe a que vai usar e faça bolas com o restante, envolvendo-as em filme de plástico. Você pode guardar essa massa por uma semana na geladeira ou seis meses no freezer.

O Bolo
1       quilo de massa puba
300   gramas de açúcar mascavo
200   gramas de castanha de caju picadas
60     gramas de manteiga
150   ml de chá de erva doce bem forte
50     ml de chá de cravo
400   ml de leite de coco 
10     gramas de sal
1       colher de chá de canela em pó
2       ovos mais uma gema
2       colheres de sobremesa de sementes de erva doce
q.b    castanhas de caju inteiras para a cobertura

Passe a massa por uma peneira. Ela deve permanecer úmida e bem solta.
Prepare  os chás de cravo e erva doce, e deixe esfriar.
Incorpore o sal, a canela em pó,  a manteiga (previamente derretida) , a castanha de caju e a semente de erva doce à massa e homogeneíze  o melhor que puder.
Em uma batedeira coloque os ovos com o açúcar e bata em velocidade media por aproximadamente seis minutos ou até ficar uma mistura bem cremosa.
Junte o creme à massa e adicione o leite de coco. Vá acrescentando os chás empastando até o conjunto ficar uniforme. Se preferir, coloque tudo na batedeira e bata dois a três minutos na velocidade baixa.
Coloque numa forma untada e enfarinhada, espete as castanhas inteiras e asse durante 50 minutos em forno médio.

Nota: Esta receita é uma adaptação do famoso “pé de moleque” que se faz  no Nordeste que, apesar do nome, nada tem a ver com a mistura de amendoim e açúcar caramelado que se usa no sul.




28 novembro 2011

A língua nossa de cada dia

“Senhor, senhor, te rogamos
E rogaremos sem fim
Que caiam raios de merda
No professor de latim”
                                              Belisario Betancur
                     

Belisario Betancur escreveu estes versos quando tinha 12 anos de idade. Pelo atrevimento, foi expulso da escola. Mais tarde ele se tornaria presidente da Colômbia. Quem narra esse detalhe na vida de Betancur é seu conterrâneo Gabriel Garcia Marquez, Prêmio Nobel de Literatura,  o qual, num artigo escrito em Fevereiro de 1993  para homenagear os 70 anos do presidente, explica assim a sua veia poética:
“Na verdade ele não foi um governante que amava a poesia mas um poeta a quem o destino impôs a penitência do poder.”

Nihil Obstat. Imprimatur
Hoje não se ensina mais latim nas escolas. As línguas foram se difundindo e misturando entre os povos, tornando-se cada vez  mais complexas. À cada geração adicionam-se novos termos produzidos pelas inovações tecnológicas, por novos costumes, e novas formas de relacionamento entre as pessoas. O latim, destinado a preservar a pureza das línguas que dele nasceram, tornou-se inócuo para o seu aprendizado.  Seu uso está reservado aos filólogos e , bucolicamente, a citações de máximas, anexins e provérbios latinos que até hoje não encontraram tradução convincente:
“Similia similabus curantur”  ... “Porta patens esto. Nullo clauderis honesto” ... “Naturam expellas furca” ... e por aí vai.

Nem por isso os esforços para preservar a pureza da língua desapareceram. Pelo menos na língua portuguesa, merecedora – ou vítima, não sei bem – de várias reformas ortográficas em menos de três décadas. De que serviram?  Para ilustrar essa questão proponho voltar a Garcia Marquez. Em conferência pronunciada no México em Abril de 1997 intitulada  “Garrafa ao mar para o Deus das palavras”  ele diz, na tradução de Eric Nepomuceno, o seguinte:
“... Nesse sentido eu me atreveria a sugerir, diante dessa platéia de sábios, que simplifiquemos a gramática antes que a gramática acabe nos simplificando. Humanizemos suas leis, aprendamos das línguas indígenas, às quais tanto devemos, o muito que ainda têm para nos ensinar e enriquecer, assimilemos logo – e bem – os neologismos técnicos e científicos antes que nos sejam infiltrados sem digerir, negociemos de bom coração os gerúndios bárbaros, com os quês endêmicos, o  dequeísmo parasitário, e devolvamos ao subjuntivo presente o esplendor de suas esdrúxulas. Vamos aposentar a ortografia, terror do ser humano desde o berço: enterremos os agás rupestres, assinemos um tratado de limites entre o gê e o jota e ponhamos mais uso da razão nos acentos escritos, que afinal de contas ninguém haverá de ler lagrima onde se diga lágrima, nem confundirá revolver com revólver. E o que dizer do nosso bê de burro e nosso vê de vaca, que os avós espanhóis nos trouxeram como se fossem dois e sempre sobra um?”

