Depois
que abandonei o projeto Narayama, as coisas caíram numa rotina enfadonha.
Abandonar a Serra foi muito cômodo e liberar-me do estresse foi um alívio.
Alcançar a felicidade irremediável foi simplesmente delicioso. Mas fiquei sem
saber o que fazer com ela.
Severino
tem aparecido com frequência, trazendo notícias de Cabaceiras onde, diz ele, a política
é turbulenta, e ninguém se preocupa mais com o índice pluviométrico do sertão
paraibano e suas consequências no cultivo da macaxeira.
As
divagações com Severino trouxeram-me à memória tempos longínquos vividos no
Recife quando, na SUDENE, (1) lutávamos
pelo desenvolvimento da Região Nordeste. Éramos jovens, sentimentais e sonhadores. Na medida em que os
avanços na Economia prosperavam, nosso fervor patriótico também aumentava e,
com isso, não podíamos ficar à margem da política. Por outro lado, a Região
Nordeste apresentava um cenário particular: extensos latifúndios com canaviais,
engenhos e usinas de açúcar onde o “Armazém” era a peça mais importante do
sistema econômico. Era nele que os operários compravam seus alimentos e
apetrechos domésticos e, ao mesmo tempo, recebiam o crédito necessário para
adquiri-los. É obvio que o sistema funcionava como uma válvula controladora dos
salários e, mais, o eterno endividamento mantinha o operário pregado ao solo que lhe
dava o sustento.
Claro
que também havia coronéis de bom coração, mas isso dependia do coração dos coronéis.
Eu
era totalmente ignorante em matéria de política. Bem que eu havia tentado, no
meu tempo de estudante, meter-me nas discussões com professores e colegas. Participava de
comícios. Nada deu certo. Cheguei a ler Marx e Engels. O máximo que consegui
foi chegar até a quarta página.
Não
demorei a entender que, com o nome que eu carregava e a cara de gringo que eu ostentava,
ninguém me levava a sério. Então, limitei-me a cuidar das minhas tapiocas.
Mas, mesmo sem a minha participação, o Nordeste fervia. Cuba
chamava a atenção. Fidel Castro havia expulsado o ditador e, depois de pedir
ajuda aos Estados Unidos, sem obter sucesso, aninhou-se na sotaina da União
Soviética. Vislumbrava-se um novo
sistema político. O socialismo nos daria uma sociedade mais justa, mais humana,
que nos livraria do jugo do capitalismo selvagem.
Ora, se deu que,
no dia 13 de Março de 1964 eu saí de Montes Claros, na borda do Polígono das Secas
do Estado de Minas Gerais, onde havia passado uma semana examinando o projeto de
uma fábrica de tecidos a ser implantada com incentivos da SUDENE. Desembarquei no antigo Aeroporto do Galeão e
tomei um taxi com destino ao Flamengo – Hotel Flórida, onde pernoitaria. Quando
nos aproximamos do Centro, o taxi começou a dar voltas por ruelas e travessas.
Perguntei ao motorista o que estava
acontecendo. O trânsito estava engarrafado. Fiquei sabendo que havia um comício
próximo à Central do Brasil e que o
Presidente da República iria falar. Não podendo chegar ao meu destino, pedi ao
motorista que me deixasse ali mesmo. Segui a pé o resto do caminho e, como eu acessei
a Praça pelos fundos, isto é, no extremo oposto da imensa área ocupada pela
multidão, consegui um lugar bem próximo ao palanque. A poucos metros, bem na
minha frente, de perfil, o Presidente João Goulart discursava.
Era preciso efetuar reformas de base. O país não podia continuar
dependendo de latifundiários exploradores, do capital estrangeiro que remetia
lucros enormes para o Exterior, e tantas outras iniquidades. Era urgente
efetuar a reforma agrária, a tributária e a eleitoral. Algumas medidas já haviam
sido tomadas por decreto, entre
elas a desapropriação das refinarias de petróleo. Outras se seguiriam como, por
exemplo, a regulamentação do preço extorsivo dos apartamentos e residências
desocupadas.
De volta ao meu hotel, dormi um sono conturbado. Por mais
que eu me esforçasse por entender de política econômica aquilo me enchia de
dúvidas. E cuidei de voltar às minhas cardas, maçaroqueiras e filatórios, que
tornariam as fábricas mais produtivas.
No dia 31 de Março circulou um boato que
apimentou a conversa nos botequins e, principalmente, no 12º andar do Edifício
do INPS, onde funcionavam os escritórios da SUDENE, considerados um reduto de
comunistas: um certo General Olímpio Mourão estava aquartelado com sua tropa em
Juiz de Fora, pronto para marchar sobre o Rio de Janeiro. Todo mundo achou graça.
