Parece exagero, mas não é. O título é justo.
Domiciana estava “acima do entendimento humano”.
Domiciana, negra, pobre, analfabeta, sozinha
no mundo, tinha todas as características para ser vítima de todos os
preconceitos do mundo. Mas Domiciana levitava sobre eles, singrando através das núvens do Olimpo. Domiciana era pura.
Foi descoberta por Dorotéa, minha esposa,
na fila de um Banco. Tinha ido fazer seu recadastramento no INSS, procedimento
com o qual a burocracia, aliada à “inclusão digital”, maltrata o cidadão comum,
ou seja, aquele ingênuo trabalhador que ainda usa lápis, papel e a voz humana,
para se comunicar. Domiciana tinha que preencher um formulário, mas não sabia
escrever. Dorotéa prontificou-se a ajudá-la. Enquanto trabalhavam, deu-se o
seguinte diálogo:
- Onde é que você mora ?
- Eu moro na Rua do Catete. Divido o
quarto com três amigas.
- E o que é que você faz ?
- Eu sou faxineira, trabalho na diária. Já
tenho quase todos os dias ocupados, só tenho um dia livre.
- Não, você não tem mais um dia livre. Prepare-se
porque você vai trabalhar lá em casa.
E assim foi. Depois de algum tempo
cumprindo o seu dia semanal, Domiciana foi devidamente entronizada no Castelo
do Cosme Velho. Ocupou seu quarto com banheiro privativo nos 107 metros
quadrados que compõem o nosso apartamento, podendo usufruir da deslumbrante
vista do Cristo Redentor e contemplar a horta de 2,2 metros quadrados que tenho
pendurada em forma de jardineira, nas minhas janelas. Aí planto rúcola e ervas aromáticas
para tempero.
Domiciana cuidava da casa, fazia limpeza,
lavava a roupa e preparava os deliciosos pratos italianos que Dorotéa lhe
ensinava, num verdadeiro sincretismo culinário afro-italiano.
Os anos passavam. Do ano de 1997, quando a admitimos, já havíamos
chegado a 2004. Nossa admiração por ela aumentava a cada dia. Duas qualidades,
aparentemente conflitantes, em Domiciana, nos impressionavam: sua ingenuidade e
sua sagacidade. O que vou contar explica bem isso.
Certa ocasião um primo meu, italiano, veio
visitar-nos. Chamava-se Biggio, uma forma carinhosa de tratar os Luigi, comum
na Itália. Muito brincalhão, ele tentava aprender com Domiciana algumas
palavras em português. Mas ela não tinha paciência e preferia comunicar-se por
meio de mímica. Para isso havia criado uma coreografia própria. Gesticulava tanto
que parecia estar dançando um Maracatu
de Luanda.
Um dia tivemos que sair cedo, Dorotéa e eu.
O Bíggio ainda dormia. Instruímos Domiciana para que lhe servisse o café da
manhã quando se levantasse.
Assim que voltamos percebi que Domiciana,
olhando-me de soslaio, atraia Dorotéa para um canto da sala. Afastei-me para não
criar embaraço. Ela falava a meia voz:
- “Dona Dorotéa, esse primo do seu Luis é
doido. Completamente maluco. Olha só, ele me perguntou se eu não tinha um
burro! Eu não respondi, e ele ficou repetindo: Burro! Burro! Burro! e me mostrava um pedaço de pão. Burro nem come
pão. Como é que eu ia ter um burro aqui? E se tivesse, como é que ele ia subir
no elevador?”
Burro, em italiano, é manteiga. Ah, esses falsos cognatos !
Biggio encantou-se com a Domiciana e
sucumbiu aos seus quitutes. Num almoço de sábado, em plena feijoada, ele
resolveu elogiá-la:
- “Tu
sei brava, Domicciana” !
E
disse isso com o mesmo fervor com que teria aplaudido o Pavarotti no Scala de
Milão.
- “O
que? O que que ele disse? Brava? Sou brava sim.”
- “Come?
Come?” repetia o Bíggio, sem entender.
- “Sou
brava mesmo. Eu sou fogo, Eu sou foguinho.
- “Come?
Come?”, continuava ele, atordoado.
