04 outubro 2012

Uma jornada insólita


No dia 16 de Setembro, dois anos atrás, escrevi  “Madrugada insólita”, uma patética descrição das batalhas internas que travamos a cada dia na esperança de contornar os tortuosos caminhos que nos levam à senilidade. Naquela elocução eu concluía que devemos ignorar o prazo de validade que nos é atribuído quando nascemos e  que o melhor é continuar cumprindo as tarefas quotidianas no limite da nossa capacidade. Dois anos se seguiram com alguns sustos e muitas emoções.

Desta vez foi diferente. Eu me encontrava fora de casa, do outro lado do Atlântico, percorrendo os campos de trigo e girassol que dividem com a uva verdicchio as colinas agrícolas da região de Le Marche na costa italiana do Mar Adriático. Passei dias percorrendo as zonas rurais para observar o que fazem os camponeses nas suas cozinhas.  “Ainda é tempo de aprender alguma coisa”, pensei. A capacidade que tem a gente do campo para  improvisar e produzir coisas saborosas a partir de  ingredientes simples, sem receitas e implementos modernos, sempre me impressionou. Desprovidos de sofisticação e formalidade, seus jantares são sempre encontros festivos, alegres e divertidos.

Uma noite, depois de exaustivas e hilariantes discussões sobre a melhor forma de ralar o parmesão e determinar o ponto certo com que se deve grelhar a “Bistecca alla Fiorentina”, custei a adormecer. Em parte pelo cansaço e em parte porque descobri que havia vencido mais uma batalha mas não me havia preparado para os combates que viriam. Os dias  passavam e eu começava a sentir a nostalgia da partida. A viagem de volta foi cansativa, espremido naquelas gaiolas em que foram convertidas as outrora confortáveis poltronas da classe econômica, hoje o melhor exemplo da degradação humana.

Já em casa, deitado na cama em pleno dia para refazer-me da ausência de sono durante as doze horas que durou aquele voo  anestesiado por filmes idiotas, voltaram-me as reminiscências da infância. Revi o lago onde nasci  suas delicadas ondas acariciando os barcos e as amuradas das casas. As montanhas escarpadas que o circundam,  com seus castelos e igrejas de altas torres e sinos enormes ecoando pelos vales. Subindo a colina vi o riacho que movia os moinhos, um após o outro, suas rodas d’água murmurando uma ladainha melancólica como que se despedindo da vida. No topo do monte duas vaquinhas – apenas duas, porque tudo ali é pequenino – badalavam seus chocalhos e me olhavam nos olhos para me avisar que logo a neve chegaria e elas teriam de ser levadas para o estábulo. Uma construção de linhas harmoniosas, levantada em pedras esculpidas, formando arcos que se sustentam sem o apoio de colunas, fruto de uma arquitetura espontânea de fazer inveja aos ingegnieri de hoje. Lembrei-me do pátio onde meu tio ferrava os cavalos, de minha mãe sentada na cozinha  debulhando as ervilhas e eu deitado num banco de madeira, barriga pra cima, contemplando o teto em grandes arcos formando uma abóboda que, aos olhos daquela idade, parecia uma enorme catedral. E o cheiro da polenta que saia  do caldeirão de cobre pendurado na lareira  acesa atenuava  meus impulsos para sair e brincar na neve e mitigava meu estômago faminto.


Parei meu pensamento e sufoquei as lembranças. Olhei para mim mesmo. Eram emoções muito fortes para o meu combalido espírito. Eu me  debatia entre um passado bem vivido e um futuro incerto. Senti que a vida se esvaia. Essa paixão nostálgica me acabrunhava. O sentimentalismo não me conduziria a nada. Precisava reagir. Decidido a enfrentar com energia o porvir incerto pulei da cama, ergui a cabeça com altivez, empinei o nariz e fui consertar a descarga do banheiro que se havia desmantelado na véspera da viagem.


2 comentários:

  1. Para quê encarar o mundo de frente se a poesia está no verso? ( frase do livro Desaforiamos de Georges Najjar Jr )

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  2. desmantelado e' uma palavra que em si mesma traduz uma situacao. deveria ser colocada no dicionario como onomatopeia.

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