21 junho 2019

A Fábrica da Estância



O “Programa de Reaparelhamento da Indústria Têxtil do Nordeste” foi concebido e implementado pela SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, no ano de 1960. O Programa acolheu 61 fábricas distribuídas por todos os Estados da Região. O Programa tinha por objetivo a substituição do equipamento obsoleto bem como o aperfeiçoamento das práticas administrativas visando-se, com isso, um aumento da eficiência global das empresas. Para tanto, além dos adequados serviços de financiamento e utilização de incentivos fiscais, foram oferecidos ao empresariado, entre outras facilidades, um programa de aperfeiçoamento para os administradores bem como um programa de treinamento para a mão de obra fabril, notadamente mestres e contramestres. Por fim, foi elaborado um “Projeto Padrão” que facilitaria, ao empresário, a elaboração do seu próprio projeto de viabilidade econômica e financeira evitando, assim, a custosa contratação de uma empresa especializada. Para completar, a equipe de técnicos do Grupo Têxtil estaria disponível para auxiliar as empresas na elaboração do projeto padrão.

Em Julho de 1963, o Programa havia aprovado 61 projetos de reequipamento. A maior parte deles encontrava-se em execução. Outros em fase de análise. Entre estes destacava-se, no Estado de Sergipe, a Companhia Industrial da Estância. No início de Janeiro de 1964, a equipe de analistas do Grupo Têxtil, embarcada numa Rural Willis, deslocou-se até a Cidade da Estância, para efetuar seu trabalho. Compunha a equipe um técnico têxtil,  (abaixo assinado),  um engenheiro civil, um contabilista e um advogado.
A fábrica da Estância estava instalada em  um  prédio antigo, na borda de uma imensa planície povoada de coqueiros  e bem na margem de um rio. Essa localização se explica pelo fato de que as fábricas, no começo do século passado, recebiam a força motriz proporcionada por uma roda d’agua ou, na melhor das hipóteses, por uma turbina hidráulica.

O cenário era bucólico, mas preocupante. A fábrica estava a poucos metros da margem do rio e o leito do mesmo era cerca de 3 metros mais alto que o piso da fábrica. Acostumado que fui a ver chuvas torrenciais nas cabeceiras dos rios do Nordeste que descem de roldão pelos seus leitos secos e famintos, decidi acautelar-me.
 E se a nova fábrica sofresse uma inundação?  O prédio existente deveria ser substituído de qualquer modo e, portanto, não incorreria em custo adicional.

Reuni o grupo e expus o problema. Decidimos que seria prudente aconselhar o Empresário a relocar a fábrica. Espaço não faltaria.  
O Empresário não aceitou a sugestão. Foi enfático e, decididamente, assegurou que ali não haveria possibilidade de ocorrer qualquer tipo de acidente dessa natureza. E completou: “Ademais, mandei construir uma barragem rio acima, a duzentos metros daqui, que garantirá qualquer elevação no nível das aguas”.  E deu o assunto por encerrado.

Chamei o engenheiro civil e disse-lhe: Vamos visitar a tal barragem”. Tratava-se de uma mureta que, pela conformação topográfica do terreno, não formava propriamente uma bacia de contenção. Qualquer precipitação pluviométrica fora do normal provocaria o transbordamento das águas.
“ Você acha que essa barragem garante o serviço”  ?
“ Sei lá, eu sou engenheiro civil, não entendo nada de aguas.”

A resposta do colega iluminou o meu caminho. Eu também não entendia nada de águas. Mas jamais assinaria o projeto naquelas condições. Por outro lado, eu não podia me opor à aprovação do projeto porquanto eu não tinha um embasamento técnico convincente.
Consultei o grupo e perguntei se alguém estava disposto a assinar o projeto naquelas condições. Resposta negativa.

