- Oh, Maria! Lavar a cona!
Seu Jorge dirigia-se à própria mãe, estendida num leito, inválida.
Eu tinha oito anos. Seu Jorge era meu vizinho. Era português como a maioria dos meus vizinhos na Vila Maria. Além da mãe, moravam com seu Jorge uns 40 cachorros que ficavam presos na sala. Eu nunca soube o que eles faziam lá. Para mim eram apenas moradores.
O seu Jorge havia me pedido para ir uma vez por dia à sua casa e ver se a velha sua mãe precisava de alguma coisa. Ele passava o dia no trabalho. Saía de manhã cedo, como todo o mundo na Vila Maria, e só voltava à noite. As necessidades da velha eram poucas. Lavar a cona, alertada ou não pelo filho, era uma tarefa muito pessoal. A mim, vez por outra, pedia para ir comprar alguns biscoitos, ou pão, ou mortadela. Queijo, pouco. Era o seu almoço.
Esse era o meu trabalho. Eu não sei quem limpava a bosta dos cachorros. Só me lembro que a casa era um fedor só.
Um dia a velha, sentando-se na cama com muito esforço, tirou de um móvel junto à cabeceira, que na época se chamava “criado mudo”, uma garrafinha. Acariciando-a, colocou-a nas minhas mãos e apertando fortemente tudo, garrafa e mãos, disse-me, suplicante:
-Oh, Luis, meu p’quenino. Tu que és tão bom, não me conseguirias um pouco de pinga? Sei que é difícil mas tua alma pura há de conseguir esta graça. Bastam duzentos réis mas eu não os tenho. Anda a ver se consegues um fiado lá no armazém. Me farás isto?
Diz-me q’sim!.
Aos oito anos eu pertencia à Cruzada Infantil, ligada a São Tarcísio não sei bem com que amarras, na Igreja da Vila Maria. Semanas antes o padre havia reunido a Cruzada Infantil, distribuído um cartão cheio de quadradinhos e despachado os cruzados para angariar fundos destinados a não-sei-o-que. Abordaríamos as pessoas na rua e pediríamos a esmola. Com uma agulha, parte inseparável do cartão, perfuraríamos tantos quadrados quantos tostões tivéssemos recebido.
Eu havia arrecadado meio cartão e estava com as moedas no bolso. Não hesitei um só minuto. Corri para o armazém e mandei encher a garrafinha. Entreguei-a, orgulhoso para a velha. Seu olhar de gratidão me dá calafrios até hoje. Cometi um crime? Sim.
Roubei um padre para dar a extrema unção a uma velha.
O olhar de D. Maria expressou a alegria da caridade recebida!
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