O “Programa de Reaparelhamento da
Indústria Têxtil do Nordeste” foi concebido e implementado pela SUDENE – Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste, no ano de 1960. O Programa acolheu 61 fábricas
distribuídas por todos os Estados da Região. O Programa tinha por objetivo a substituição
do equipamento obsoleto bem como o aperfeiçoamento das práticas administrativas
visando-se, com isso, um aumento da eficiência global das empresas. Para tanto,
além dos adequados serviços de financiamento e utilização de incentivos
fiscais, foram oferecidos ao empresariado, entre outras facilidades, um
programa de aperfeiçoamento para os administradores bem como um programa de
treinamento para a mão de obra fabril, notadamente mestres e contramestres. Por
fim, foi elaborado um “Projeto Padrão” que facilitaria, ao empresário, a elaboração
do seu próprio projeto de viabilidade econômica e financeira evitando, assim, a
custosa contratação de uma empresa especializada. Para completar, a equipe de
técnicos do Grupo Têxtil estaria disponível para auxiliar as empresas na elaboração
do projeto padrão.
Em Julho de 1963, o Programa havia aprovado
61 projetos de reequipamento. A maior parte deles encontrava-se em execução. Outros
em fase de análise. Entre estes destacava-se, no Estado de Sergipe, a Companhia
Industrial da Estância. No início de Janeiro de 1964, a equipe de analistas do
Grupo Têxtil, embarcada numa Rural Willis, deslocou-se até a Cidade da
Estância, para efetuar seu trabalho. Compunha a equipe um técnico têxtil, (abaixo assinado), um engenheiro civil, um contabilista e um
advogado.
A fábrica da Estância estava instalada em um prédio
antigo, na borda de uma imensa planície povoada de coqueiros e bem na margem de um rio. Essa localização se
explica pelo fato de que as fábricas, no começo do século passado, recebiam a
força motriz proporcionada por uma roda d’agua ou, na melhor das hipóteses, por
uma turbina hidráulica.
O cenário era bucólico, mas preocupante. A
fábrica estava a poucos metros da margem do rio e o leito do mesmo era cerca de
3 metros mais alto que o piso da fábrica. Acostumado que fui a ver chuvas
torrenciais nas cabeceiras dos rios do Nordeste que descem de roldão pelos seus
leitos secos e famintos, decidi acautelar-me.
E
se a nova fábrica sofresse uma inundação? O prédio existente deveria ser substituído de qualquer
modo e, portanto, não incorreria em custo adicional.
Reuni o grupo e expus o problema.
Decidimos que seria prudente aconselhar o Empresário a relocar a fábrica.
Espaço não faltaria.
O Empresário não aceitou a sugestão. Foi
enfático e, decididamente, assegurou que ali não haveria possibilidade de
ocorrer qualquer tipo de acidente dessa natureza. E completou: “Ademais, mandei
construir uma barragem rio acima, a duzentos metros daqui, que garantirá
qualquer elevação no nível das aguas”. E
deu o assunto por encerrado.
Chamei o engenheiro civil e disse-lhe: Vamos
visitar a tal barragem”. Tratava-se de uma mureta que, pela conformação
topográfica do terreno, não formava propriamente uma bacia de contenção.
Qualquer precipitação pluviométrica fora do normal provocaria o transbordamento
das águas.
“ Você acha que essa barragem garante o
serviço” ?
“ Sei lá, eu sou engenheiro civil, não
entendo nada de aguas.”
A resposta do colega iluminou o meu caminho.
Eu também não entendia nada de águas. Mas jamais assinaria o projeto naquelas
condições. Por outro lado, eu não podia me opor à aprovação do projeto porquanto
eu não tinha um embasamento técnico convincente.
Consultei o grupo e perguntei se alguém
estava disposto a assinar o projeto naquelas condições. Resposta negativa.
