02 junho 2019

O Comício da Central



Depois que abandonei o projeto Narayama, as coisas caíram numa rotina enfadonha. Abandonar a Serra foi muito cômodo e liberar-me do estresse foi um alívio. Alcançar a felicidade irremediável foi simplesmente delicioso. Mas fiquei sem saber o que fazer com ela.

Severino tem aparecido com frequência, trazendo notícias de Cabaceiras onde, diz ele, a política é turbulenta, e ninguém se preocupa mais com o índice pluviométrico do sertão paraibano e suas consequências no cultivo da macaxeira.

As divagações com Severino trouxeram-me à memória tempos longínquos vividos no Recife quando, na SUDENE, (1)  lutávamos pelo desenvolvimento da Região Nordeste. Éramos jovens,  sentimentais e sonhadores. Na medida em que os avanços na Economia prosperavam, nosso fervor patriótico também aumentava e, com isso, não podíamos ficar à margem da política. Por outro lado, a Região Nordeste apresentava um cenário particular: extensos latifúndios com canaviais, engenhos e usinas de açúcar onde o “Armazém” era a peça mais importante do sistema econômico. Era nele que os operários compravam seus alimentos e apetrechos domésticos e, ao mesmo tempo, recebiam o crédito necessário para adquiri-los. É obvio que o sistema funcionava como uma válvula controladora dos salários e, mais, o eterno endividamento  mantinha o operário pregado ao solo que lhe dava o sustento.
Claro que também havia coronéis de bom coração, mas isso dependia do coração dos coronéis.

Eu era totalmente ignorante em matéria de política. Bem que eu havia tentado, no meu tempo de estudante, meter-me nas discussões  com  professores e colegas. Participava de comícios. Nada deu certo. Cheguei a ler Marx e Engels. O máximo que consegui foi chegar até a quarta página.
Não demorei a entender que, com o nome que eu carregava e a cara de gringo que eu ostentava, ninguém me levava a sério. Então, limitei-me a cuidar das minhas tapiocas.

Mas, mesmo sem a minha participação, o Nordeste fervia. Cuba chamava a atenção. Fidel Castro havia expulsado o ditador e, depois de pedir ajuda aos Estados Unidos, sem obter sucesso, aninhou-se na sotaina da União Soviética. Vislumbrava-se um  novo sistema político. O socialismo nos daria uma sociedade mais justa, mais humana, que nos livraria do jugo do capitalismo selvagem.

Ora, se deu que, no dia 13 de Março de 1964 eu saí de Montes Claros, na borda do Polígono das Secas do Estado de Minas Gerais, onde havia passado uma semana examinando o projeto de uma fábrica de tecidos a ser implantada com incentivos da SUDENE.  Desembarquei no antigo Aeroporto do Galeão e tomei um taxi com destino ao Flamengo – Hotel Flórida, onde pernoitaria. Quando nos aproximamos do Centro, o taxi começou a dar voltas por ruelas e travessas. Perguntei ao motorista o         que estava acontecendo. O trânsito estava engarrafado. Fiquei sabendo que havia um comício próximo à Central do Brasil  e que o Presidente da República iria falar. Não podendo chegar ao meu destino, pedi ao motorista que me deixasse ali mesmo. Segui a pé o resto do caminho e, como eu acessei a Praça pelos fundos, isto é, no extremo oposto da imensa área ocupada pela multidão, consegui um lugar bem próximo ao palanque. A poucos metros, bem na minha frente, de perfil, o Presidente João Goulart discursava.

Era preciso efetuar reformas de base. O país não podia continuar dependendo de latifundiários exploradores, do capital estrangeiro que remetia lucros enormes para o Exterior, e tantas outras iniquidades. Era urgente efetuar a reforma agrária, a tributária e a eleitoral. Algumas medidas já haviam sido tomadas por decreto, entre elas a desapropriação das refinarias de petróleo. Outras se seguiriam como, por exemplo, a regulamentação do preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupadas.

De volta ao meu hotel, dormi um sono conturbado. Por mais que eu me esforçasse por entender de política econômica aquilo me enchia de dúvidas. E cuidei de voltar às minhas cardas, maçaroqueiras e filatórios, que tornariam as fábricas mais produtivas.

