12 dezembro 2019

Volta à Escola Paterna


. . . "O meu primeiro e virginal abrigo". . .  Estou recuperando os meus fantasmas. Sem eles eu não dormiria direito. Com eles subirei a montanha de Narayma e deles estarei cercado quando chegar o sopro Sideral. Entre eles estarão . . .

. . . OS ENVIADOS DE DEUS

Um desconhecido leitor escreveu um comentário sobre a minha “compostagem”(1) intitulada “O FALSÁRIO”. Segundo ele, " o homem das sobrancelhas grandes era um “enviado de Deus”. Nesse comentário, ele faz uma análise psicológica (deve ser do ramo) do bom velhinho e de como ele interpretou o comportamento da criança e do tipo de castigo aplicado: fazer com que ela mesma sentisse vergonha do seu comportamento e, assim, emendar-se. O repúdio, o afastamento, a humilhação, a execração poderiam, nesse caso, resultar na formação de uma criança revoltada e inutilizada para o resto da vida."

 Reconheço que estou me intrometendo em terreno que não conheço. Nunca estudei psicologia. Posso estar dizendo bobagens.O fato é que o comentário me impressionou. Não vou reproduzi-lo aqui, mas, recomendo que o leiam.

 Refletindo sobre o assunto lembrei-me de outras situações difíceis em que fui ajudado por  pessoas generosas que, mesmo sem me conhecerem, me tiraram das dificuldades. Uma dessas pessoas foi, sem dúvida, o Professor Rocha. Rocha era professor de inglês.

Em 1948 o Governo Federal, em convênio com o Senai, criava no Rio de Janeiro a Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil destinada a formar técnicos para a indústria têxtil de todos os Estados do país. A cada Estado foi atribuído um número de vagas proporcional ao tamanho de sua indústria têxtil. Pernambuco recebeu cinco vagas. Seria feita uma prova de seleção em cada Estado e os aprovados seriam enviados ao Rio. A escola oferecia alojamento e pagava todas as despesas de viagem. Uma vez no Rio os alunos seriam submetidos a novo exame para que se efetivasse a admissão. Os reprovados receberiam a passagem de volta.

Eu estava concluindo o curso industrial básico (que equivalia ao ginasial) de Mecânica de Máquinas na Escola Técnica do Recife, também da rede federal e também como aluno interno. A escola ficava no Derbi (o prédio ainda está lá) bem na margem do Capibaribe, flanqueada por duas enormes figueiras (não estão mais lá) nos fundos da Maternidade do Derbi e ao lado do Necrotério Municipal. Assim, eu me acostumei a ouvir, durante a noite, os gritos desesperados das parturientes (naquele tempo não se faziam cesarianas a não ser nos casos de emergência) e, durante o dia, a acompanhar os cadáveres de indigentes, criminosos, suicidas e todos quantos não morriam de morte natural quando, depois da autópsia, eram enfiados nas gavetas do frigorífico do Necrotério. Nas noites de sábado ia ao cinema do Quartel (creio que era da Polícia Militar pois a farda era cáqui) situado na extremidade da Praça do Derbi. Era de graça. O médico da Escola era o Dr. Hilo Lins e Silva a quem coube salvar minha vida em um acidente que sofri durante uma prática nas oficinas.   

Encerrado o curso de mecânica, em Novembro de 1947, o diretor - Manoel Vianna de Vasconcellos – (espero não ter errado na grafia do nome) mandou-me chamar e informou-me sobre o curso que estava sendo criado no Rio. Se eu quisesse continuar estudando sem custo, não haveria oportunidade melhor. Resolvi enfrentar a prova de seleção. Eu tinha medo. No ginásio os alunos estudavam latim, inglês, até poesia se ensinava lá. No curso industrial não tínhamos nada disso. Eu não tinha como competir com os ginasianos.         Preenchi o formulário de inscrição com mão trêmula. A prova foi realizada no Colégio Marista que ficava na Boa Vista. Uma multidão se acotovelava no pátio imenso. O meu terror aumentou quando comecei a ouvir a conversa dos candidatos, todos mais velhos do que eu. A maior parte já havia concluído o curso científico e muitos deles faziam curso superior. Cinco vagas! Enfrentei a prova aterrorizado.