No dia seguinte, nas primeiras horas da manhã,
eu tinha uma reunião com o Grupo Têxtil, e começamos nossa rotina de trabalho. Ninguém
se lembrava mais do boato da véspera.
Por volta das 10 horas começamos a ouvir um
ruído de motores que aumentava gradativamente. Corremos até as janelas. Não se
via nada, mas o barulho ficava cada vez mais forte. Subimos até a cobertura do
edifício. Dalí podíamos ver o Palácio das Princesas, sede do Governo do Estado, ocupado por Miguel Arraes.
Tanques de guerra e veículos militares
cercavam o Palácio. Soldados bloquearam a entrada da SUDENE. Quem estava dentro
não podia sair. Quem estava fora podia entrar e fazer companhia aos que estavam
dentro. Miguel Arraes foi preso. Celso Furtado, Superintendente da SUDENE, foi
convidado a continuar no cargo mas não aceitou. Consta que teria dito ao General
interventor:
“ Não vou aceitar, e o Senhor será
responsável por ter destituído um Governador eleito legitimamente pelo povo “.
O Comandante da 4ª Região Militar, com Sede no Recife, era o
General Justino Alves Bastos.
Como interventor da SUDENE foi nomeado o General da Reserva
Expedito Sampaio, que seria depois substituído por João Gonçalves de Souza, um
civil que vinha do setor agrário.
Antes de deixar a SUDENE, o General Expedito
Sampaio declarou: “Disseram-me que a SUDENE era um antro de comunistas, mas eu encontrei
aqui gente honrada e dedicada ao trabalho”.
Os primeiros dias foram terríveis. Veículos
militares cruzavam as ruas com sirenes
estrepitantes, muitas vezes carregando homens algemados na carroceria. Colegas
com quem dividíamos o trabalho eram presos. O clima, no ambiente de trabalho,
era de medo. Não se podia confiar em ninguém. Nas Faculdades, se algum
professor lhe apontasse dedo e dissesse: “ subversivo - retire-se da classe ” ,
você seria expulso e nunca mais poderia se matricular em qualquer Faculdade. Muitos
colegas, que nunca se envolveram com política, foram denunciados injustamente
por desafetos e rivais que se aproveitavam da situação para auferir vantagens.
Nossa equipe trabalhava com redobrado
esforço. O Grupo
Têxtil fora constituído em conjunto com o BNB – Banco do Nordeste do
Brasil e recebera a incumbência de formular um programa de reequipamento para a
indústria têxtil do Nordeste, com inclusão do Polígono das Secas. Uma pesquisa
realizada pelo Departamento Industrial da SUDENE havia constatado que a fabricação
de tecidos, apesar de preponderante na economia da Região, possuía um parque de
máquinas inteiramente obsoleto. A empresa que quisesse aderir ao Programa
receberia incentivos da SUDENE, tais como isenção de taxas para importação de
máquinas, abatimento no imposto de renda utilizado nas inversões, bem como
financiamento, por parte do BNB para as inversões fixas e capital de giro. A
equipe daria assistência às Empresas na elaboração do projeto. As máquinas substituídas
seriam obrigatoriamente sucateadas para evitar que se formassem novos focos de
obsoletismo.
O Programa foi bem sucedido. Dezenas de fábricas
foram modernizadas. A equipe foi treinada para a análise dos projetos e foram ministrados
cursos para o treinamento da mão de obra.
Um exemplo foram as apostilas dos Cursos de Contramestre de Fiação e de
Tecelagem. A OIT – Organização Internacional do Trabalho, solicitou à SUDENE permissão para divulgá-las
em outros países.
Quanto às fábricas que aderiram ao Programa,
existem muitas dignas de estudo. Mas uma delas se destaca: A FÁBRICA DA ESTÂNCIA,
em Sergipe. É dela que pretendo falar. Assim que puder.
(1) A SUDENE
– “Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste” era um órgão do Ministério do Interior criado
para essa finalidade. Dirigida pelo economista Celso Furtado, formou uma equipe
de servidores dedicados que trabalharam com entusiasmo pela causa. Entre os vários
programas realizados destacou-se o “Programa de Reequipamento da Indústria Têxtil”.
Muito bom, relatos assim fazem falta para aqueles que não vivenciaram aqueles tempos porque para esses parece que momentos assim não existem. Dai acontece o cenário que vivemos hoje.
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