Estas são as sugestões de um Prêmio Nobel de Literatura a uma assembléia de sábios. Merecem reflexão. Consta que Portugal, depois de  assinar a última reforma ortográfica, não a adotou. Não há registro de que suas instituições de ensino ou os meios de comunicação tenham dado a mínima atenção ao acordo. De que serviu? A quem serviu?


Nova Friburgo, em 4 de Março de 2012
  Em  29 de Março de 2010 publiquei a crônica “Cada um com sua língua” no blog  Depois da Oficina, onde tentei brincar com as idiossincrasias da nossa língua e ali  me penitenciava por não acompanhar a reforma ortográfica recém implantada. Posteriormente, em 2 de Dezembro de 2010, transferi esta crônica para o Memórias de um Vago com o título de “Cada um com sua língua”.
Naquela época eu havia guardado um exemplar do jornal  “rascunho”, um jornal de crítica literária editado em Curitiba. É de Novembro de 2010 e nele se encontra um depoimento importante.  Acho oportuno  transcrevê-lo.

Carta de José Ignácio Coelho Mendes Neto ao jornal “rascunho” de Novembro de 2010:
“Nova Ortografia”
“Descobri recentemente o jornal Rascunho - - - . É o primeiro veículo de imprensa que vejo destacar sua recusa da reforma. Achei uma iniciativa sensacional, que deveria ter sido a norma entre todos os usuários da língua. Sou tradutor e revisor e repudio completamente a proposta de reforma ortográfica articulada por meia dúzia de indivíduos que se julgam no direito de alterar a língua apenas para venderem suas obras de atualização. É o maior crime contra a nossa cultura que já ocorreu em toda a história da língua portuguesa. Não só os motivos alegados são todos escusos, como a própria substância da reforma introduz cascatas de novos erros e incertezas. Um atentado como esse só poderia resultar da mentalidade burocrática que acha que a língua pode ser objeto de legislação. Em Portugal, que por razões incompreensíveis concordou com essa palhaçada, a reforma não foi adotada por nenhum órgão de comunicação, por nenhuma instituição de ensino, nem pública, nem privada, por nenhuma editora, nem pela população. Foi totalmente ignorada, como deveria  ser. Pelo menos vejo que a sua publicação foge à postura acéfala e acrítica que domina o nosso país. Estão de parabéns!
                                                     José Ignácio Coelho Mendes Neto



22 novembro 2011

Uma Droga Legal

Ópio, cocaína, heroína, maconha, crack, cola de sapateiro. Não conheço a lista completa das drogas letais que assolam a humanidade. Mas, por que a sociedade ainda não resolveu legalizá-las? Acabaria com a rede criminosa do tráfico que, em alguns lugares, constitui um poder paralelo muito mais forte do que o poder do governo. Alega-se que a liberação das drogas levaria a um consumo exacerbado, o que resultaria na morte de inocentes. Que inocentes? Os que hoje são assassinados pelas balas perdidas disparadas pelos próprios traficantes?

Não tenho preparo necessário para discutir a questão das drogas. Intelectuais de todo o mundo têm debatido o problema e, pelo que vejo, sem grande resultado. O que eu quero mostrar é que existe uma droga, perfeitamente legal, com a qual, até agora ninguém se preocupou: o crédito bancário. Ela não mata nem agride o corpo físico mas desarranja toda a sociedade afetando principalmente as classes mais pobres, mais vulneráveis à ação dos traficantes. Claro que é preciso distinguir entre o crédito à produção e o crédito ao consumidor, e é deste que estamos falando. Através de cartões de crédito, carnês, cheques pré-datados empréstimos bancários, notas promissórias, “caderneta” da quitanda, e fios de bigode, as pessoas vão comendo aquilo que ainda não produziram.