Quando a notícia chegou eu estava ralando milho verde para uma canjica, com as mãos bastante esfoladas. Eu estava entre os cinco. Muitas lágrimas se incorporaram ao milho ralado e, talvez por isso, a canjica nesse dia tenha ficado tão saborosa. Devorada a canjica, mergulhei no estudo, preparando-me para o exame de admissão.

Em Fevereiro de 1948 embarquei, deslumbrado, num DC3, no que seria minha primeira viagem de avião. Do Recife ao Rio durou 8 horas. Lembro-me das escalas, mas não de todas: Maceió, Aracaju, Salvador, mais uma ou duas, Canavieiras, Cabrália, Vitória, Ilhéus, mais uma ou duas e, finalmente, Rio de Janeiro. Ficamos alojados num casarão em São Cristóvão, na Rua Bela. (será que ainda tem esse nome?). O bonde, curiosamente, tinha o mesmo número do da Vila Maria: 34 que fazia ponto final na Praça Tiradentes.  O nome da linha? Alegria. Seu Alfredo, embalsamado em um par de calças risco de giz, uma jaqueta preta de lapelas lustrosas e gravata borboleta, também preta, servia as refeições. Podia-se comer à vontade. Tudo muito chique. Pela manhã eu acordava com o cheiro do café e do pão fresquinho. A Escola ficava no bairro do Riachuelo, na linha da Central, quando o morro do Jacarezinho não passava de um bucólico e pacífico aglomerado de casebres com telhados de zinco.

Eu estudava como um fanático já que iria competir com alunos que vinham de todos os Estados do Brasil. Não podia falhar. Mas, desta vez, a conversa com os colegas me tranqüilizava, pois eu podia avaliar o nível em que se encontravam e me sentia seguro. Entrei na prova calmo e confiante. Classifiquei-me entre os cinquenta candidatos. Seis foram reprovados e voltaram para os seus respectivos Estados. Os 44 alunos que formaram a primeira turma de técnicos têxteis na Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil foram matriculados por ordem de classificação no exame de admissão. O meu número de matrícula foi 1.
As aulas se iniciaram com o edifício da escola ainda em construção. Não havia portas nem janelas. Muitas vezes a aula tinha que ser interrompida por causa do barulho das betoneiras e serras circulares. Meu fervor pelo estudo era renovado a cada dia pelo cheiro das máquinas novas que eu aprendia a montar nas oficinas da fiação. A expectativa da chegada dos teares me deixava eufórico.

 Foi aí que um fato perturbador veio tirar-me a paz. No curso havia a cadeira de inglês a qual não havia sido preenchida, até a metade do primeiro semestre, por falta de professor. No curso industrial, de onde eu vinha, não havia aula de inglês. A única palavra que eu conhecia era “camoni-boi” que havia aprendido na Vila Maria quando brincava de faroeste e, mesmo assim, não sabia o que significava. Todos os demais alunos vinham dos cursos ginasial e científico. Alguma coisa sabiam.
Pela metade do semestre chegou o Professor Rocha. Mostrou-se logo uma pessoa simpática, sempre alegre e grande contador de histórias. Era irmão do Carlito Rocha, treinador do Botafogo, que gozava de imenso prestígio no futebol brasileiro.
No primeiro dia de aula, Rocha explicou: “Como perdemos mais de dois meses de aula eu vou fazer uma avaliação do nível em que vocês se encontram e começarei as aulas por aí.” E assim foi, para meu desespero. Eu não entendia nada.
Chegado o fim do semestre foi aplicada a “prova parcial”. Naquele tempo existia uma prova parcial, no fim do primeiro semestre, e uma prova final, no fim do segundo semestre. A nota para a promoção de ano era uma média das duas. Entreguei minha prova praticamente  em branco e fui chorar escondido.
Na aula seguinte, Rocha chegou com as provas, distribuiu a cada um a sua, e começou a ler as respostas corretas para que cada um comparasse com o que havia feito. No topo da prova, dentro de um círculo, a nota de avaliação.

