10 julho 2006

DE GENTE E DE BICHOS

“Me dá dez tostão de pingaEngoliu o líquido num trago. Deu uma cuspidela oblíqua que acertou em cheio no dorso do cachorro cujo pelo abundante escondia o corpo esquelético.

 O cão marchou até a porta carregando o estigma do seu amor pelo dono. O amor incondicional. O amor que não discute. O amor que não faz perguntas. O amor insensato. “Falta ainda meia hora”, pensou.
“Me dá uma salsicha”Mordeu a extremidade umbilical da salsicha e cuspiu-a sem alvo visado.
 Ricocheteando por entre sacos de cereais o apêndice foi alojar-se sobre uma pilha de tamancos de madeira que, pela poeira que a protegia, devia estar completando o quinto ano naquele nobre estabelecimento.
Com dois botes fez desaparecer o resto da salsicha na boca enorme.
“Bota um traçado”

A cusparada partiu veloz pelo canto esquerdo da boca. Não encontrando o amortecedor peludo do cão acabou formando uma rosácea no chão de cimento, espécie de marco geográfico a ser conquistado pelos fregueses que, ao entrarem, primeiro hesitavam para depois galgá-lo com ar triunfal e uma indisfarçável expressão de dever cumprido.

“Bota outro” O cão voltou de cabeça baixa, cheirando o chão. Contemplou o dono.
”Talvez falte mais de meia hora, repensou”.
Olhou o balcão. Percebeu o copo quase cheio. Avaliou a tonalidade do nariz. “Uma hora, pelo menos”, concluiu por fim.
Encolheu-se a uma distância prudente das cusparadas.

“Enche o copo!” Fungou. Tentou coçar as costas, perdeu o equilíbrio mas conseguiu apoiar-se nos sacos de feijão. Reconquistou a distância perdida, agarrou o copo com as duas mãos e bebeu tudo num trago só. Escancarou a boca engolindo uma golfada de ar. Havia alcançado o estado de graça.

“Ahhhhh!” Cuspiu o resultado da oxidação. Cambaleou, procurou apoio na estante do macarrão a varejo e afundou o braço no alfabeto para sopa. Letras se espalharam no chão formando criptogramas para a posteridade. O cão saiu do seu esconderijo lambendo os beiços. Contemplou o dono com olhar compassivo. “Está na hora de levá-lo”, pensou.

 Foi até a porta como quem verifica se o caminho está livre. Voltou e começou a roçar delicadamente nas pernas do patrão. Depois de alguns movimentos recebeu um ponta-pé que o autorizou a cessar os sinais de advertência e tomar o caminho de casa.
Acompanhou o dono até a saída. Na porta o cão olhou ainda uma vez para dentro do armazém. Viu que, atrás do balcão, um bigode se contorcia em exclamações:
“É um nulo! È um nulo, que se há de fazer!”
E, abaixando a cabeça, envergonhado, correu para alcançar o dono que não ia longe.

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