Nota: Publicado sem revisão ortográfica
E aqui estamos, instalados neste imenso
castelo, com todas as comodidades que a vida principesca pode proporcionar.
Acordei
cedo, hoje. Sentei-me numa cadeira do jardim e fiquei observando as gotas de
orvalho depositadas sobre as folhas de um pé de fícus, bem próximas do meu nariz, que
resistiam ao tênue sol de inverno. Algumas joaninhas se equilibravam entre as
gotas, já que não podiam vencer a tensão da capilaridade do líquido. Dois
colibris apareceram apressados, rufando as asas, sugando o néctar das flores
ainda úmidas, e sumiram na imensidão do céu.
E
fiquei pensando no que ainda poderia acontecer, naquele dia, que pudesse perturbar tamanha
quietude. Nada !
Nada,
a não ser o castigo imposto pela virulência dessa endemoniada Pandemonia sem
acento que nos mantém aprisionados no mais severo confinamento, enfrentando com
uma contraditória alegria e suprema felicidade estes dias tresloucados a que
fomos condenados.
Para
mim não foi difícil adaptar-me à reclusão monástica que a quarentena nos impôs.
Depois
de fazer uma prudente reserva de vinho, aquele que os frades usam em suas
celebrações, mergulhei com avidez no meu quotidiano menu de feijão com arroz, frutas,
legumes, ovos e sementes oleaginosas. Para não falar da macaxeira e do pão
integral que eu mesmo faço.
Não
faltará como ocupar-me durante o dia. Basta olhar à minha volta. Na rua, no
restaurante, nos ônibus e metrô, na sua própria casa. O que vejo ? Um monte de gente ciscando
freneticamente com um dedo sobre uma placa de vidro, produzindo letras, imagens
e sons: O Celular !
É
isso mesmo. O celular, essa maquininha mágica que tantos serviços inestimáveis nos presta e ao mesmo tempo imbecilizando
boa parte da sociedade e desconcertando o restante.
O
celular tudo pode. Ele permite que se fale e escute contemplando a fisionomia
alegre, ou triste, da pessoa com quem falamos e até o ambiente de onde está
falando. Ele substitui o livro impresso, que ocupa espaço precioso em nossas
paredes. (Quanto à qualidade da leitura, é outro assunto, há controvérsias). Ele
também substitui o professor na sala de aula, ele substitui a velha máquina
fotográfica., as festas de aniversário, a ida, para compras, ao supermercado e
o que mais essa nossa tecnologia pródiga tenha inventado nas últimas 24 horas.
Sou capaz de adivinhar que em breve não precisaremos mais de barbeiro nem mecânico de automóveis.
Se
por um lado a tecnologia nos facilitou essas tarefas quotidianas, por outro
comprometeu o relacionamento humano. Os grupos sociais estão se esfacelando, o
ser humano está se degradando e a própria família não tem mais aquele
sentimento de unidade, de solidariedade e de afeto. Os princípios mudaram. Não
estou inventando nada. Tudo isso foi estudado por sociólogos, sociólogos e
outros especialistas provavelmente já substituídos pelo celular,
Até
pouco tempo as pessoas se encontravam. Para discutir, trocar ideias, planejar,
efetuar tarefas ou simplesmente falar da vida alheia. Agora não há mais
encontros. Os encontros são feitos por via eletrônica. Nós vemos as pessoas.
Vemos o seu rosto, vemos os seus olhos, mas não vemos o seu olhar, não sentimos
a sua alma.
Repito:
Eu não estou inventando nada. Isto tudo era assim antes da Pandemonia sem
acento. Portanto, ela pode ter agravado, ou menos, o estado das coisas. Lembro-me
de uma entrevista dada pelo meu coleguinha Veríssimo algum tempo atrás. (Perdoem
a modéstia, chamo-o de coleguinha depois que conheci o Luiz Fernando Verissimo
e de ter-me tornado um fanático leitor de suas crônicas – leiam “Os bondes do
Verissimo” e “Mais bondes”, aqui mesmo, muitas paginas atrás).
Perguntado sobre o que achava da tecnologia em
nossos dias ele respondeu o seguinte: (estou citando de memória):
“
Quanto à tecnologia eu admiro o avanço, etc, etc, mas ao mesmo tempo me
preocupo com a contribuição que ela está dando para a imbecilização do homem .
. .” .
Assim
é, e assim será. Embalsamado em meu casco, contemplando os jardins do meu Castelo,
reconheço que sou um felizardo. E me auguro que, ao subir a Montanha de
Narayama, os deuses me recebam com a complacência que eu merecer como pecador,
ranzinza e . . . mandão.