Quando recebi a minha prova fiquei perplexo, sem poder acreditar. Um 7 claro, inequívoco, firme, sem vacilação. Permaneci mudo, os cotovelos sobre a banca, a cabeça entre as mãos, contemplando o professor. Ele me olhava, de vez em quando, sem bater pestana. Esperei que todos saíssem para devolver minha prova, com a mão trêmula de emoção e a voz embargada:

-- " Professor, muito obrigado. "

Entregou-me um maço de folhas soltas. Eram exercícios. E, segurando meus ombros  com ambas as mãos para manter-me na linha de eixo de suas palavras, disse-me, com olhar firme:

-- " Não tenha medo, menino. Estuda que você passa. "



(1) Compostagem  -  Método usado pelos camponeses para produzir adubo orgânico,     principalmente nas pequenas  propriedades. Consiste em aproveitar os resíduos vegetais oriundos de capinas, podas, desbastes, etc. formando pilhas as quais, através da ação de microorganismos existentes na terra, fermentam, decompondo o material de tal forma que o transformam em um pó escuro, fácil de manusear e de cheiro agradável. Durante a fermentação, que ocorre espontaneamente, a temperatura interna da pilha pode alcançar até 80º centígrados. Uma pilha de composto leva mais de um ano para ficar pronta. Minhas compostagens também. E minha cabeça passa dos 80º C.                      




12 julho 2019

A GRANDE ENTREVISTA

No dia 12 de abril de 2015 fui procurado por uma jovem que me pedia uma entrevista. Thaís S Fernandes era acadêmica do Curso de Jornalismo em uma renomada Faculdade no Rio de Janeiro. A princípio hesitei, pois o meu contato com a imprensa até então havia sido fugir de jornalistas ansiosos por litígios e contendas travados em algumas das empresas por onde passei. Mas, quando vi os temas que a Thaís me jogou no colo, “Convívio Social, Preconceito, Evolução Tecnológica”, fui tomado por um inesperado e vibrante entusiasmo. E, assim, sentados aos pés do Cristo Redentor, começamos o nosso profícuo diálogo.


Thaís: “Por um período não muito grande, você resolveu se isolar de tudo indo morar em um sítio que não tinha luz elétrica, televisão, jornal, apenas um rádio. Como isso influenciou a sua vida? Quando voltou a ter contato direto com a vida urbana houve algum tipo de desespero?”

De fato, ficamos isolados, eu e minha esposa Dorotéa, durante um ano e meio, escondidos dentro de uma casinha no meio da mata, a 1200 metros de altitude, na Região Serrana do Estado do Rio. Não havia vizinhos. Ninguém para conversar. Não havia telefone. Não havia jornais nem televisão. Não havia luz elétrica. Portanto, não havia geladeira e o banho era frio. Havia, sim, um radinho de pilha usado pela Dorotéa para ouvir, de vez em quando, a Rádio Relógio, estação que anunciava as horas, minuto a minuto. Nunca descobri a utilidade dessa informação visto que eu iniciava o meu trabalho no mato assim que o dia clareava e parava, para jantar, antes que escurecesse. As necessidades imprevistas que surgissem depois do por do sol, eram resolvidas com um candeeiro a querosene comprado num brechó.
Nosso contato com gente se dava a cada quinze dias, no mercado da cidade, a vinte quilômetros de distância. Eram encontros efusivos, como se fossemos amigos de longa data.

Aos poucos, nossa vida foi mudando. Descobri que estava em outro mundo. Não havia mais pressa. As coisas começavam quando tinham que começar e terminavam quando tinham que terminar. Não era eu, de olho no relógio, quem decidia: “anda depressa, você vai chegar atrasado; você tem que fazer isso hoje, sem falta, se não ... Não tinha mais nada disso. Eu parava de capinar quando um sabiá começava a cantar perto de mim, e esperava que terminasse. Passava horas, sentado, esperando que um gambá viesse comer a sua banana. Fiquei semanas tentando convencer as formigas a irem comer folhas na mata e poupassem as minhas roseiras.

Logo me acostumei às privações impostas pelo isolamento: banho frio e cerveja quente – aliás, eu já estava acostumado a tomar “cerveja quente” quando das minhas viagens à Alemanha e à Inglaterra. Preparar somente aquilo que se pudesse comer no dia, pois não havia geladeira para guardar as sobras. Renunciar a roupas passadas a ferro - que maravilha! 

