19 abril 2020

Surpresas na Serra. . . Desafios no Mar



A quietude na Serra nestes dias de outono induz a um silêncio restaurador. Recolhido no meu bambuzal contemplo a neblina baixa que se aconchegou no Vale do Cônego deixando exposto apenas o cocoruto do Chapéu da Bruxa. O projeto da Montanha de Narayama foi abandonado. Minha mente vaga.
Olho à minha volta. O panorama é entristecedor. Os sabiás não cantam mais com o mesmo entusiasmo. Os gambás se tornaram escassos e as bananas sobram no quintal. O casal de jacus não desce mais para exibir seu porte majestoso; emitem seus gorjeios de dentro do ninho. As plantas crescem à revelia do seu amo, ausente pelas circunstâncias do tempo. Encontrei um pé de abóbora que havia se alastrado na planície da horta subindo pela porta da cozinha, visto que não podia entrar. Os cães não ladram mais. As noites se tornaram longas, ignorando as estações do ano. Os dias, insípidos. As ruas, desertas. Tranquei as portas e me transportei para o nível do mar.

No velho esconderijo do Cosme Velho, a vida retoma a sua rotina.
Mas . . . descubro que estou sozinho! A dura constatação, a princípio, me confunde. Aos poucos me acostumo. De repente, uma descoberta: Estou lendo os “Diários Intermitentes” do Economista Celso Furtado com o qual trabalhamos, minha esposa e eu, na Sudene. Em três ocasiões, Furtado confessa estar sofrendo uma enorme solidão e que isso o incomoda muito. Um pequeno detalhe: Furtado escreveu isso quando tinha dezesseis anos de idade. Isso me confortou.

A solidão me faz companhia. Os seus fantasmas me acompanham. Como sombras durante o dia e como vultos durante a noite.
A  SOLIDÃO !  Preciso entendê-la.

Consultei os psicólogos. E eles me disseram:
 “Para viver feliz na solidão é preciso aceitá-la. Admita que você se sente só”.
 Pronto. Admiti. Mas os psicólogos continuam:
“Você também precisa esquecer o seu passado”.
Muito justo, retruquei. De nada adianta ficar apregoando minhas bravatas se tenho que pagar as contas no fim do mês.
Mas, esquecer o passado?
Sim, vou esquecer o meu passado. Mas para isso é preciso que eu me lembre dele, antes.
  
E assim encontrei-me, ainda jovem, flanando pelo velho Recife, balançando as pernas na amurada das pontes, esperando o nascer do sol no Cais de Santa Rita ou contemplando a lua escandalosa refletida nas águas do Capibaribe.

Como não iria me lembrar dos encontros festivos com poetas e pintores,  sonhadores românticos, e suas presepadas? Carlos Pena Filho nas noitadas boêmias do Bar Savoy; Adão Pinheiro, Abelardo da Hora, Reinaldo Fonseca, Mario Mota . . .
Como não lembrar dos ensaios no Teatro do Parque com Ariano Suassuna, Capiba, Joel Pontes, Clênio Wandelei, Hiran Pereira, Hermilo  Borba Filho e todos os mamulengos de “A Pena e a Lei” ?  E o sucesso no Teatro Santa Izabel com “O Diário de Anne Frank” ?
E a representação da Paixão de Cristo em Fazenda Nova, três dias de espetáculo contínuo num cenário grandioso esculpido em pedra por artesãos locais?
De tudo isso me lembrei. Porque tudo isso eu vivi. E muito mais.

Um dia, quando eu balançava as pernas na Ponte Buarque de Macedo, vi que passava, apressado, o poeta Augusto dos Anjos. Com o semblante carregado, parecia ir ao encontro da morte. Perguntei-me em que estaria pensando. Entendi depois: No destino.


AS CISMAS DO DESTINO

“Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava o Destino, e tinha medo.
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Lembro-bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!”
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A casa do Agra era uma Funerária. Eu a conhecia bem, ficava na Rua da Conceição, bairro da  Boa Vista e eu passava por ela quando ia garimpar livros nos sebos da região. Continuando seu longo poema “ As Cismas do Destino ", Augusto dos Anjos declama:

“Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!”
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Em um soneto  Augusto dos Anjos continua
falando do seu destino:

“Tome, Dr. esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa
Que importa a mim que a bicharada roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
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Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!”

