Embarco num autocarro intercidades que
me levará de Lisboa até Cerdeira de Côa, no Sabugal, centro do pais. Viajo com
um propósito: entrevistar Saramago, que
vai proferir uma conferência na
“Associação de Municípios da Cova da Beira”.
Eu
queria discutir “A Junta
do Motor”, crônica que ele escrevera em em 2009, e que me havia tocado profundamente.
Nela Saramago conta como, aos dezanove anos, trabalhava como serralheiro-mecânico
numa oficina de automóveis:
-
“Conhecia bem, naqueles remotos tempos, o funcionamento de tão generosas
máquinas de trabalho e de passeio...
limpava carburadores, afinava válvulas, instalava calços e travões... , enfim,
sob a precária proteção do meu fato-macaco azul que me defendia o melhor que
podia das nódoas de óleo efectuei com razoável eficiência quase todas as
operações por que é obrigado a passar um automóvel”
Sendo
eu também mecânico, queria entender como é que ele, partindo de uma simples
serralheria, havia chegado ao prêmio Nobel de literatura. Fiz-lhe perguntas que
ele, pacientemente, escutou. Olhando-me intrigado, sem desconfiar, creio eu,
das minhas aspirações, começou a falar, com ar complacente:
- “Não
me leve tão a sério, meu jovem. Aquilo
foi um desabafo de momento, um arroubo que me levou a contar como, naquela
tenra idade, fui parar dentro de uma oficina mecânica. São lembranças de um tempo que há muito se foi. E são verdades. E por verdades que são, ninguém as acredita. Conte uma mentira e todos te crerão. Porque vivemos hoje
num mundo de cegos. Cegos que se enxergam mas não se veem. Cegos que se
apalpam mas não se sentem. Cegos que correm mas não se encontram, não saem do
lugar. Algum dia ainda vou escrever sobre
isto, você vai ver.”
Eu o
contemplava embevecido, sem saber o que dizer. Tentei manifestar-lhe o quanto
havia gostado da sua palestra na véspera. Sem dar-me tempo de terminar,
Saramago me interrompe e continua seu
raciocínio:
-
“Decididamente este é um mundo de cegos. Veja esta cidadezinha. Um lugar tão
pequeno e harmônico e, no entanto, cheio de ciúmes e rivalidades que acabam
por minar-lhe a paz e o convívio social. Acabo de saber que
o Senhor Antonio Ruas está indignado por
ver o que se passa na sua região. Segundo li, ele preside a
AMBC – Associação dos Municípios da Cova da Beira - e é,
também, editor da Capéia Arraiana, a
qual, segundo suas palavras: “procura defender os interesses da Região que vai
do Sabugal e do Distrito da Guarda, movido à paixão pela Raia, pelas terras do
Forcão, pelas Serras da Estrela, da Malcata e das Mesas, pelo Rio Côa e pelo
povo valoroso que luta pelo futuro de uma região que alguns querem condenar ao
fracasso”.
Saramago guardou silêncio por algum tempo.
Depois continuou:
-“Veja
bem: - um povo valoroso, uma luta pelo
futuro, e alguns que querem condenar tudo ao fracasso. É demais! Tão pouca
gente e tanta briga. São problemas paroquiais, nada posso fazer.”
Suspirou,
como quem retoma o fôlego. Depois olhou-me com ar esperançoso e continuou:
-“Mas
nem tudo está perdido, meu rapaz.
Descobri que aqui mesmo, em Cerdeira de Côa, são produzidos os melhores
caracóis de Portugal. Já veem limpos e cozidos”. Hesitou por um momento. Deu meia volta e apanhou um papel que me
entregou dizendo:
-“Faça bom proveito, meu rapaz” – e antes que
eu tivesse tempo de olhar o papel desapareceu da sala.
Meti o
papel no bolso e caminhei cabisbaixo até
o meu albergue. Pensativo, desabei, sobre uma poltrona. Abri o papel e
encontrei esta
Caracoleta
Deliciosa
Você
vai precisar de: manteiga, alho, cebola, salsa, caldo de galinha, molho de soja
e, obviamente, caracóis. ( Os da Cerdeira
de Côa, fornecidos pela Caracol Real, são os melhores). Basta refogar o alho e
a cebola na manteiga, acrescentar os demais ingredientes e, por fim os
caracóis.
Como te
invejo, Saramago, como te invejo!
Fato macaco é o macacão de brim que se usa nas oficinas mecânicas?
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