– pois não havia ferro de passar, e tantas outras pequenas coisas. Comecei a ver o mundo de modo diferente. As pessoas eram boas, confiáveis e simpáticas. Eu conversava com todos e todos sorriam. Procurei entender por que esse pequeno mundo que me circundava era diferente. Percebi que não tomando conhecimento das notícias sobre roubos, assassinatos, estupros, golpes e sequestros, greves e invasões, acidentes nas estradas, corrupção e desmandos políticos, achaques e depredações, enfim, tudo aquilo que é notícia nos jornais do dia e na televisão da noite, desempenhava um papel importante nesse processo de mudança. A supressão dessas informações por mais de um ano, me haviam transformado num ingênuo. Obviamente, as pessoas não haviam mudado. O que havia mudado era a maneira como eu as via.

A volta ao contato direto com a vida urbana não chegou a criar qualquer tipo de desespero. O contato com as pessoas, apesar de barulhento, compensava, com sua alegria, a perda da serenidade com a qual havíamos passado nossos dias. Claro que o canto dos sabiás e bem-te-vis havia sido substituído por buzinas de carro e o canto noturno das rãs no charco, por uma música funk espalhafatosa saindo das crateras do inferno. Mas o próprio isolamento me havia ensinado a ser mais tolerante com essas perturbações. Lembro-me de que, ao desembarcar pela primeira vez no Rio, depois de tanto tempo de reclusão, as narinas me ardiam ao aspirar o ar poluído. Voltei correndo e permaneci por algum tempo em um bairro pacato ainda na Serra, numa espécie de quarentena. Aos poucos fui retomando a rotina do caos urbano e reaprendi a conviver com ele. Hoje leio jornais e vejo televisão com respeito. E muita cautela.


Thaís: “Atualmente a televisão tenta encaixar cada vez mais as modernidades em nosso cotidiano. Antigamente, nas novelas, não havia uma aceitação de relações inter-raciais e de pessoas do mesmo sexo. Partindo do pressuposto de que a visão da sociedade não é unânime, como você se posicionaria? Acha aceitável ou não?”

A resistência de parte da sociedade à aceitação de relações inter-raciais e de pessoas do mesmo sexo é compreensível pois é fruto da cultura em que cada segmento dessa sociedade foi educado. No meu entender, essa resistência está sendo vencida, a passos lentos, é verdade, mas de modo irreversível e a televisão, mencionada na pergunta, tem um papel importante nesse processo. Quanto a mim, acho perfeitamente aceitável a convivência com essa diversidade, e entendo que a eliminação de preconceitos não será obtida somente com leis, em que pese o papel fundamental que estas desempenham, mas sim através de educação e conscientização. Eu tive a sorte de aprender, ainda criança, a conviver com pessoas de diferentes classes sociais, e de origens étnicas as mais diversas. Sofri, com elas, as agruras do preconceito. Mais tarde, quando surgiram as discussões sobre relações homofóbicas, eu já estava moral e intelectualmente preparado para a sua aceitação. Não posso avaliar a qualidade dos exemplos dados pelas novelas pois não sou um espectador habitual de televisão. Mas arrisco-me a dizer que não creio que sejam muito edificantes.


Thaís: “Considerando as evoluções sociais e tecnológicas, você acha que todo esse avanço foi positivo ou negativo? Se pudesse voltar no tempo e mudar uma característica do mundo atual, qual seria ela?

”Posso dizer que acompanhei as evoluções sociais e tecnológicas durante os 72 anos que me separam do primeiro emprego, aos 12 de idade. Assisti ao desaparecimento de coisas lindas como, por exemplo, as cartas de amor escritas em papel perfumado; as sacolas de papel nos mercados de “secos e molhados”; as cópias termofax, ou fotocópias, que impunham a necessidade buscar no dia seguinte, para gerar o que é hoje uma simples xerox; as máquinas de escrever e a linotipo, aquela máquina gigantesca que preparava as matrizes para imprimir o jornal; os telegramas da Western, via cabo submarino. Eu estava presente quando foi lançada a Coca Cola no Brasil. Vi a primeira televisão em preto e branco, só disponível nas casas mais abastadas.

