1. O
sabor oculto do vinho
2. O
sabor oculto da literatura
A
cozinha molecular tem-nos revelado o que acontece dentro das panelas quando
cozinhamos o nosso angu. O que se espera disso é que, sabendo o que ocorre com os alimentos
sob a ação do calor, possamos aprimorar o sabor, melhorar a textura, despertar
os aromas e iluminar a imagem visual daquilo que comemos. Este resultado tem
sido logrado, sem dúvida, se julgarmos
pelo sucesso dos chefs nucleares em cujos restaurantes é preciso esperar meses para reservar uma
mesa.
Os
pesquisadores da cozinha molecular, em geral pós graduados em biologia ou
química, tem dito aos cozinheiros que “não entendem como estes conseguem produzir coisas gostosas
sem conhecer as leis que regem a transformação dos alimentos”.
(Isto
me faz lembrar uma frase que li há meio século, escrita numa placa exposta aos
engenheiros de uma fábrica de aviões: “De acordo com as leis da aerodinâmica um
besouro não pode voar. Mas o besouro voa porque não conhece as leis da
aerodinâmica.)
Pelo
menos isto é o que deduzo da leitura do magnífico livro de Hervè This,
físico-químico do Laboratório de Química das Interações Moleculares do “College
de France”, em Paris, sobre gastronomia molecular. O livro, Casseroles&reprouvettes,
já tem dez anos de publicado e nunca foi
tão útil como agora.
Na
edição italiana do livro, “Pentole & provette”, a tradutora Alba Pezone explica que “sendo a cozinha uma
espécie de química e física aplicadas, ensinar aos cozinheiros um pouco de
física e química pode ajudá-los a compreender melhor o que fazem, a cozinhar
melhor a cada dia e incentivá-los a inventar novos pratos”. Animado por esta
explicação corri imediatamente para o penúltimo capitulo do livro: “O sabor
oculto do vinho” onde, imaginei, poderia desvendar os mistérios da construção
desse milagre que é a conjunção homem / natureza: o vinho.
Mas,
antes de chegar lá, fiz outra descoberta, igualmente fascinante: O sabor oculto da literatura. Desvendar os
mistérios de um trecho literário, seja ele um ensaio austero ou apenas uma
lorota bem contada pode ser, também, uma experiência sensorial gratificante.
O
livro de This é perfeito pois nos proporciona ambas as coisas, alternando
explanações teóricas complexas com ensinamentos de ordem prática para o dia a
dia. De início ele adverte: “ A cozinha deve corrigir sua linguagem se quiser
realmente progredir”.
E
ao corrigirmos a linguagem chegaremos a verdadeiras peças literárias, como
aquela que nos ensina a preparar um autêntico caldo de carne. Ao longo de duas
extensas páginas ele explica o que
acontece na panela quando
preparamos o caldo. Analisa, à exaustão, o comportamento das partículas sólidas
na corrente de convecção, as quais poluem o caldo, que deveria apresentar-se
transparente. Mostra que é possível provocar a precipitação dessas partículas,
o que proporcionaria a sua decantação. Na sua pesquisa, observando o movimento
das partículas, compara o tamanho, o
peso e a velocidade com que se deslocam e conclui que, embora as partículas
maiores permaneçam no fundo da panela as menores continuam navegando pelo
líquido poluindo, assim, o caldo “como o cordeiro, poluidor inocente, poluía a
água do riacho onde o lobo bebia, na fábula
do caro La Fontaine”.
Passei,
avidamente, para as páginas seguintes. Elas explicam como se faz para cozinhar
o ovo perfeito, aquele que chamamos vulgarmente de “ovo duro”. Nele a gema deve estar centralizada, isto é,
a clara deve circundar com uniformidade a gema.
Depois
de ressaltar a importância da centralização da gema no ovo cozido o livro
descreve as experiências feitas, todas embasadas nas leis da física. Nas
palavras do autor: “Então, como obter uma gema bem centralizada? A solução é
deduzida das experiências realizadas: é preciso evitar que, no interior da
casca, a gema se desloque. Como? Eliminando a posição vertical do ovo que é a
causa da flutuação da gema. Na prática, manipulando o ovo de tal forma que a
gema permaneça no centro. Vamos cozinhar o ovo na água fervendo, fazendo-o
rodar na panela. Depois de cerca dez minutos de cozimento podemos descascá-lo.
A gema estará no centro.”