Domiciana foi até a cozinha e voltou com
uma caixa de fósforos. Tirou um palito e acendeu-o. O Biggio,
fingindo-se assustado, exclamou:
- “Vuoi brucciarmi ?” (você quer me queimar?)
Domiciana continuou:
- “Charme? Sim. Tenho muito, muito charme,
olha, olha” E empinando a bunda, mãos na cintura, começou a
imitar as poses da Carmen Miranda e a rebolar.
Foi muito divertido.
Tendo começado a trabalhar conosco em
1997, ao chegar Janeiro de 2004, Domiciana completava sete anos de bons serviços.
Em Janeiro de 2005 quis o destino que fôssemos, Dorotéa e eu, morar em Nova
Friburgo, com seu aprazível clima de montanha. Levaríamos Domiciana, obviamente mas, para nossa surpresa,
ela não aceitou. Explicou que não suportava o frio, que o lugar seria muito
diferente, e coisa assim.
Dorotéa, preocupada, começou a procurar um
lugar para alojá-la adequadamente aqui no Rio. Foi quando a Domiciana informou
que tinha uma amiga que dispunha de um quarto para alugar. Dorotéa foi em busca
da tal amiga. Dona Maria, de Mesquita, era uma ótima pessoa.
A
partir de então, Dona Maria revelou-se uma excelente guardiã e protetora de sua
inquilina.
Domiciana foi instalada em um quarto externo
da casa. Dispunha de banheiro, fogão e pia de modo que podia preparar sua própria
comida. Dorotéa assumiu o aluguel e as despesas, bem como manteve o seu
salário, para completar a mísera aposentadoria burocrática.
Embarcamos para Friburgo e começamos vida
nova. Por volta de 2011, Dorotéa iniciou a busca de um lugar definitivo e adequado
para hospedar Domiciana, a esta altura com quase 90 anos e precisando, já, de
atenção e cuidados especiais.
Foi quando se chegou ao LAJE – Lar Abrigo
Amor a Jesus, uma instituição modelar de
Nova Friburgo, dedicada ao cuidado de
idosos, mantida a custa de doações, eventos sociais de caridade e. sobretudo, da abnegação e sacrifício dos
seus funcionários e administradores.
Feita a inscrição, era preciso aguardar
uma vaga.
Sempre que íamos ao Rio, fazíamos uma
visita a Domiciana.
Era preciso prepará-la para a mudança.
Dorotéa começou a explicar-lhe que se tratava de um parque, cheio de árvores, pássaros, lugares
lindos onde poderia passear e conversar com seus amigos hóspedes. Que havia um refeitório
grande e confortável com cinco refeições diárias. Que havia uma enfermaria e médico
caso precisasse. Que havia cabelereiro e manicure. Que havia um lavanderia que
lhe restituiria suas roupas limpas e cheirosas. E que, acima de tudo isso, ela
contaria com o cuidado, o carinho, o amor e a dedicação de todos os enfermeiros,
assistentes, administradores e ajudantes daquele mundo complexo que, num trabalho incógnito e desinteressado, cuidava
de idosos.
Em 12 de Maio de 2012, Domiciana recebeu
sua vaga. Era preciso transferi-la. Seria um dia muito especial. Sempre que a
visitávamos, quando falávamos no assunto, podíamos notar uma mudança no semblante
que denotava a nostalgia da partida. Eu temia uma reação descontrolada. Então,
me preparei.
Fomos recolhê-la em Mesquita. A primeira
coisa que fiz foi sentá-la ao meu lado no banco do carro. Dorotéa ficou atrás,
evitando assim que uma conversa entre ambas viesse perturbar a concentração da
nossa protegida. Partimos. Durante um longo percurso eu mantive um silêncio
respeitoso. Eu espiava Domiciana com o rabo do olho e compreendia sua angústia.
Ser extirpada do ninho, arrancada de suas coisas, sua cama aconchegante, seu fogão,
e até sua frigideira preferida, era aterrador.
Quando alcançamos a subida da Serra, achei
que era chegado o momento de falar.