Assisti à montagem da praia do Botafogo e vi como as enormes dragas cuspiam água e areia para os céus. Acompanhei o desmonte do morro de São Bento serpenteando por entre os caminhões que deixavam ruas e calçadas tintas de sangue do barro vermelho extraído da colina. Conheci os primeiros computadores, que eram do tamanho de uma sala de visitas; mais tarde, quando estes se tornaram accessíveis aos mortais, usei o Carta-Certa, o programa de texto de computador onde você precisava fazer acrobacias sobre o teclado para digitar uma letra que tivesse um acento agudo e exigia o dobro do esforço se tivesse cedilha ou til.

Como poderia eu me opor às evoluções sociais e tecnológicas? Sem dúvida, esse avanço foi positivo. Tenho defendido com entusiasmo o lema proposto por Giuseppe Tomasi di Lampedusa, autor do “O Leopardo”: “É preciso mudar para que tudo fique como está” Essa é a verdade. Se você não muda, você simplesmente não para, você regride. Se pudesse voltar no tempo eu apenas recomendaria que se desse mais atenção ao relacionamento humano. Nas últimas décadas, progredimos em tudo e em ritmo acelerado, menos no que diz respeito à organização do ser humano, quero dizer, da forma como se administram as sociedades. Basta ver a bagunça em que deram o Comunismo, o Socialismo, o Capitalismo... e agora o Bolivarianismo. Cruz, Credo!

N.B. Hoje é dia 12 de julho de 2019. Passaram-se 4 anos desde o nosso Encontro. Causou-me espanto a atualidade do que foi dito na época, especialmente no que concerne à evolução tecnológica, e ao aperfeiçoamento do ser humano. Por outro lado, haveria um mundo de coisas novas a discutir que surgiram neste período, entre elas, as redes sociais, por exemplo. Esperemos que a Thaís volte, um belo dia. Mas, desta vez, ela seria a entrevistada.

21 junho 2019

A Fábrica da Estância



O “Programa de Reaparelhamento da Indústria Têxtil do Nordeste” foi concebido e implementado pela SUDENE – Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, no ano de 1960. O Programa acolheu 61 fábricas distribuídas por todos os Estados da Região. O Programa tinha por objetivo a substituição do equipamento obsoleto bem como o aperfeiçoamento das práticas administrativas visando-se, com isso, um aumento da eficiência global das empresas. Para tanto, além dos adequados serviços de financiamento e utilização de incentivos fiscais, foram oferecidos ao empresariado, entre outras facilidades, um programa de aperfeiçoamento para os administradores bem como um programa de treinamento para a mão de obra fabril, notadamente mestres e contramestres. Por fim, foi elaborado um “Projeto Padrão” que facilitaria, ao empresário, a elaboração do seu próprio projeto de viabilidade econômica e financeira evitando, assim, a custosa contratação de uma empresa especializada. Para completar, a equipe de técnicos do Grupo Têxtil estaria disponível para auxiliar as empresas na elaboração do projeto padrão.

Em Julho de 1963, o Programa havia aprovado 61 projetos de reequipamento. A maior parte deles encontrava-se em execução. Outros em fase de análise. Entre estes destacava-se, no Estado de Sergipe, a Companhia Industrial da Estância. No início de Janeiro de 1964, a equipe de analistas do Grupo Têxtil, embarcada numa Rural Willis, deslocou-se até a Cidade da Estância, para efetuar seu trabalho. Compunha a equipe um técnico têxtil,  (abaixo assinado),  um engenheiro civil, um contabilista e um advogado.
A fábrica da Estância estava instalada em  um  prédio antigo, na borda de uma imensa planície povoada de coqueiros  e bem na margem de um rio. Essa localização se explica pelo fato de que as fábricas, no começo do século passado, recebiam a força motriz proporcionada por uma roda d’agua ou, na melhor das hipóteses, por uma turbina hidráulica.

O cenário era bucólico, mas preocupante. A fábrica estava a poucos metros da margem do rio e o leito do mesmo era cerca de 3 metros mais alto que o piso da fábrica. Acostumado que fui a ver chuvas torrenciais nas cabeceiras dos rios do Nordeste que descem de roldão pelos seus leitos secos e famintos, decidi acautelar-me.
 E se a nova fábrica sofresse uma inundação?  O prédio existente deveria ser substituído de qualquer modo e, portanto, não incorreria em custo adicional.

