29 maio 2020

A PANDEMONIA



 Medo e Desespero

Criei um neologismo. Sem acento e sem compromisso.  E o criei porque fazia falta. E fazia falta porque, em pleno cumprimento de uma penitência, cuidávamos de atender às obrigações que nos eram impostas. E não conseguiamos saber por que nos eram impostas.  

Uma pestilência desabou sobre nossas cabeças.
Pelo nosso comportamento.  Pelos nossos malfeitos. Pelas nossas iníquas ações. Pela nossa ganância.  Deram-lhe um nome: PANDEMIA. Recolhido entre as quatro paredes que cercam o meu quarto, tive que enfrentar dois sentimentos. O Medo e o Desespero.

Medo por não poder vislumbrar um futuro qualquer, próximo ou remoto que fosse. Por não saber se valeria a pena acordar no dia seguinte. Por não saber  se os meus amigos e parentes ainda reconheceriam o meu semblante esquálido carcomido pelos sulcos da tristeza.

Desespero porque, encontrando-me em condições privilegiadas de acomodação, podendo tomar banho duas vezes por dia, fazer três refeições e dormir o tempo que quiser dia após dia, olho à minha volta e o que vejo ?
Milhões de pessoas – sim, eu disse milhões -  que não têm sequer um balde de água para lavar-se, um catre miserável para dormir e o essencial para alimentar-se.

Pandemias existiram muitas através dos séculos. Entre elas aparecem a Gripe Espanhola, a Peste Bubônica e a Tuberculose para citar apenas algumas entre aquelas que ficaram famosas. Mas a nossa pandemia se destaca e assume o vulto de um pandemônio. Porque nas precedentes, toda a sociedade se empenhava para entender o mal e curar os seus doentes enquanto na nossa pandemia doméstica a atividade principal é a discussão, a briga, a disputa o confronto e os impropérios. Entidades públicas, líderes governamentais, chefes políticos, empresários, advogados e donos de padaria se empenham em conflitos de liderança para decidir quem manda.
Enquanto isso os doentes, infectados, moribundos, desenganados e esperançosos entopem os corredores dos hospitais.

É deprimente. Mas, como numa democracia, você pode escolher seu líder e terá a liberdade de ir à praia, passear com o cachorrinho na praça ou comer seu cachorro quente  na padaria.
Para os que ficaram em casa e tinham como se manter, a vida começou a correr frouxa. Tempo sobrando para tudo. Lavar a louça, organizar velhas fotografias, brincar com os gatinhos, comer , beber e dormir.
Mas . . .  e aqueles que foram obrigados a ficar em casa ?  Aqueles que perderam o emprego ? Aqueles que nunca tiveram um emprego ?

Independentemente de uma análise completa sobre os efeitos da pandemia no ser humano, uma constatação pode ser feita: o relacionamento entre as pessoas não é mais o mesmo. Começaram a surgir sinais de depressão e transtornos diversos como medo, raiva, rejeição e sei lá mais o quê.

Espero que, a esta altura, o meu incauto leitor já se tenha conformado com o meu neologismo e perdoado a minha petulância. Porque agora quero mostrar como foi estudado este problema muitos anos atrás. Anos, não. Séculos. Em plena Idade Média.

Foi no ano de 1343, por ocasião da Peste Bubônica, mais conhecida como Peste Negra. Durante cerca de dez anos a Peste Negra sacrificou um terço da população europeia. A doença era causada por uma bactéria e os sintomas eram febre, calafrios e dores musculares.

Em 1348, Giovanni Boccaccio, escritor florentino, começou a escrever sua monumental obra Il Decamerone, um livro para contar histórias. É através dele que vamos conhecer um pouco do que foi a vida em tempos de Pandemia naquela época.

“ Naquela cidade de Florença cuidado algum valeu nem importou qualquer providência humana. Proibiu-se a entrada nela de qualquer enfermo. Muitos conselhos se distribuíram para a conservação do estado sanitário.
No tratamento das referidas enfermidades, nem conselho de médico, nem virtude de remédio algum, parecia proporcionar cura, nem proveito. Ao contrário.
Esta peste foi de grande violência porque ela se lançava contra os sãos partindo dos enfermos, desde que enfermos e sãos ficassem juntos.”