Foi quando me lembrei que a SUDENE dispunha
de um Departamento de Hidrologia que vivia quebrando a cabeça para transferir água
pra cá e pra lá, a fim de mitigar a seca no Nordeste. Eu faria um memorando
para o Departamento solicitando que emitisse um laudo que garantisse a
segurança do prédio da fábrica naquele
local.
Voltamos à base e expedi imediatamente um
memorando ao Departamento de Hidrologia historiando o problema e requerendo
urgência na ação. O tempo foi passando. Não faltaram protestos e reclamações de todo o
tipo. Eu continuava firme na minha posição.
Enquanto isso, nosso grupo continuava
mergulhado na análise de outros projetos com o mesmo entusiasmo de sempre pois
trabalho é que não faltava.
Naquela época o Departamento de
Industrialização da Sudene ocupava todo o décimo primeiro andar do INSS, na Av.
Dantas Barreto, onde se aninhava o Grupo Têxtil. Não havia paredes divisórias
e, portanto, transitava-se entre as mesas dos companheiros de trabalho naquele
espaço imenso.
Certo dia, quando levantei a cabeça, vi o
meu chefe caminhando na minha direção abanando, freneticamente, um papel.
Telegrama Western, pensei.
- Prepare-se para viajar.
- O
que aconteceu ?
- A
Fábrica da Estância foi inundada !
Eu perdi a fala. Não conseguia acreditar no
que acabara de ouvir. Imagens me passavam diante dos olhos como num sonho. A
mureta e seu espelho d’água ... o canto dolente da cascata ... o apito da
fábrica ..
Não sei quanto tempo se passou. Acordei com
a voz do chefe lendo:
- “Presidência da República ....
Senhor Superintendente, Determino
constituir Grupo de Trabalho para
estudar os problemas sociais e econômicos
causados pela inundação da Companhia Industrial
da Estância em Sergipe . . . Você viaja amanhã.
- “Sinto muito, chefe. Mande outro no meu
lugar. Imagine o constrangimento, tanto de minha parte como da parte . . .”
- “ O que ? Você está dizendo que não aceita ? ”
- “ Não aceito. Peço demissão.”
- “ Então você vai explicar isso ao General.
Nessa altura a Sudene estava sob intervenção
militar e o Superintendente era um General. Passados alguns minutos recebi um
aviso da secretária pedindo-me para apresentar-me na Superintendência, um andar
acima do nosso. O General cumprimentou-me de bom humor, provavelmente achando
graça da minha insubordinação.
- “
Eu soube que o Senhor está se recusando a cumprir uma ordem do seu chefe ”
Fiz um relato de tudo o que se havia passado
e expliquei o constrangimento em que eu me encontrava com aquela missão e que, além
do mais, para ser franco, eu tinha receio de viajar por estradas ... naquela
época ,,, perigosa ,,, o Senhor sabe ,,, né ? ... O General me ouviu pacientemente.
- “
O Senhor tem toda a razão. Mas viajará com um documento meu.
Ato contínuo chamou a secretária e ditou.
Passou-me o documento, desejou-me sucesso e firmeza no trabalho.
Embarquei no dia seguinte na mesma Rural
Willis com a qual tinha ido, desta vez levando debaixo do braço meu salvo-conduto,
uma Olivetti Lettera 22, e o peso da responsabilidade
que eu carregava. Para ver cardas e filatórios cobertos de agua, fios e flocos
de algodão flutuando e um monte de operários sem trabalho. Acompanhou-me nessa
missão um colega do Grupo, um amigo fiel e abnegado que depois faria carreira
na Instituição. Depois de duas semanas de trabalho, entregamos nosso relatório
ao Governador do Estado, no Palácio do Governo de Sergipe. Mas esta é uma outra
história.
Nunca tive dúvidas, a teimosia é sempre o maior inimigo do teimoso, especialmente, quando a teimosia vai de encontro a um ditado popular: a água só corre pro lado mais baixo.
ResponderExcluirApesar de tudo, andar de rural em estrada de barro e areia, naquele tempo, exigia coragem porque no mínimo era grande emoção. O resto, é outra história ... Aguardemo-la.