Reuni o grupo e expus o problema. Decidimos que seria prudente aconselhar o Empresário a relocar a fábrica. Espaço não faltaria.  
O Empresário não aceitou a sugestão. Foi enfático e, decididamente, assegurou que ali não haveria possibilidade de ocorrer qualquer tipo de acidente dessa natureza. E completou: “Ademais, mandei construir uma barragem rio acima, a duzentos metros daqui, que garantirá qualquer elevação no nível das aguas”.  E deu o assunto por encerrado.

Chamei o engenheiro civil e disse-lhe: Vamos visitar a tal barragem”. Tratava-se de uma mureta que, pela conformação topográfica do terreno, não formava propriamente uma bacia de contenção. Qualquer precipitação pluviométrica fora do normal provocaria o transbordamento das águas.
“ Você acha que essa barragem garante o serviço”  ?
“ Sei lá, eu sou engenheiro civil, não entendo nada de aguas.”

A resposta do colega iluminou o meu caminho. Eu também não entendia nada de águas. Mas jamais assinaria o projeto naquelas condições. Por outro lado, eu não podia me opor à aprovação do projeto porquanto eu não tinha um embasamento técnico convincente.
Consultei o grupo e perguntei se alguém estava disposto a assinar o projeto naquelas condições. Resposta negativa.

Foi quando me lembrei que a SUDENE dispunha de um Departamento de Hidrologia que vivia quebrando a cabeça para transferir água pra cá e pra lá, a fim de mitigar a seca no Nordeste. Eu faria um memorando para o Departamento solicitando que emitisse um laudo que garantisse a segurança do prédio da fábrica  naquele local.

Voltamos à base e expedi imediatamente um memorando ao Departamento de Hidrologia historiando o problema e requerendo urgência na ação.  O tempo foi passando.  Não faltaram protestos e reclamações de todo o tipo. Eu continuava firme na minha posição.
Enquanto isso, nosso grupo continuava mergulhado na análise de outros projetos com o mesmo entusiasmo de sempre pois trabalho é que não faltava.

Naquela época o Departamento de Industrialização da Sudene ocupava todo o décimo primeiro andar do INSS, na Av. Dantas Barreto, onde se aninhava o Grupo Têxtil. Não havia paredes divisórias e, portanto, transitava-se entre as mesas dos companheiros de trabalho naquele espaço imenso.
Certo dia, quando levantei a cabeça, vi o meu chefe caminhando na minha direção abanando, freneticamente, um papel. Telegrama Western, pensei.

-  Prepare-se para viajar.
-  O que aconteceu ?
-  A Fábrica da Estância foi inundada !

Eu perdi a fala. Não conseguia acreditar no que acabara de ouvir. Imagens me passavam diante dos olhos como num sonho. A mureta e seu espelho d’água ... o canto dolente da cascata ... o apito da fábrica ..
Não sei quanto tempo se passou. Acordei com a voz do chefe lendo:

-  “Presidência da República  ....  Senhor Superintendente,  Determino   constituir Grupo de Trabalho para estudar os problemas  sociais e econômicos causados pela inundação da Companhia   Industrial da Estância em Sergipe . . .  Você viaja amanhã.

-  “Sinto muito, chefe. Mande outro no meu lugar. Imagine o constrangimento, tanto de minha parte como da parte . . .”

-  “ O que ? Você está dizendo que não aceita ? ”

-  “ Não aceito. Peço demissão.”

-   “ Então você vai explicar isso ao General.

Nessa altura a Sudene estava sob intervenção militar e o Superintendente era um General. Passados alguns minutos recebi um aviso da secretária pedindo-me para apresentar-me na Superintendência, um andar acima do nosso. O General cumprimentou-me de bom humor, provavelmente achando graça da minha  insubordinação.

-  “ Eu soube que o Senhor está se recusando a cumprir uma ordem do seu chefe ”

Fiz um relato de tudo o que se havia passado e expliquei o constrangimento em que eu me encontrava com aquela missão e que, além do mais, para ser franco, eu tinha receio de viajar por estradas ... naquela época ,,, perigosa ,,, o Senhor sabe ,,, né ? ... O General me ouviu pacientemente.