 Porque, quando alguém recebe, por antecipação, alguma coisa, com a promessa de que irá devolvê-la (pagá-la) mais tarde, com o fruto do seu trabalho,  está, na realidade, consumindo aquilo que ainda não produziu. Com um agravante. Ela terá que pagar uma remuneração por esse “favor” : os juros. Os juros são um bem metafísico que não tem contrapartida no sistema produtivo e, portanto, engrossa o déficit dos bens a serem pagos a futuro. Isso é possível porque, entre os humanos civilizados,  bens e serviços são representados por pedaços de papel de curso legal, ou por números armazenados em servidores de computador, protegidos por uma parafernália de back-ups.  E que deus nos livre de um dia isso estourar.

Comprar a crédito vicia, como vicia qualquer droga. E quem são os traficantes dessa nova droga? Alguém invisível, representado por marionetes escondidos atrás de um telefone, com quem você discute, negocia e implora para defender-se do ataque, isto é, quando você ainda não está viciado. Quem não gastou horas ao telefone, esgotou a paciência, perdeu a calma, tentando livrar-se daqueles malditos cartões de crédito que ninguém pediu e mal se sabe quem enviou? Quem não gastou tempo explicando pacientemente que não precisa daquela generosidade tipo “aproveite, seu limite de crédito foi aumentado”? Quem não desperdiçou energias pendurado num telefone explicando a uma múmia escondida não se sabe onde, tentando obter o estorno de uma  tarifa cobrada por um serviço que nunca pediu nem utilizou?
Tome cuidado. Essa droga não mata. Mas esfola.

29 setembro 2011

A tremonha



“Alô...alô! Joaquim, sou eu . Olha, eu deixei o Tarquínio tomando conta da tremonha mas estou preocupado, queria que você fosse lá e desse uma olhada. Hein?  Não, não ...  é que tinha um parafuso solto e ... o que ?, eu sei que quando você saiu estava funcionando direito mas você pode não ter visto o parafuso... claro, claro, mas quando eu passei lá... espera aí...  eu vi que tinha um parafuso solto e se aquela merda explodir vai voar farinha pra todo o lado e todo o mundo vai ver... calma, porra, deixa eu falar... o Tarquínio é um pobre coitado, não pode deixar ele sozinho, se der merda a culpa não é dele, vai lá...  olha... vai lá e confere tudo... escuta, Joaquim, vai lá e ajuda ele... o que?  o que?  Não, escuta o que eu tô falando, Joaquim... tá me ouvindo? Alô, alô! Joaquim? Tá me ouvindo? Tá me ouvindo? ...  Merda de telefone!”
Desligou.

Eu já estava quase adormecendo,  sentado naquela poltrona escorregadia da Mil e Um que chacoalhava pela  RJ 116 com a promessa de me deixar no Rio a tempo de tomar um chopinho. Eu, que não tinha nada a ver com aquela encrenca, me via agora sofrendo com o que poderia acontecer com o  Tarquínio. Estou cansado de me tornar testemunha involuntária de conversas alheias ouvidas através desse aparelhinho diabólico e, ainda mais, tendo que adivinhar o que se diz o outro lado da linha.
Não quero saber da vida alheia, não quero me envolver em briga de casais, reclamações de contas não pagas, declarações melosas de namorados arrependidos, papos codificados de amor, tão óbvios, que escancaram a montagem de uma infidelidade conjugal.  Chega. Não quero ser obrigado a ouvir confissões, delações e  broncas de gente que não conheço. Vou reclamar ao governo!  Vou pedir ao estado que proíba o uso de celular nos lugares públicos. Ele já o proibiu dentro dos bancos! Pois que o proíba também nos lugares por onde passo.  Esse  “Estado babá”, como alguém já o chamou, que me humilha quando viajo de avião - quem se lembra de “A tesourinha” do Zuenir Ventura? – esse estado que inventou o kit de primeiros socorros para os automóveis, uma palhaçada que não durou mais de um mês, tempo suficiente para encher as burras de alguns espertalhões, esse estado que encurta o tempo do sinal amarelo nos semáforos para faturar multas obscenas, que  deixou a Ponte Rio Niterói criar quatro faixas de rolamento onde só cabem três, que autoriza os provedores de banda larga a fornecer míseros  dez por cento da velocidade contratada, que me obriga a trocar todas  as tomadas da  casa fazendo-me refém dos preços abusivos das lojas que as vendem ... e agora chega.  Resistência passiva. Desobediência civil. Viva o Mahatma Gandhi!

E de que é estavam falando,  afinal de contas?  Que  droga  é  tremonha ?  Que farinha é essa?  É de trigo?  De milho? De mandioca ? É fina? É grossa ? Pra que serve ? Isso só pode ser coisa de bicheiro. Ou será de traficante ?  A farinha não seria para  “cortar”  cocaína? Deus me livre! E se eu for chamado a testemunhar, só porque ouvi a conversa ? Fiquei com medo.

