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Quando me deu na telha escrever memórias, pensei que poderia usar a expressão “literatura naif” para justificar os meus erros de português. Erros elementares, banais, que continuam comigo até hoje. Nem sequer lhes sei os nomes. Mas, ou eu escrevia, ou estudava gramática. Então pensei: se um pintor naif, que nunca aprendeu perspectiva geométrica, projeção, épura, poliedros e coisas assim, é contemplado em museus e galerias, por que alguém que rabisca escorregando na sintaxe, nas vírgulas e na ortografia não pode ser lido? O que ele precisaria, obviamente, era ter algo de interessante e bonito para contar. Isto a vida me tinha dado (desculpem o metinha), não precisava inventar nada, bastava contar a verdade.
Naquela época descobri um blog que se chamava “Blog do Escritor” , um blog sério, de gente competente, pois entrevistava grandes escritores. Como ele oferecia um espaço para comentários perguntei se a expressão “literatura naif” era usada e em que circunstancias. A resposta foi curta, grossa, clara, precisa e contundente: “Toda a literatura é naif”. Nem mais uma palavra.
Fui, então, aos sites de busca cuidando para não cair nas trampas de costume. Encontrei coisas interessantes como, por exemplo, “Cervantes e a Literatura Naif”, título de um ensaio sobre Don Quixote, publicado na Espanha. Como também um blog em Portugal de uma professora de línguas que se corresponde com escritores de outros países - vamos chamá-los “primitivistas”. Parei de pesquisar porque, como aconteceu com a gramática, ou pesquisava, ou escrevia.
Voltei às minhas lembranças e comecei a avaliar o que havia aprendido em matéria de arte naif. No meu tempo de Severino conheci dois pintores primitivistas que tiveram alguma projeção: Gina, em Olinda e Chico da Silva em Fortaleza. Ambos estavam no auge da fama dentro do seu mundo. Gina expunha nas melhores galerias do Recife (vá lá, não eram muitas) e Chico acabava de voltar de uma exposição em Paris encerrada com muitos aplausos e todos os quadros vendidos. Nessa ocasião Chico da Silva foi consagrado por Andrè Malreaux, que o colocou entre os dez melhores primitivistas do mundo. Ambos caíram em desgraça junto aos “marchand”, vale dizer, junto ao mercado de arte: Gina por não cumprir os compromissos nas exposições que programava - eu mesmo participei de um desses fiascos quando, com grande dificuldade, em plena ditadura e com a ajuda de alguns amigos - arranjei-lhe um salão para que expusesse em São Paulo e ela não compareceu; o Chico, por ter permitido que uma sobrinha imitasse a sua pintura inundando as calçadas de Fortaleza de quadros a dois tostões. Com Chico no auge da fama os turistas deslumbrados se abarrotavam de galos e dragões habilmente impingidos pelos camelôs cearenses, indubitavelmente os melhores do mundo (os camelôs, não os galos).
Chico bebia muito. Misturava cerveja com uisque Old Eight, mistura que, descobri mais tarde, era, pelo menos para ele, alucinógena.
Passei algumas noitadas bebendo com ele num botequim vizinho ao casebre, pouco mais que um mocambo, onde ele morava. Falava sem parar. Ouvi-lo era um deslumbramento. Ele descrevia os animais fantasmagóricos que a sua imaginação criava com o mesmo furor com que os pintava. Ouvi-lo falar sobre a ditadura era como ler o Samba do Crioulo Doido, do Stanislaw Ponte Preta, só que dez vezes melhor.
Foi naquela época que escrevi “A Centenária” , que era apenas um conto e não uma memória. Mas que se tornou memória porque, inspirado numa noite que passei na cadeia, ficou soterrado durante quarenta e dois anos. Desenterrei-o por achar que seria ele que me consagraria como escritor naif.
Bem, amanhã começo a estudar gramática. Essa história de escritor naif não vai colar.