-  “ O Senhor tem toda a razão. Mas viajará com um documento meu.

Ato contínuo chamou a secretária e ditou. Passou-me o documento, desejou-me sucesso e firmeza no trabalho.
Embarquei no dia seguinte na mesma Rural Willis com a qual tinha ido, desta vez levando debaixo do braço meu salvo-conduto, uma Olivetti Lettera  22, e o peso da responsabilidade que eu carregava. Para ver cardas e filatórios cobertos de agua, fios e flocos de algodão flutuando e um monte de operários sem trabalho. Acompanhou-me nessa missão um colega do Grupo, um amigo fiel e abnegado que depois faria carreira na Instituição. Depois de duas semanas de trabalho, entregamos nosso relatório ao Governador do Estado, no Palácio do Governo de Sergipe. Mas esta é uma outra história.


02 junho 2019

O Comício da Central



Depois que abandonei o projeto Narayama, as coisas caíram numa rotina enfadonha. Abandonar a Serra foi muito cômodo e liberar-me do estresse foi um alívio. Alcançar a felicidade irremediável foi simplesmente delicioso. Mas fiquei sem saber o que fazer com ela.

Severino tem aparecido com frequência, trazendo notícias de Cabaceiras onde, diz ele, a política é turbulenta, e ninguém se preocupa mais com o índice pluviométrico do sertão paraibano e suas consequências no cultivo da macaxeira.

As divagações com Severino trouxeram-me à memória tempos longínquos vividos no Recife quando, na SUDENE, (1)  lutávamos pelo desenvolvimento da Região Nordeste. Éramos jovens,  sentimentais e sonhadores. Na medida em que os avanços na Economia prosperavam, nosso fervor patriótico também aumentava e, com isso, não podíamos ficar à margem da política. Por outro lado, a Região Nordeste apresentava um cenário particular: extensos latifúndios com canaviais, engenhos e usinas de açúcar onde o “Armazém” era a peça mais importante do sistema econômico. Era nele que os operários compravam seus alimentos e apetrechos domésticos e, ao mesmo tempo, recebiam o crédito necessário para adquiri-los. É obvio que o sistema funcionava como uma válvula controladora dos salários e, mais, o eterno endividamento  mantinha o operário pregado ao solo que lhe dava o sustento.
Claro que também havia coronéis de bom coração, mas isso dependia do coração dos coronéis.

Eu era totalmente ignorante em matéria de política. Bem que eu havia tentado, no meu tempo de estudante, meter-me nas discussões  com  professores e colegas. Participava de comícios. Nada deu certo. Cheguei a ler Marx e Engels. O máximo que consegui foi chegar até a quarta página.
Não demorei a entender que, com o nome que eu carregava e a cara de gringo que eu ostentava, ninguém me levava a sério. Então, limitei-me a cuidar das minhas tapiocas.

Mas, mesmo sem a minha participação, o Nordeste fervia. Cuba chamava a atenção. Fidel Castro havia expulsado o ditador e, depois de pedir ajuda aos Estados Unidos, sem obter sucesso, aninhou-se na sotaina da União Soviética. Vislumbrava-se um  novo sistema político. O socialismo nos daria uma sociedade mais justa, mais humana, que nos livraria do jugo do capitalismo selvagem.

Ora, se deu que, no dia 13 de Março de 1964 eu saí de Montes Claros, na borda do Polígono das Secas do Estado de Minas Gerais, onde havia passado uma semana examinando o projeto de uma fábrica de tecidos a ser implantada com incentivos da SUDENE.  Desembarquei no antigo Aeroporto do Galeão e tomei um taxi com destino ao Flamengo – Hotel Flórida, onde pernoitaria. Quando nos aproximamos do Centro, o taxi começou a dar voltas por ruelas e travessas. Perguntei ao motorista o         que estava acontecendo. O trânsito estava engarrafado. Fiquei sabendo que havia um comício próximo à Central do Brasil  e que o Presidente da República iria falar. Não podendo chegar ao meu destino, pedi ao motorista que me deixasse ali mesmo. Segui a pé o resto do caminho e, como eu acessei a Praça pelos fundos, isto é, no extremo oposto da imensa área ocupada pela multidão, consegui um lugar bem próximo ao palanque. A poucos metros, bem na minha frente, de perfil, o Presidente João Goulart discursava.

