O espetáculo das Cataratas de Sete Quedas,
visto do céu, era deslumbrante. Eu estava dentro de um DC3 que levava somente dez
passageiros. O avião fazia voos rasantes tão baixos que a água, borbulhando
ao despencar no abismo, respingava nas
janelas. Dividido entre o medo e o deslumbramento, eu mal conseguia respirar. É
impossível descrever aquelas cenas, como é impossível esquecê-las. E pensar que
as Sete Quedas foram varridas do mapa.
Era o ano de 1963. Eu
queimava a mufla no “Programa de
Reequipamento da Indústria Têxtil do
Nordeste” implantado pelo ministro Celso
Furtado na recém criada Sudene. Fui indicado para fazer um curso de “Técnico em
Desenvolvimento Econômico”, promovido pela Cepal - Comissão Econômica para a
América Latina, um organismo das Nações Unidas - e ministrado no Rio de
Janeiro. Terminado o curso, dez alunos foram selecionados para conhecerem o
estado do Paraná. O Governo do Estado queria divulgar o seu potencial econômico
para atrair investimentos e encontrara naqueles técnicos os veículos adequados. E assim visitamos
indústrias, cafezais, plantações de mate e, o mais importante, culturas de
algodão ainda incipientes e em fase de experimentação. Visitamos também jazidas
de xisto betuminoso de onde a Petrobras esperava , curiosamente, extrair
petróleo.
Os meus colegas de
curso vinham de diversos Estados e nem todos eram economistas. Havia
engenheiros, sociólogos e também um jornalista, a figura mais notável de todo o grupo. A ele devo a
minha reeducação na cidade do Rio de Janeiro de onde eu havia saído muitos anos
antes. Eduardo Antônio Alves era jornalista da Revista Visão, o semanário de
opinião lido por todos os executivos do
país. Eduardo era do Rio de Janeiro, um modelo de carioca: sempre alegre,
divertidíssimo, irreverente e brincalhão. Ele me dizia:
--
Galego,
o que é que você está fazendo lá no Pernambuco? Você está perdendo tempo lá.
Você tem que vir pra cá, rapaz. Você sabe comer de talher, sabe dar nó na
gravata, tem tudo o que precisa pra trabalhar aqui. Olha pra mim, eu tenho um
bom emprego, ganho bem. Eu trabalho com as duas armas mais poderosas que
existem: o medo e a vaidade. Vem pra cá!
A viagem fluía alegre e
descontraída, entrecortada por almoços de frango com polenta e vinho “dos
colonos”. O vinho não era lá grande coisa, mas eu também não era. Um dia
o Eduardo entrou no meu quarto, com ar sisudo:
-- Seu cabeça de bagre, vê se desgruda
dessa agenda e presta atenção no que
acontece em volta.
-- O que é ?
-- Você não viu que a Dalva não tira os olhos de
você? E você não faz nada?
Eu não havia notado. Dalva Regina era
uma das melhores alunas do curso. Formada em Economia, preocupava-se com as
desigualdades sociais e admirava o trabalho que vinha sendo feito pela
Sudene. Era filha de um almirante,
presidente de um grande estaleiro, um enorme estaleiro. Eu conversava de vez em
quando com ela como se fosse uma
extensão da aula, e sempre a respeito de assuntos relacionados com o
desenvolvimento econômico.
-- Você está maluco, Eduardo, não vi nada disso.
-- E você está cego! Deixa de ser bobo, rapaz. Casa com a Dalva!
Comecei a prestar atenção. De fato havia
qualquer coisa de significativo naqueles olhares. Era impossível permanecer
indiferente.
Avaliei bem a situação e os meus sentimentos,
e afastei qualquer possibilidade de envolvimento. Voltei ao meu frango com
polenta e ao vinho vagabundo. Eduardo voltou à carga:
-- E aí, pau de arara? Você acordou?
Confessei-lhe
que de fato havia notado os sinais de aproximação, mas que iria ficar longe.
-- Deixa de ser idiota! Casa com a Dalva, rapaz, você vai ganhar um
navio de presente de casamento!
A viagem chegou ao fim. No voo de
regresso o pequeno avião tornou-se imenso para os dez passageiros. Cada um
sentou-se em um banco, longe dos demais, em silêncio. Pareciam todos
enternecidos com o fim da viagem e com os laços que se haviam formado durante
aquele convívio. Sentei-me também
sozinho junto a uma janela, olhando as nuvens, pensativo. Dalva chegou e sentou-se ao meu lado.