No dia 31 de Março circulou um boato que apimentou a conversa nos botequins e, principalmente, no 12º andar do Edifício do INPS, onde funcionavam os escritórios da SUDENE, considerados um reduto de comunistas: um certo General Olímpio Mourão estava aquartelado com sua tropa em Juiz de Fora, pronto para marchar sobre o Rio de Janeiro. Todo mundo achou graça.
No dia seguinte, nas primeiras horas da manhã, eu tinha uma reunião com o Grupo Têxtil, e começamos nossa rotina de trabalho. Ninguém se lembrava mais do boato da véspera.
Por volta das 10 horas começamos a ouvir um ruído de motores que aumentava gradativamente. Corremos até as janelas. Não se via nada, mas o barulho ficava cada vez mais forte. Subimos até a cobertura do edifício. Dalí podíamos ver o Palácio das Princesas,  sede do Governo do  Estado, ocupado por Miguel Arraes.

Tanques de guerra e veículos militares cercavam o Palácio. Soldados bloquearam a entrada da SUDENE. Quem estava dentro não podia sair. Quem estava fora podia entrar e fazer companhia aos que estavam dentro. Miguel Arraes foi preso. Celso Furtado, Superintendente da SUDENE, foi convidado a continuar no cargo mas não aceitou. Consta que teria dito ao General interventor:
“ Não vou aceitar, e o Senhor será responsável por ter destituído um Governador eleito legitimamente pelo povo “.

O Comandante da 4ª  Região Militar, com Sede no Recife, era o General Justino Alves Bastos.
Como interventor  da SUDENE foi nomeado o General da Reserva Expedito Sampaio, que seria depois substituído por João Gonçalves de Souza, um civil que vinha do setor agrário.
Antes de deixar a SUDENE, o General Expedito Sampaio declarou: “Disseram-me que a SUDENE era um antro de comunistas, mas eu encontrei aqui gente honrada e dedicada ao trabalho”.

Os primeiros dias foram terríveis. Veículos militares cruzavam as ruas  com sirenes estrepitantes, muitas vezes carregando homens algemados na carroceria. Colegas com quem dividíamos o trabalho eram presos. O clima, no ambiente de trabalho, era de medo. Não se podia confiar em ninguém. Nas Faculdades, se algum professor lhe apontasse dedo e dissesse: “ subversivo - retire-se da classe ” , você seria expulso e nunca mais poderia se matricular em qualquer Faculdade. Muitos colegas, que nunca se envolveram com política, foram denunciados injustamente por desafetos e rivais que se aproveitavam da situação para auferir vantagens.

Nossa equipe trabalhava com redobrado esforço. O Grupo
Têxtil fora constituído  em conjunto com o BNB – Banco do Nordeste do Brasil e recebera a incumbência de formular um programa de reequipamento para a indústria têxtil do Nordeste, com inclusão do Polígono das Secas. Uma pesquisa realizada pelo Departamento Industrial da SUDENE havia constatado que a fabricação de tecidos, apesar de preponderante na economia da Região, possuía um parque de máquinas inteiramente obsoleto. A empresa que quisesse aderir ao Programa receberia incentivos da SUDENE, tais como isenção de taxas para importação de máquinas, abatimento no imposto de renda utilizado nas inversões, bem como financiamento, por parte do BNB para as inversões fixas e capital de giro. A equipe daria assistência às Empresas na elaboração do projeto. As máquinas substituídas seriam obrigatoriamente sucateadas para evitar que se formassem novos focos de obsoletismo.
O Programa foi bem sucedido. Dezenas de fábricas foram modernizadas. A equipe foi treinada para a análise dos projetos e foram ministrados cursos  para o treinamento da mão de obra. Um exemplo foram as apostilas dos Cursos de Contramestre de Fiação e de Tecelagem. A OIT – Organização Internacional do Trabalho,  solicitou à SUDENE permissão para divulgá-las em outros países.

Quanto às fábricas que aderiram ao Programa, existem muitas dignas de estudo. Mas uma delas se destaca: A FÁBRICA DA ESTÂNCIA, em Sergipe. É dela que pretendo falar. Assim que puder.





(1) A SUDENE – “Superintendência do Desenvolvimento do    Nordeste”  era um órgão do Ministério do Interior criado para essa finalidade. Dirigida pelo economista Celso Furtado, formou uma equipe de servidores dedicados que trabalharam com entusiasmo pela causa. Entre os vários programas realizados destacou-se o “Programa de Reequipamento da Indústria  Têxtil”.   


Um comentário:

  1. Muito bom, relatos assim fazem falta para aqueles que não vivenciaram aqueles tempos porque para esses parece que momentos assim não existem. Dai acontece o cenário que vivemos hoje.

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