Com estes versos, deixo ao meu incauto leitor a incumbência de desvendar os mistérios que se escondem na cabeça de um solitário. A Solidão é um mar imenso. Oferece banhos reparadores.
A volta ao nível do mar aquietou-me a alma. Deixei a Serra com tristeza e nostalgia. Mas a chegada ao Palácio Encantado do Cosme Velho me proporcionou a vida alegre e festiva do adolescente de outrora.

“ Absit injuria verbis ”



9 comentários:

  1. Tristeza e Nostalgia, companheiras inseparáveis de um presente que sufoca tudo de bom já vivido no passado. Sufoca, mas não retira de quem o viveu.
    Gratidão pela leitura maravilhosa que me proporcionas, e me fez lembrar que também encontro no passado momentos de introspecção e apreciação da Natureza conjugada com a vida social, cenários raramente percebidos, nos quais encontro forças para enfrentar as adversidades do presente; seja, solitário, seja em solidão, seja em meio a um turbilhão de pensamentos e vozes internas, seja no silêncio interno e calmante ou até mesmo devastador; que, algumas vezes, caminho dentro de mim em busca de novas perspectivas para ressignificar e sobreviver ao que está acontecendo.
    Esses cenários desse Maravilhoso Texto são tão vivos dentro de mim também, me transportou a esses lugares, nos quais também me sentei a pensar nas incógnitas da Natureza, (não sabia de onde vinha tanta água através daquela via chamada Capibaribe a desaguar no Mar logo ali adiante. E, sentir, pela leitura ali sentado, a frieza de alguns versos do Augusto dos Anjos e o calor das poesias cantadas pelo Capiba. Esse caldeirão amornava minha alma e mantinha-me na construção de um futuro que não me aprisionasse “entre quatro paredes”, como escrito pelo Sartre e Maravilhosamente apresentado pela Geninha ali no Teatro da antiga sede da Escola Técnica, olhando para o Rio. Ali, eu também lia um livrinho, escrito pelo Ariano, A Pena e a Lei, nas primeiras páginas tinha o seu nome e o da Geninha. Como eu gostaria de ter assistido aquela apresentação citada nesse livrinho de uma dimensão Gigantesca: “... A coragem é coisa improvável e carga pesada neste mundo de disparates.”. (que mundo é esse?: violências, preconceitos, paixões... cara a cara com um mundo de inclusão, pacificidade, amor... --> Ariano já fazia pensar... --> através do engraçado para a cultura estabelecida.).

    Gratidão por fazer a nós leitores aprendermos sobre história, cultura, ciência ... e a viajarmos através de sua Crônicas.

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    1. Obrigado Carlos, pelo seus comentários, aliás, uma veradeira crônica. Você também viveu isso e, com a sua sensibilidade, tem muito a nos ensinar.

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    2. Ainda estou aprendendo aqui no seu Blog que para mim é uma escola virtual, dentro do contexto do Severino Mandacaru, de história, poesia, emoções, sentimentos, ... e crônica. Gratidão Tio!!!

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  2. Os jacus estao de quarentena, por isso nao descem mais?

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  3. Dona Barbarina questionou o nome da ponte ela disse que lembra da Duarte Coelho que em uma noite de carnaval em que os ônibus não estavam passando ela foi comigo da rua da imperatriz atravessando a ponte que estava completamente vazia até a rua que beira o rio para pegar o ônibus na rua que ia até o teatro Santa Isabel e que tinha o correio.
    Por sorte, disse ela, tinha uma lotação vazia. Sentou, me colocou do lado e fui dormindo até o portão da casa de Olinda. Eis que ao ser colocado no chão ainda no portão, acordei e sai correndo gritando vó, vó, vó..
    Não me lembro mas consegui reproduzir a cena carregada de detalhes visuais, sonoros e olfativos principalmente no momento que fui colocado no chão.
    Ahah essa aventura foi depois que ela me resgatou do castigo que tio Eber tentou me aplicar porque eu não queria tomar a sopa.
    O Carlos Guilherme era pixototinho.

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  4. As vezes tambem penso na solidao, mas nao me sinto solitaria, me sentia muito mais quando era avvolta de gente! adesso quando sono nella mia sala con le mie tele e pennelli non rimpiango i giorni di festa, sento una tempesta di pace! I ricordi nono speciali e valgono la pena essere raccontati!

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