06 janeiro 2021

Eu não tenho desafetos


Nunca tive desafetos na minha vida. Lidei com pessoas de todas as classes sociais. Dos mais simples operários de fábrica aos diretores de empresas multinacionais. Trabalhei para Governadores e Ministros com os quais viajei mundo afora. De todos recebi carinho e consideração. Dos operários com quem lidei sempre encontrei dedicação. Eu visitava as fábricas com frequência, em horas inusitadas, no terceiro turno. Eu conversava  diretamente com o operador, junto da máquina. Eles se sentiam prestigiados e eu identificava eventuais gargalos no fluxo de produção,  máquinas paradas ou deficiência de pessoal.

Na minha família, entre tios, filhos, primos, cunhados, sobrinhos e netos, possivelmente haverá alguém que me ignora, mas jamais percebi qualquer tipo de hostilidade.Entre os vizinhos de casa, harmonia total, inclusive com o sindico do prédio.

Nada obstante, nesta vida tudo pode acontecer como, por exemplo, uma fruta fora do balaio. E esta foi o meu “Desafeto Oriental”.

Eu estava trabalhando na implantação do projeto Seridó, uma fábrica de tecidos de grande envergadura em Natal, Rio Grande do Norte, do qual participava a Shikibo Spinnig Company, renomada empresa japonesa. Por força do trabalho, eu viajava com frequência a Tokio e Osaka, enquanto técnicos japoneses vinham a Natal e Rio de Janeiro. Fiquei amigo de todos eles, não só pela seriedade com que eles encaravam o trabalho mas também porque me fascinava o seu modo de  vida, a sua obsessão pela limpeza, pela pontualidade, respeito à palavra empenhada, dedicação aos mais velhos e amor à natureza.

 Epa . . .  ! Eu disse que fiquei amigo de todos eles ?  Não foi bem assim. Um deles me detestava. Era um engenheiro alto e carrancudo, portanto fora dos padrões japoneses. A coisa era muito simples: ele não ia com a minha cara e eu não ia com a cara dele. Nunca nos falamos. Nas poucas ocasiões em que tivemos que discutir trabalho, o diálogo era feito através de um interlocutor.

Certa vez, eu estava na firma em Osaka e devia comparecer a um jantar de confraternização, daqueles que, no melhor estilo japonês, duravam mais de três horas. Os lugares estavam marcados com o nome de cada convidado. Ao me aproximar da mesa, olhei para o lado direito. Estava marcado com o nome do carrancudo.

“Estragou o meu jantar”, pensei logo. Sentei-me olhando fixamente para a frente. Procurei conversar com o vizinho da esquerda, mas minha conversa não cativou ninguém. E assim decorreu o jantar. No fim, quando tomávamos aquele chazinho de encerramento, o carrancudo me cutucou e disse, com seu inglês econômico:

 “ Mister Superafico, what would you like best in this moment?”

Senhor Spreafico, de que o senhor gostaria mais neste momento?”

 Fiquei petrificado. Não sabia o que responder. Não conseguia pensar em nada. A mesa inteira olhava em silêncio. O tempo passava.

 “Eu gostaria que a minha família estivesse aqui comigo agora.”

 Ele balançou a cabeça, deu um sorriso e foi embora. No dia seguinte procurou-me cedo. Trazia um monte de plantas e começamos a discutir aspectos novos do projeto. Parecíamos amigos de infância. A mente humana guarda muitos mistérios.

Mas agora eu posso dizer:     Eu não tenho desafetos.

7 comentários:

  1. Luigi! Com certeza nao. E qual era a do carrancudo?provavelmente gostaria de ser casual e popular como você. Adoro aprender com seu texto delicioso e cheio de experiência. Muito obrigada👏👏👏👏

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    1. Obrigado LARANJINHA. O que aconteceu naquele dia foi muito significativo para mim. Eu nunca podia imaginar uma pergunta daquelas e nao sei como a resposta me surgiu na cabeça. Só no hotel, naquela noite, refletindo sobre o assunto, percebi que o carrancudo queria avaliar o meu carater. E recebeu a resposta que o aquietou. Quem ama sua família a ponto de invocá-la numa hora daquelas, com um oceano no meio, só pode ter um bom carater. Como a frase me veio à cabeça na hora é um mistério que não consegui decifrar. Eu nao consguia pensar em nada. A mesa inteira, em silêncio, me fitava. Aprendi muito com os japoneses.

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  2. Vovô, que história boa! Poderia muito bem estar no livro Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas, de Dale Carnegie!

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  3. O outro sempre tem algo a colaborar conosco, e elas sempre tem um pouco que seja de nós, e nós um pouco delas. O importante nessa troca é a vontade da escuta ativa, ouvida além dos aparelhos auditivos.

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