A
pesquisa mostra ainda que a consistência ideal do ovo cozido é obtida quando se
completa a coagulação da gema e da clara. Que a temperatura de coagulação da gema
é de 68 graus centígrados enquanto que a
da clara é de 62. Portanto, no cozimento não se deveria superar essas
temperaturas, ainda que se possa usar uma temperatura uniforme de 64 graus.
“Então, por que não usar os recursos técnicos
que temos à disposição? A coagulação completa, a essa temperatura, levaria
aproximadamente uma hora, o que poderia ser facilmente controlado por um relógio.
Um termostato nos permitiria cozinhar o ovo a uma temperatura mais próxima da
temperatura de coagulação. Certamente o cozimento levaria muito mais tempo mas
não seria esse o preço que teríamos que pagar para ter um ovo duro perfeito?”,
conclui This.
E
os nhoques? As receitas dizem que, durante o cozimento, os que voltam à
superfície estão cozidos. “Mas esta não
é uma indicação segura” – explica o livro. “O cozimento do nhoque depende da
sua temperatura interna e esta varia com o tamanho do mesmo. E, mais grave, a
temperatura interna dos nhoques maiores é, muitas vezes, inferior à
temperatura de coesão do amido da farinha de trigo. (quando as moléculas
da agua se combinam com as moléculas do amido) Portanto seria necessário levar
o cozimento além do ponto de flutuação”.
Para
resolver isto a proposta de This é simples: “Caso se deseje uma precisão digna
dos grandes cozinheiros deve-se elaborar uma tabela que indique o tempo de
cozimento em função do tamanho dos nhoques.”
E
o vinho? Deixei “O sabor oculto do vinho” para o final por ser esta a parte
mais nobre de nossas lucubrações. Nunca
duvidei de sommeliers que conseguem reconhecer os aromas e sabores mais
diversos nos vinhos que provam, identificando origem, castas e safras. Há
pessoas que nascem com dons que transcendem à nossa compreensão. Assisti a uma
partida de xadrez realizada na Plaza de Armas, em Santiago do Chile. Era uma simultânea com 42
jogadores, distribuídos em volta da praça. O mestre observava o tabuleiro,
fazia seu lance e prosseguia, praticamente à velocidade de quem caminha. Muitas
vezes olhava o tabuleiro e passava ao seguinte sem mover suas peças pois
percebia que o contendor ainda não havia feito o seu lance. A comparação é
tosca, bem sei mas não pude deixar de relacionar ambas as experiências. Em que pese a diferença dos
sentidos estamos diante de atributos de igual grandeza.
Em
“O sabor oculto do vinho” , Hervè This explica, em linguagem técnica e bem
elaborada, como os compostos voláteis aromáticos contribuem para a percepção
olfativa. Com esta linguagem, certamente acessível a um enólog, descreve as
pesquisas que estão sendo feitas para desencantar os aromas escondidos no
vinho:
“A
última etapa da hidrólise dos glucosídeos devida aos glucopiranosídeos é aquela
que limita a liberação dos torpenois da uva e do vinho porque as enzimas
naturais agem muito pouco sobre os monoglucosídeos que têm, como parte não
glucosídea ( chamada aglicone) alguns álcoois terciários ( linalol e terpineol).
O betaglucosídeo das leveduras enológicas revela, no entanto, uma fraca
atividade para o linalil beta-glucosídeo, um dos principais glucosídeos da uva.
Além do mais, se a uva for dotada de
... ... ... ”
Certamente
haverá imperfeições na tradução do trecho acima. Mas, francamente, você acha
que vai fazer alguma diferença?
Por
fim será interessante ressaltar a discussão que trata da capacidade dos degustadores e a
possibilidade de criar meios artificiais de detecção de aromas. Em “O
teleolfato”, último capítulo do livro, This pergunta: “Quando alcançaremos esta
nova forma de comunicação? Se fomos capazes de reproduzir imagens e sons, se
conseguimos registrar as sensações tácteis, estamos em falta com o sabor e o
olfato, para tristeza dos gourmets.” Em
seguida explica o avanço das pesquisas que estão em curso para a criação de um
nariz artificial: Um aparelho analisador criado no laboratório INRA, de Theix,
França, foi capaz de identificar, pelo cheiro, a origem de uma ostra
proveniente da costa francesa.
A
gastronomia é fascinante, não é? A literatura também. E se você chegou até aqui,
incauto leitor, saiba que conta com a minha compaixão. Agora relaxe, encha o
copo e ... Saúde!