- “Domiciana, você está indo para um lugar
muito especial. Ali você terá todo o conforto e segurança, e Dorotéa e eu estaremos por perto, visitaremos você
e . . . bla . . . bla . . . “
Expliquei-lhe tudo o que eu escrevi aí
acima. Domiciana não deu uma palavra. Ora olhava a paisagem, ora o teto do
carro.
Foi então que resolvi disparar a flecha
definitiva:
- “Domiciana, esse lugar que você vai é tão
bom, mas tão bom, que eu mesmo também
vou pra lá. Já pedi uma reserva e . . .”
Não pude continuar.
- “É mesmo ? Então o senhor vai no meu
lugar ! Não, Não, o senhor vai no meu lugar,
eu posso esperar . . . “
Domiciana chegou, instalou-se e em poucos dias
já era conhecida de todos, dava palpite em tudo e estava ajudando nos trabalhos
da lavanderia. O primeiro socorro que ela recebeu foi a ajuda de um enfermeiro
que teve que retirá-la de um barranco onde havia caído quando fora colher abacates.
Nós íamos visitá-la com regularidade e cada
visita era um divertimento. Ela conhecia a biografia de todo o mundo. Um dia,
estávamos conversando no pátio quando um enfermeiro passou.
- “Vocês estão vendo esse aí ? Ele não usa cueca !
- “Mas como é que você sabe, Domiciana ?
- “Ora, não tá vendo a calça dele afundada
no rego da bunda? Aquilo é falta de cueca.”
O tempo passava. Um dia Dorotéa precisou
fazer uma cirurgia. Ficou internada apenas três ou quatro dias, mas precisou
ficar em repouso um par de semanas, o tempo suficiente para que Domiciana
notasse a falta das nossas visitas Assim que pudemos, fomos lá. Não pude
estacionar perto da entrada principal, então pedi a Dorotéa que entrasse e
localizasse a Domiciana. Quando cheguei, estavam ambas no pátio, conversando
animadamente. Cumprimentei Domiciana efusivamente. E ela, com a solenidade de
quem vai revelar o segredo do Santo Graal, disse:
- “Oh, Seu Luis, a Dona Dorotéa me contou
que fez uma operação pra tirar os ovários. Então o senhor vai ter que cortar o
saco.”
Domiciana ! Domiciana !
Chegamos a 2020. Mês de Maio. Dia 17 último,
recebemos um telefonema do LAJE com a notícia de que Domiciana tinha sido internada para um tratamento
intensivo. Durante os dias subsequentes, Dorotéa tentou falar com ela. Não conseguiu.
Estava inconsciente. Ficamos em contrição.
No
dia 27 de Maio Domiciana nos deixou. Foi singrar entre as núvens do Olimpo.
Requiem aeterna
dona eis Domine
et lux perpetuam
luceat eis
requiescat in pace
Amen
Repouso eterno
Dai-lhes Senhor
E a luz perpétua
os ilumine
Descansem em paz
Amém
Muitas vezes, para exprimir com exatidão o que queremos dizer, ou para que o outro entenda com a devida ênfase o que queremos expressar, precisamos utilizar uma redundância.
ResponderExcluirEste é um dos casos, quem conheceu a Domiciana poderá afirmar sem medo de errar: estava ali uma pessoa humana!
Muito justo essa crônica em sua homenagem.
Chegava eu de carro no Laje,quando a encontro sentada em um banco do pátio, mas voltada para o jardim. Pergunto
ResponderExcluir- Está conversando com passarinho?
E ao perceber que não me reconhecia,
- Sou eu, Flamínio, filho da Dorotea.
E ela me olha, me olha, e manda
- Ué, mas você está acabado!!!!
Admirado Luigi Spreafico!
ResponderExcluirQuerido Gino!
Caro Biggio!
É saudável ouvir esse relato. Sim, a narração das peripécias da ingenuidade e sabedoria desse ser de Luz, a Dona Domiciana!
Confesso que li, tomada de uma forte emoção de dignidade ao sentimento.
Belo relato!
Cheio de emoção e autenticidade!
Segue Dona Domiciana a sua jornada espiritual!
Amém.
Lindo relato.
ResponderExcluirNao conheci a Dominiciana, mas essa cronica e' um verdadeiro retrato que mostra um grande ser humano realmente.
Que descanse em paz.