Levantei-me e fingi que ia ao banheiro. Eu só queria era  ver a cara do indivíduo que ligara para o Joaquim.  Era feio, mal encarado e simulava estar dormindo, certamente para não se deixar trair pelo olhar. Não havia dúvida: tinha cara de traficante. Deveria ser o chefe do Joaquim, autoritário e bruto como só um traficante pode ser. Eu não tinha nada a ver com aquilo mas comecei a sentir pena do Tarquínio. Se a tremonha explodisse ele seria sacrificado. Talvez morresse ou, pior, ficasse aleijado para sempre. Teria família ? Muitos filhos ?  Ou seria ele um usuário da própria droga que produzia ? Acho que nunca mais vou viajar nesse ônibus.

Voltei para o meu lugar, carregado de angústia e medos.   Adormeci.        Só acordei mais tarde, com o barulho da explosão.

23 setembro 2011

A televisão é o ópio do povo

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 “A televisão é o ópio do povo”.  Não sei quando foi que Karl Marx disse isso, mas sei que foi há muito tempo porque a televisão nem havia sido inventada ainda. E ele estava certo porque a televisão, quero dizer, a religião,  está aí para provar isso. Pode ser que nem tudo o que  Marx disse tenha dado no seu tempo. Mas está dando certo hoje. A religião fortaleceu-se, expandiu-se e está dando  “filhotes”,  como acontece com as ações na bolsa de valores. Hoje, a Igreja Universal do Reino Divino  ganha mais dinheiro do que a matriz.  Em  outra coisa Marx também acertou, quando previu que o exacerbado consumismo do sistema capitalista levaria  a desordens sociais. E quem chama a atenção para isso, em nossos dias, é ninguém menos do que o sociólogo Zygmunt Bauman ao analisar os violentos  distúrbios ocorridos na outrora disciplinada cidade de Londres. Segundo noticiam os jornais, Bauman afirma  que  “as imagens de caos na capital britânica nada mais representam que uma revolta motivada pelo desejo de consumir, e não por qualquer preocupação maior com mudanças na ordem social”  “ Londres viu os distúrbios do consumidor  excluído e insatisfeito” Aí está.

E a crise mundial?  Enésima  edição, revista e melhorada. Os países desenvolvidos se declaram falidos e dizem que não vão mais pagar  ninguém. E os subdesenvolvidos que se arrumem. Os cientistas dão explicações para isso, cada uma mais engraçada do que a outra. Mas ninguém explicou melhor essa enrascada do que o Severino Mandacaru, que sentiu na sua modesta plantação de macaxeira as conseqüências da crise : que a sociedade, como um todo, começou a comer aquilo que ainda não havia sido produzido. Quando inventou  o  crédito bancário na forma que aí está, o capitalismo não se deu conta que de que aquilo não teria fim, e começou a distribuir bens em troca de papeis que constituíam apenas uma promessa de pagamento, devidamente acompanhada, é claro, de copiosos juros, isto é, dinheiro imaginário.  -  Hoje nem papel se usa mais, apenas telas de computador, cruz credo! - E assim, quando os americanos foram procurar o seu “fried chicken”,  os alemães suas batatas, os italianos sua polenta e os franceses seu gruyere, só encontraram papel. E explicações melosas em telas de computador.

Mas disso tudo,  quem falou sério, mostrando coragem e bom humor, e escancarando a verdade, foi o economista francês Jacques Attali quando declarou que  “nos Estados Unidos as moratórias do setor privado já começaram e que um calote da dívida pública americana só não ocorrerá graças à impressão de dólares”. O que significa mais papel.  E disse mais: “ O mestre dos Estados Unidos não é nem Keynes nem Schumpeter,  é Madoff e sua capacidade de construir dívidas”.

Madoff, se vocês se lembram, não faz muito tempo, foi o espertalhão que deu um golpe de 65 bilhões de dólares no mercado financeiro americano.  Adotando um sistema de venda de quotas de fundos em forma de pirâmide,  criado por um tal de Ponzi, um imigrante italiano que teve muito sucesso nisso até ir para a cadeia,  Madoff  arrecadou dinheiro no mundo inteiro, até a pirâmide ruir. Foi condenado a 150 anos de prisão como se o fato de cumprir a pena na sepultura pudesse restituir o dinheiro que roubou dos incautos.
“E la nave va” ...  como diria Felini.

