Medo e Desespero
Criei um neologismo. Sem acento e sem
compromisso. E o criei porque fazia
falta. E fazia falta porque, em pleno cumprimento de uma penitência, cuidávamos
de atender às obrigações que nos eram impostas. E não conseguiamos saber por que
nos eram impostas.
Uma pestilência desabou sobre nossas
cabeças.
Pelo nosso comportamento. Pelos nossos malfeitos. Pelas nossas iníquas
ações. Pela nossa ganância. Deram-lhe um
nome: PANDEMIA. Recolhido entre as quatro paredes que cercam o meu quarto, tive
que enfrentar dois sentimentos. O Medo e o Desespero.
Medo por não poder vislumbrar um futuro
qualquer, próximo ou remoto que fosse. Por não saber se valeria a pena acordar
no dia seguinte. Por não saber se os
meus amigos e parentes ainda reconheceriam o meu semblante esquálido carcomido
pelos sulcos da tristeza.
Desespero porque, encontrando-me em
condições privilegiadas de acomodação, podendo tomar banho duas vezes por dia, fazer
três refeições e dormir o tempo que quiser dia após dia, olho à minha volta e o
que vejo ?
Milhões de pessoas – sim, eu disse milhões
- que não têm sequer um balde de água
para lavar-se, um catre miserável para dormir e o essencial para alimentar-se.
Pandemias existiram muitas através dos
séculos. Entre elas aparecem a Gripe Espanhola, a Peste Bubônica e a Tuberculose
para citar apenas algumas entre aquelas que ficaram famosas. Mas a nossa
pandemia se destaca e assume o vulto de um pandemônio. Porque nas precedentes, toda
a sociedade se empenhava para entender o mal e curar os seus doentes enquanto
na nossa pandemia doméstica a atividade principal é a discussão, a briga, a
disputa o confronto e os impropérios. Entidades públicas, líderes governamentais,
chefes políticos, empresários, advogados e donos de padaria se empenham em
conflitos de liderança para decidir quem manda.
Enquanto isso os doentes, infectados, moribundos,
desenganados e esperançosos entopem os corredores dos hospitais.
É deprimente. Mas, como numa democracia, você pode escolher seu líder e terá a liberdade de ir à praia,
passear com o cachorrinho na praça ou comer seu cachorro quente na padaria.
Para os que ficaram em casa e tinham como
se manter, a vida começou a correr frouxa. Tempo sobrando para tudo. Lavar a louça,
organizar velhas fotografias, brincar com os gatinhos, comer , beber e dormir.
Mas . . . e aqueles que foram obrigados a ficar em casa
? Aqueles que perderam o emprego ?
Aqueles que nunca tiveram um emprego ?
Independentemente de uma análise completa
sobre os efeitos da pandemia no ser humano, uma constatação pode ser feita: o
relacionamento entre as pessoas não é mais o mesmo. Começaram a surgir sinais
de depressão e transtornos diversos como medo, raiva, rejeição e sei lá mais o quê.
Espero que, a esta altura, o meu incauto
leitor já se tenha conformado com o meu neologismo e perdoado a minha
petulância. Porque agora quero mostrar como foi estudado este problema muitos
anos atrás. Anos, não. Séculos. Em plena Idade Média.
Foi no ano de 1343, por ocasião da Peste
Bubônica, mais conhecida como Peste Negra. Durante cerca de dez anos a Peste
Negra sacrificou um terço da população europeia. A doença era causada por uma
bactéria e os sintomas eram febre, calafrios e dores musculares.
Em 1348, Giovanni Boccaccio, escritor florentino,
começou a escrever sua monumental obra Il Decamerone, um livro para
contar histórias. É através dele que vamos conhecer um pouco do que foi a vida em
tempos de Pandemia naquela época.
“ Naquela cidade de Florença cuidado algum
valeu nem importou qualquer providência humana. Proibiu-se a entrada nela de
qualquer enfermo. Muitos conselhos se distribuíram para a conservação do estado
sanitário.
No tratamento das referidas enfermidades,
nem conselho de médico, nem virtude de remédio algum, parecia proporcionar cura,
nem proveito. Ao contrário.
Esta peste foi de grande violência porque ela
se lançava contra os sãos partindo dos enfermos, desde que enfermos e sãos
ficassem juntos.”
“Deixemos de lado a circunstância de um
cidadão ter repugnância de outro; de quase nenhum vizinho prestar cuidados a outro; de os parentes,
juntos, raras vezes, ou nunca, se visitarem; e, quando se visitavam, ainda
assim, só fazerem de longe. Esta atribulação tinha entrado, com tamanho espavento
no peito dos homens e das mulheres, que um irmão abandonava o outro; o
tio abandonava o sobrinho; a irmã, a irmã;
e, com frequência, a esposa desertava de seu marido. Os pais e as mães sentiam
repugnância de visitar e
de servir os seus filhos, como se esses
não fossem seus (e esta é a pior coisa, quase inacreditável),”
Século XIV . . . Parece
que foi escrito ontem !
Nota: Quero fazer um agradecimento
especial à minha filha Flávia e seu marido Estevão. Foram eles que, em boa
hora, me enviaram de presente o Decamerão cujos trechos transcrevo. Sem o régio presente
esta crônica não teria sido escrita.