No dia 16 de Setembro,
dois anos atrás, escrevi “Madrugada
insólita”, uma patética descrição das batalhas internas que travamos a cada dia
na esperança de contornar os tortuosos caminhos que nos levam à senilidade.
Naquela elocução eu concluía que devemos ignorar o prazo de validade que nos é
atribuído quando nascemos e que o melhor
é continuar cumprindo as tarefas quotidianas no limite da nossa capacidade.
Dois anos se seguiram com alguns sustos e muitas emoções.
Desta vez foi diferente.
Eu me encontrava fora de casa, do outro lado do Atlântico, percorrendo os
campos de trigo e girassol que dividem com a uva verdicchio as colinas
agrícolas da região de Le Marche na costa italiana do Mar Adriático. Passei
dias percorrendo as zonas rurais para observar o que fazem os camponeses nas
suas cozinhas. “Ainda é tempo de
aprender alguma coisa”, pensei. A capacidade que tem a gente do campo para improvisar e produzir coisas saborosas a
partir de ingredientes simples, sem receitas
e implementos modernos, sempre me impressionou. Desprovidos de sofisticação e
formalidade, seus jantares são sempre encontros festivos, alegres e divertidos.
Uma noite, depois de
exaustivas e hilariantes discussões sobre a melhor forma de ralar o parmesão e
determinar o ponto certo com que se deve grelhar a “Bistecca alla Fiorentina”,
custei a adormecer. Em parte pelo cansaço e em parte porque descobri que havia
vencido mais uma batalha mas não me havia preparado para os combates que
viriam. Os dias passavam e eu começava a
sentir a nostalgia da partida. A viagem de volta foi cansativa, espremido
naquelas gaiolas em que foram convertidas as outrora confortáveis poltronas da
classe econômica, hoje o melhor exemplo da degradação humana.
Já em casa, deitado na
cama em pleno dia para refazer-me da ausência de sono durante as doze horas que
durou aquele voo anestesiado por filmes
idiotas, voltaram-me as reminiscências da infância. Revi o lago onde nasci suas delicadas ondas acariciando os barcos e
as amuradas das casas. As montanhas escarpadas que o circundam, com seus castelos e igrejas de altas torres e
sinos enormes ecoando pelos vales. Subindo a colina vi o riacho que movia os
moinhos, um após o outro, suas rodas d’água murmurando uma ladainha melancólica
como que se despedindo da vida. No topo do monte duas vaquinhas – apenas duas,
porque tudo ali é pequenino – badalavam seus chocalhos e me olhavam nos olhos
para me avisar que logo a neve chegaria e elas teriam de ser levadas para o
estábulo. Uma construção de linhas harmoniosas, levantada em pedras esculpidas,
formando arcos que se sustentam sem o apoio de colunas, fruto de uma
arquitetura espontânea de fazer inveja aos ingegnieri de hoje. Lembrei-me do
pátio onde meu tio ferrava os cavalos, de minha mãe sentada na cozinha debulhando as ervilhas e eu deitado num banco
de madeira, barriga pra cima, contemplando o teto em grandes arcos formando uma
abóboda que, aos olhos daquela idade, parecia uma enorme catedral. E o cheiro
da polenta que saia do caldeirão de
cobre pendurado na lareira acesa
atenuava meus impulsos para sair e
brincar na neve e mitigava meu estômago faminto.
Parei meu pensamento e
sufoquei as lembranças. Olhei para mim mesmo. Eram emoções muito fortes para o
meu combalido espírito. Eu me debatia
entre um passado bem vivido e um futuro incerto. Senti que a vida se esvaia.
Essa paixão nostálgica me acabrunhava. O sentimentalismo não me conduziria a
nada. Precisava reagir. Decidido a enfrentar com energia o porvir incerto pulei
da cama, ergui a cabeça com altivez, empinei o nariz e fui consertar a descarga
do banheiro que se havia desmantelado na véspera da viagem.
Para quê encarar o mundo de frente se a poesia está no verso? ( frase do livro Desaforiamos de Georges Najjar Jr )
ResponderExcluirdesmantelado e' uma palavra que em si mesma traduz uma situacao. deveria ser colocada no dicionario como onomatopeia.
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