Mas eu ia falar da televisão, e a rima me atrapalhou. Agora acabou o papel. Não faz mal, fico devendo. Como nas moratórias.

07 setembro 2011

O Colaminho

 .

Acordou cedo. Tinha coisas importantes a fazer, mas não tinha pressa. Deu uma volta pela cozinha, tomou café vagarosamente, pensativo, analisando os obstáculos que  encontraria  pela frente durante o dia que se afigurava  complicado.
Procurou o colaminho. Não o achou no lugar onde o havia deixado.                                Voltou-se para a mulher:

-  Você viu o meu colaminho?
-  Não.
-  Como, não? Ele não está onde o deixei.
-  Você nunca sabe onde deixa as coisas.
- Claro que sei onde deixo as coisas. Você é que mexe nelas e depois não as  coloca no lugar.
- Eu não mexo em nada do que é seu. Você sempre esquece onde as coloca e depois vem cobrar de  mim.
- Eu me lembro perfeitamente onde coloco coisas. E não aceito essas suas insinuações.
-  Que insinuações?
-  Você está insinuando que eu estou ficando  gagá. E não aceito isso.
- Eu não falei nada. Você está mesmo ficando maluco. Onde já se viu  amarrar uma caneta ao pé da mesa?
-  Você sabe perfeitamente por que eu amarrei a caneta. Não pára  caneta em lugar nenhum nesta casa. Uma vez encontrei oito canetas na tua bolsa.
-  Você anda remexendo na minha bolsa?
-  Eu só fui procurar uma caneta. Encontrei oito!
-  Não grite assim comigo! Você só sabe reclamar. Não sabe onde larga as coisas     e põe a culpa em mim!
- Agora quem está gritando é você! Assim não é possível, não agüento mais.  Eu tenho que fazer alguma coisa. Onde está o meu colaminho!? Você está arruinando a minha vida! Se você ao menos tivesse a sensibilidade de parar de  ciscar nessa cozinha e me ajudasse a procurá-lo. Onde está o meu colaminho?    Eu me mato pra fazer tudo direito, ainda  se fosse em meu benefício   mas não, não, é tudo pra você, pra família, tudo, tudo, eu já não durmo mais direito, não consigo me concentrar, as coisas desaparecem, não se acha nada, nada nesta casa, eu me esforço, não penso noutra coisa, você vai acabar com a minha vida!
Saiu,  batendo a porta com violência.

Separaram-se. E foram infelizes  para sempre.
Por causa de um colaminho.  Francamente!



25 agosto 2011

Delírio

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 Em sua anástase,  ressurgiu com alma nova. Mais puro, mais indulgente, mais humano. Antropomórfico, viu-se representado como um deus de oito braços abarcando um globo terrestre bífido que ele tentava manter unido. A seus pés, uma cártula indicava o seu destino. Sua dromofobia faria o resto. Temia ser considerado capto de mente e, antes que isso se confirmasse, mandar-se-ia para outros mundos. Novas terras, nova gente, novos ares. Novos sons, novos sabores, novos amores.

José Cândido Albino das Neves nunca se perdoou por ter nascido em Cabaceiras, aquele município perdido no semiárido  paraibano. Não porque a cor da sua pele, escancaradamente denunciada pelo seu nome, contrastasse com o tom chocolate do resto da população, conseqüência provável de algum holandês errante, perdido por aquelas bandas, mas porque não se conformava com o fato de que Cabaceiras, além da ridícula taxa de produtividade alcançada  no cultivo da macaxeira, ostentava o recorde de menor índice pluviométrico do país. O que, segundo ele, não era verdade. Aquele estigma o indignava, e atribuía o fato ao  erro cometido por um funcionário do IBGE, o qual, não acreditando no que via, inverteu os dígitos apresentados pelo pluviômetro no mesmo ano de sua instalação. A partir daí, conta a lenda, a engenhoca foi escalpelada pelos funcionários locais e o IBGE,  - oh! têmpora, oh! mores, - passou a repetir o mesmo resultado  ad perpetuam.