“Deixemos de lado a circunstância de um cidadão ter repugnância de outro; de quase nenhum vizinho  prestar cuidados a outro; de os parentes, juntos, raras vezes, ou nunca, se visitarem; e, quando se visitavam, ainda assim, só fazerem de longe. Esta atribulação tinha entrado, com tamanho espavento no peito dos homens e das mulheres, que um irmão abandonava o outro; o
tio abandonava o sobrinho; a irmã, a irmã; e, com frequência, a esposa desertava de seu marido. Os pais e as mães sentiam repugnância de visitar e
de servir os seus filhos, como se esses não fossem seus (e esta é a pior coisa, quase inacreditável),”

Século XIV . . .   Parece que foi escrito ontem !


Nota: Quero fazer um agradecimento especial à minha filha Flávia e seu marido Estevão. Foram eles que, em boa hora, me enviaram de presente o Decamerão  cujos trechos transcrevo. Sem o régio presente esta crônica não teria sido escrita.







20 maio 2020

A Penitência Universal


Em dezembro de 2009 escrevi “As vozes do Além” (Crônica Nº 16), na qual relato as vicissitudes pelas quais passei numa viagem de trabalho ao Japão. Eu estava detalhando com a  Shikishima Spinning a construção da  fábrica de tecidos Seridó, no Estado do Rio Grande do Norte  Nas viagens para Tokio, frequentemente passava por São Francisco da Califórnia, onde pernoitava um ou dois dias. Em Tokio, ficava sempre hospedado no Imperial Hotel, ou “Imperiaro Otero” como eles pronunciavam.
Nessa manhã, eu havia acordado cedo e o imenso lobby do hotel estava deserto. E eu, mergulhado nos meus pensamentos, através de um sopro misterioso, fui informado de que a minha vida iria mudar. E para sempre. Não vou aqui deter-me nos detalhes mas quem leu “As vozes do Além” sabe o que passei.
Desfeito o sortilégio, voltei ao mundo dos cautos . . .

. . . para descobrir, tantos anos depois, este mundo destroçado em que estamos vivendo. Que força maligna, que desígnio superior, que conluio de deuses enfurecidos se espalharam pelo universo para nos submeterem a esta penitência sem previsão de tempo para cumpri-la.
Alguém decidiu fazer justiça na terra, não há dúvida. “O saber supremo, a  podestade divina  e o primeiro amor” , como dizia Dante, baixaram à terra e aplicaram o castigo devido: A Penitência Universal.

Olhemos à nossa volta. O que vemos?  O desarranjo total do ser humano. A desorganização total da sociedade. A degradação total do caráter. O aviltamento dos valores morais.

Guerras entre países, lutas internas, rebeliões civis, conflitos entre raças e
violência decorrente de preconceitos, tudo isso ornamentado por teses estapafúrdias baseadas em ideologias, crenças religiosas ou simples preconceitos.
Hipocrisia, egoísmo, suspeição, ganância, traições. O contato humano virou fantasia.
Preparemo-nos. Temos uma penitência a cumprir. E cada um prestará contas ao seu Deus. Ou à Divina Podestade.

09 maio 2020

Confissão





Triste é você descobrir que o computador virou o melhor amigo do homem.

Triste é você acabar escravo dos “tizapps” da vida e, na ânsia frenética de dar respostas, descobrir que seu dedo aperta 3 letras ao mesmo tempo. Você  leva mais tempo para corrigir do que levaria para escrever. Não se faz mais dedos como antigamente !

Triste é você descobrir que a bengala virou o móvel mais importante da sua casa.

Triste é você não poder tirar aquele livrinho da estante mais alta da sua biblioteca porque não pode mais subir os degraus daquela escadinha de meio metro de altura.

Triste é não poder mais ler bula, plaquinha, aviso, coluna de jornal e o que mais for, porque as letras ficaram misteriosamente miúdas e você precisa de uma lupa para enxergá-las.

Triste é você descobrir que o nível do chão  ficou mais baixo do que era antes, e que o mesmo sofá no qual se sentou toda sua a vida ficou mais longe e agora você desaba nele como um saco de batatas.

Triste é quando você conta aos seus amigos que votou no Bode Cheiroso, e eles  dizem que você  é o responsável pela desgraça que desabou sobre suas cabeças.

Triste é que, quando eu for reler este mísero texto, manuscrito que foi, eu não vou conseguir entender nem a metade das palavras que escrevi.

Mas . . . Triste mesmo será quando eu não tiver mais motivos para ficar triste. Porque aí, eu me darei conta de que era feliz e não sabia.