Foi quando me lembrei que a SUDENE dispunha de um Departamento de Hidrologia que vivia quebrando a cabeça para transferir água pra cá e pra lá, a fim de mitigar a seca no Nordeste. Eu faria um memorando para o Departamento solicitando que emitisse um laudo que garantisse a segurança do prédio da fábrica  naquele local.

Voltamos à base e expedi imediatamente um memorando ao Departamento de Hidrologia historiando o problema e requerendo urgência na ação.  O tempo foi passando.  Não faltaram protestos e reclamações de todo o tipo. Eu continuava firme na minha posição.
Enquanto isso, nosso grupo continuava mergulhado na análise de outros projetos com o mesmo entusiasmo de sempre pois trabalho é que não faltava.

Naquela época o Departamento de Industrialização da Sudene ocupava todo o décimo primeiro andar do INSS, na Av. Dantas Barreto, onde se aninhava o Grupo Têxtil. Não havia paredes divisórias e, portanto, transitava-se entre as mesas dos companheiros de trabalho naquele espaço imenso.
Certo dia, quando levantei a cabeça, vi o meu chefe caminhando na minha direção abanando, freneticamente, um papel. Telegrama Western, pensei.

-  Prepare-se para viajar.
-  O que aconteceu ?
-  A Fábrica da Estância foi inundada !

Eu perdi a fala. Não conseguia acreditar no que acabara de ouvir. Imagens me passavam diante dos olhos como num sonho. A mureta e seu espelho d’água ... o canto dolente da cascata ... o apito da fábrica ..
Não sei quanto tempo se passou. Acordei com a voz do chefe lendo:

-  “Presidência da República  ....  Senhor Superintendente,  Determino   constituir Grupo de Trabalho para estudar os problemas  sociais e econômicos causados pela inundação da Companhia   Industrial da Estância em Sergipe . . .  Você viaja amanhã.

-  “Sinto muito, chefe. Mande outro no meu lugar. Imagine o constrangimento, tanto de minha parte como da parte . . .”

-  “ O que ? Você está dizendo que não aceita ? ”

-  “ Não aceito. Peço demissão.”

-   “ Então você vai explicar isso ao General.

Nessa altura a Sudene estava sob intervenção militar e o Superintendente era um General. Passados alguns minutos recebi um aviso da secretária pedindo-me para apresentar-me na Superintendência, um andar acima do nosso. O General cumprimentou-me de bom humor, provavelmente achando graça da minha  insubordinação.

-  “ Eu soube que o Senhor está se recusando a cumprir uma ordem do seu chefe ”

Fiz um relato de tudo o que se havia passado e expliquei o constrangimento em que eu me encontrava com aquela missão e que, além do mais, para ser franco, eu tinha receio de viajar por estradas ... naquela época ,,, perigosa ,,, o Senhor sabe ,,, né ? ... O General me ouviu pacientemente.

-  “ O Senhor tem toda a razão. Mas viajará com um documento meu.

Ato contínuo chamou a secretária e ditou. Passou-me o documento, desejou-me sucesso e firmeza no trabalho.
Embarquei no dia seguinte na mesma Rural Willis com a qual tinha ido, desta vez levando debaixo do braço meu salvo-conduto, uma Olivetti Lettera  22, e o peso da responsabilidade que eu carregava. Para ver cardas e filatórios cobertos de agua, fios e flocos de algodão flutuando e um monte de operários sem trabalho. Acompanhou-me nessa missão um colega do Grupo, um amigo fiel e abnegado que depois faria carreira na Instituição. Depois de duas semanas de trabalho, entregamos nosso relatório ao Governador do Estado, no Palácio do Governo de Sergipe. Mas esta é uma outra história.


Um comentário:

  1. Nunca tive dúvidas, a teimosia é sempre o maior inimigo do teimoso, especialmente, quando a teimosia vai de encontro a um ditado popular: a água só corre pro lado mais baixo.

    Apesar de tudo, andar de rural em estrada de barro e areia, naquele tempo, exigia coragem porque no mínimo era grande emoção. O resto, é outra história ... Aguardemo-la.

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