Cândido deixou sua terra natal em busca de um caldo cultural mais denso.
No Recife, passou noites sentado na balaustrada da Ponte  Buarque de Macedo dissecando  ossos imaginários de Augusto dos Anjos:  “Ah! Um urubu pousou na minha sorte! Também das diatmáceas da lagoa ...”
A biblioteca da Universidade Federal de Pernambuco foi o seu cadinho de relíquias bibliográficas. Escritores coevos não lhe interessavam. Só demiurgos, e demiurgos não se fazem mais em nossos dias. No colofão de um tratado de semiologia encontrou o caminho para outras obras que o cativariam  no estudo dessa ciência. Dedicou-se com afinco e tornou-se professor na matéria, notabilizando-se por afabular os eventos dos quais participava e encantar seus alunos com hipotiposes.
Sua heterotopia deu-lhe fama. Fama e tédio. Não suportando mais a monotonia em que se metera, ouvindo bolodórios daqueles piriricas o tempo todo, excogitou sair-se da enrascadela e demandar por novos ares. Deixaria os alunos com seu assistente, aquele samango lutulento e mendaz que não fazia outra coisa senão preparar pernadas para tomar-lhe o lugar. Pois agora o teria.

Zé Cândido sairia dali. Tornar-se-ia um paguro e usufruiria de todos os benefícios que a nova vida lhe proporcionaria. Esta parataxia  o libertaria dos grilhões que ele mesmo se impusera. A palingenesia faria o resto. Partiria em busca do amor. Do amor! Aleluia! Aleluia!
Procuraria o amor, onde quer que ele estivesse. Nos cabarés da Lapa, nos inferninhos do Leme, nas fraldas do Mangue do Rio de Janeiro, fosse onde fosse.
Vestiu seu melhor terno e escolheu a melhor gravata. Dirigiu-se ao aeroporto. Tomou  o primeiro  avião e partiu em busca do AMOR. E foi aí que o palíndromo de seu desejo entrou em ação. Invertendo o objeto dos seus sonhos, inverteu o seu destino.
 Desembarcou em ROMA. E foi pedir a benção ao Santo Padre.








17 agosto 2011

O deslizar das encostas

            Aprés Wanderlino Teixeira Leite Netto

Janeiro está chegando e com ele as chuvas. As chuvas de Janeiro. As que devastaram Friburgo e as que voltarão a devastá-la, se as autoridades continuarem fazendo o que fizeram até agora: nada.
É tempo, portanto, de alertar a população.  E vou  fazê-lo, aqui, publicando o poema premonitório  escrito, anos atrás, pelo grande poeta Wanderlino Teixeira Leite  Netto. 


CAUSA E EFEITO
                                                                             Wanderlino Teixeira Leite Netto

Por favor, não chegue a tanto:
não lhe atribua culpa pelo pranto!
Deixe em paz o santo
com suas flechas e suas chagas expostas.
Afinal, temos todas as respostas
pro deslizar das encostas,
causa de tanta morte, tanta desolação.
Lembra do tapinha nas costas
dado em tempo de eleição?

Devo esclarecer: Wanderlino publicou este poema em 1991, no livro ÌGBÀSÍLÈ, pela Editora Cromos, de Niterói, RJ

05 agosto 2011

Sua face no book

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Lembro-me de que  quando apareceram os primeiros telefones celulares  um cientista americano, em declarações prestadas à imprensa, disse o seguinte:
“Existem coisas que a tecnologia nos oferece, que são absolutamente inúteis e logo se tornam imprescindíveis. O celular que o diga.”

Longe de ser inutil, celular não só se tornou imprescindível como se tornou vital para todas as camadas da sociedade: do Primeiro Ministro ao engraxate da esquina; da Primeira Dama até a mariposa que faz ponto num bar da Av. São João.

Da mesma maneira, facebook começou como uma brincadeira de estudantes inteligentes para fazer fofoca entre os colegas e exercitar sua habilidade na tecnologia da computação,  superou os mestres e deixou-os desmoralizados. Cresceu e hoje é uma empresa avaliada em 50 bilhões de dólares. E tudo para que? Falar de abobrinhas!

Não é bem assim. Se examinarmos o conteúdo das páginas  do Facebook veremos que, em sua grande parte, são futilidades, fotografias de péssima qualidade e opiniões inexpressivas, que consomem um tempo enorme para serem destiladas até que se chegue à gota final do produto. Mas o Facebook não é só isso. A rede conseguiu mobilizar multidões em questão de horas e só isso justificaria os seus cinqüenta bilhões de dólares. Como quando o cidadão Oscar Morales reuniu 10 milhões de pessoas em cidades da Colômbia, em protesto contra as Farc, ou como nas mobilizações que tem ocorrido recentemente nos países árabes em protesto contra as ditaduras. 
E assim, entre abobrinhas, fofocas e mobilização de massas, vamos enriquecendo nossa cultura e aperfeiçoando a cidadania.