--
Gostou da viagem? Pena que foi curta. O que é
que você vai fazer amanhã?
-- Nada especial.
Vou ficar dois ou três dias no Rio e voltar para Recife.
-- Posso lhe
mostrar um pouco do Rio antes de você viajar?
Você gostaria?
-- Gostaria!
-- Espero você
amanhã, lá em casa, às quatro da tarde.
Deu-me
o endereço e voltou ao seu lugar.
Fui
pontual. Quando cheguei Dalva me
esperava na varanda, sentada numa cadeira de balanço.
-- Você se incomoda se eu dirigir?
A
sua pergunta tinha motivos: estou falando de uma época em que as
mulheres mal começavam a dirigir
automóveis.
Saímos. Ela atravessou o centro, chegou
à Praça Saens Peña e tomou o caminho do Alto da Boa Vista. Ela sugeriu pararmos
no Bar dos Esquilos. Lembro-me bem, ela pediu um whisky sour. Eu acompanhei.
Continuamos a viagem com paradas na Vista Chinesa, na Mesa do Imperador, nas
pequenas trilhas que serpenteavam pela mata.
Conversamos muito. Subdesenvolvimento,
política externa, Cuba, Ligas Camponesas, imperialismo, dominação econômica,
algodão versus fibras sintéticas. Ela nada
perguntou sobre a minha vida pessoal.
Havia pausas, quando nos fitávamos
longamente, sem uma palavra.
Lá embaixo as luzes começaram a piscar,
delineando o perfil da cidade. Começamos a descer em direção à Barra da Tijuca.
-- Você ainda tem dinheiro?
Novamente é preciso explicar: Naquela
época nenhum cavalheiro permitiria que uma mulher pagasse uma conta. Eu me
havia preparado.
-- Então vamos jantar.
Ao chegarmos na baixada ela tomou a pequena ponte que leva ao
restaurante da Ilha dos Pescadores. Ali
ficamos, lendo o cardápio, sem pressa,
recordando a viagem, rindo bastante e...
suspirando.
Eu estava sorvendo um gole do Pinot
Grigio que ela mesma havia escolhido quando, por um reflexo no copo, percebi que alguém se
aproximava da nossa mesa:
-- Minha filha, você ...
- Papai!
-- ... está aqui, e eu preocupado ...
-- Mas eu avisei a mamãe que ia sair e para onde
ia. Ela não lhe falou?
-- Sim, sim, está
certo, está tudo bem, tudo bem ...
Assustado, levantei-me de sobressalto e
gaguejei:
-- Almirante, o senhor não quer sentar-se,
jantar conosco?
- Não, não, muito obrigado, meu filho, bom
apetite, boa noite, boa noite...
E, educadamente, se foi. Dalva não fez o
menor comentário. Continuou sorvendo seu vinho em pequenos goles, intercalados por um olhar matreiro,
como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Para mim, acostumado com as
normas severas que sempre pautaram o meu trabalho e a rígida disciplina imposta
no convívio familiar, aquilo era inusitado. Por um momento eu me senti como se
estivesse raptando a moça, mas logo me recuperei e, considerando-me já íntimo do Almirante,
continuamos a conversa com muita naturalidade. Eu sentia ternura na sua voz
e comecei a ficar abalado.
-- Não está tarde
para você voltar?
-- Quando é que você viaja?
-- Marquei para depois de amanhã.
-- Você não pode ficar mais alguns dias?
-- Não posso, tenho trabalho. Gostaria muito.
-- Você vai me escrever, não vai?
-- Vou, sim.
Nunca escrevi. Na pele do Severino
Mandacaru eu andava preocupado em melhorar as condições de trabalho nas
fábricas do nordeste, tarefa da qual a gloriosa revolução de 64 me liberaria, sem consultar-me. Indignado fui-me
embora.
O tempo passou. Eu acabava de voltar do
Chile e travava uma luta inglória para readaptar-me
à nova realidade do país. Caminhando, de
cabeça baixa, pela Rua do Ouvidor, ouço um grito vindo da outra calçada:
-- Spreafico!
Era o Eduardo, de braços escancarados,
pronto para me abraçar.
-- Que fim você levou, seu nordestino
falsificado, onde é que você anda, quanto tempo!
-- Ah!, estive no Chile, passei lá um tempão, casei,
tenho dois filhos. E você, o que está fazendo?
-- Eu tenho uma editora. Também casei. .. Adivinha com quem?
- ?????
-- Com a Dalva!
Você não quis ... !
E soltou uma
gargalhada.
Nota: Todos os nomes são fictícios