 “Você tem notícias do fulano?”
 “Não. Procura no Facebook, ele está lá”
“Você sabe que fim levou aquele chato da quarta série que vivia pedindo    livro emprestado a todo mundo?”
“Ele está no Facebook, ficou rico. Montou uma editora.

Num interessante artigo publicado no “O Globo” de 11/02/11, o colunista Marcio Ehrlich ensina que  “A vida em rede é um aprendizado”. Ele começa com uma pergunta: “Você já se estressou com alguém no Facebook? ... já teve vontade de deletar alguém ... não se culpe por isso.”  A partir daí, Ehrlich analisa o prazer e as frustrações que a rede social nos proporciona e conclui:
“Admita. Estamos na rede para nos divertir. Desestressar do trabalho e do relatório atrasado ... portanto, se alguém lhe encher muito o saco, você não precisa deletar o seu próprio perfil e desistir da rede. Remova o inconveniente da sua lista. Esta é a modernidade social.”

Quanto a mim, recuperei a alegria de estar no Facebook.
Primeiro porque posso meter o pau em quem quiser – coisa que nunca fiz - e o pior que pode acontecer é me deletarem da lista.
Segundo porque, apesar de não pagar nada pelo Facebook, também ajudei, ainda que modestamente, a engrossar a conta de 50 bi do Markinho Zuckerberg e espero que, um dia, ele me seja reconhecido isso.

Tchau, nos veremos no Face, e  não esqueça: o tempo que você gasta na rede engrossa a conta do Markinho, não a sua.

20 julho 2011

Lindo desenho! Quem foi que escaneou?

 

13 de Fevereiro, 2011 - pg. 6

          15 de Fevereiro, 2011 - pg.7

                                                            

 10 Fevereiro, 2011 - pg. 7                                         5 Fevereiro, 2011 pg. 4


Parado em frente a uma loja de calçados, eu contemplava um cartaz que mostrava uma menina sentada em um banco de jardim, balançando as pernas, para exibir o seu par de sapatos novos.
Era um desenho bem feito, a carvão, uma técnica muito usada pelos cartunistas de rua, e que hoje não se vê mais. Uma menina, deveria ter oito anos, acompanhada da mãe, aproxima-se e diz:
-- Olha, mamãe, que desenho bonito! Quem foi que escaneou?
Pois é. Hoje as crianças não desenham mais, escaneiam. Os nossos Chico, Cláudio Paiva, Bruno Drumond,  Lan,  Miguel Paiva, Henfil  e tantos outros – a lista é longa -  são monumentos a serem preservados e lembrados para que possamos dizer aos nossos netos:
-- Olha, meninada, antigamente tudo era feito a mão, a gente tinha que treinar muito para fazer um desenho bonito. E aí bastará mostrar algumas tirinhas dos cartunistas citados.  Depois mostraremos como será o futuro dos nossos potenciais desenhistas.  Abriremos as páginas  6 e 7 do “O Globo”. Lá, todo o mundo desenha.
 Artigos, colunas e crônicas estão sendo fartamente ilustrados com desenhos que não sei bem como classificar: psicodélicos, futuristas, naif ? Não, naif  é que não são. São uma curiosa combinação de riscos e rabiscos, manchas e borrões, enxertados com figurinhas geométricas pré-fabricadas do tipo triângulos, quadrados, círculos, elipses, espirais, além de letras, algarismos, reticências e ... pontos de exclamação !
Uma figura! Pouco entendo de desenho e artes plásticas e, menos ainda,  de computação. Mas é fácil concluir que esses desenhos são feitos com o "Paint", esse inteligente programinha de computador criado para ensinar as crianças a desenhar sem precisarem usar sua própria inteligência.

Vocês já viram os desenhos do Millôr Fernandes.  São de uma simplicidade encantadora. São expressivos e esteticamente primorosos. São inteligentes. Não sei se alguma vez o Millôr chegou a usar o Paint em seus desenhos. Mas, se o fez, certamente sabia usá-lo.
Contemplem, amigos, contemplem. E descubram: Quem foi que escaneou?