Era preciso efetuar reformas de base. O país não podia continuar dependendo de latifundiários exploradores, do capital estrangeiro que remetia lucros enormes para o Exterior, e tantas outras iniquidades. Era urgente efetuar a reforma agrária, a tributária e a eleitoral. Algumas medidas já haviam sido tomadas por decreto, entre elas a desapropriação das refinarias de petróleo. Outras se seguiriam como, por exemplo, a regulamentação do preço extorsivo dos apartamentos e residências desocupadas.

De volta ao meu hotel, dormi um sono conturbado. Por mais que eu me esforçasse por entender de política econômica aquilo me enchia de dúvidas. E cuidei de voltar às minhas cardas, maçaroqueiras e filatórios, que tornariam as fábricas mais produtivas.

No dia 31 de Março circulou um boato que apimentou a conversa nos botequins e, principalmente, no 12º andar do Edifício do INPS, onde funcionavam os escritórios da SUDENE, considerados um reduto de comunistas: um certo General Olímpio Mourão estava aquartelado com sua tropa em Juiz de Fora, pronto para marchar sobre o Rio de Janeiro. Todo mundo achou graça.
No dia seguinte, nas primeiras horas da manhã, eu tinha uma reunião com o Grupo Têxtil, e começamos nossa rotina de trabalho. Ninguém se lembrava mais do boato da véspera.
Por volta das 10 horas começamos a ouvir um ruído de motores que aumentava gradativamente. Corremos até as janelas. Não se via nada, mas o barulho ficava cada vez mais forte. Subimos até a cobertura do edifício. Dalí podíamos ver o Palácio das Princesas,  sede do Governo do  Estado, ocupado por Miguel Arraes.

Tanques de guerra e veículos militares cercavam o Palácio. Soldados bloquearam a entrada da SUDENE. Quem estava dentro não podia sair. Quem estava fora podia entrar e fazer companhia aos que estavam dentro. Miguel Arraes foi preso. Celso Furtado, Superintendente da SUDENE, foi convidado a continuar no cargo mas não aceitou. Consta que teria dito ao General interventor:
“ Não vou aceitar, e o Senhor será responsável por ter destituído um Governador eleito legitimamente pelo povo “.

O Comandante da 4ª  Região Militar, com Sede no Recife, era o General Justino Alves Bastos.
Como interventor  da SUDENE foi nomeado o General da Reserva Expedito Sampaio, que seria depois substituído por João Gonçalves de Souza, um civil que vinha do setor agrário.
Antes de deixar a SUDENE, o General Expedito Sampaio declarou: “Disseram-me que a SUDENE era um antro de comunistas, mas eu encontrei aqui gente honrada e dedicada ao trabalho”.

Os primeiros dias foram terríveis. Veículos militares cruzavam as ruas  com sirenes estrepitantes, muitas vezes carregando homens algemados na carroceria. Colegas com quem dividíamos o trabalho eram presos. O clima, no ambiente de trabalho, era de medo. Não se podia confiar em ninguém. Nas Faculdades, se algum professor lhe apontasse dedo e dissesse: “ subversivo - retire-se da classe ” , você seria expulso e nunca mais poderia se matricular em qualquer Faculdade. Muitos colegas, que nunca se envolveram com política, foram denunciados injustamente por desafetos e rivais que se aproveitavam da situação para auferir vantagens.

Nossa equipe trabalhava com redobrado esforço. O Grupo
Têxtil fora constituído  em conjunto com o BNB – Banco do Nordeste do Brasil e recebera a incumbência de formular um programa de reequipamento para a indústria têxtil do Nordeste, com inclusão do Polígono das Secas. Uma pesquisa realizada pelo Departamento Industrial da SUDENE havia constatado que a fabricação de tecidos, apesar de preponderante na economia da Região, possuía um parque de máquinas inteiramente obsoleto. A empresa que quisesse aderir ao Programa receberia incentivos da SUDENE, tais como isenção de taxas para importação de máquinas, abatimento no imposto de renda utilizado nas inversões, bem como financiamento, por parte do BNB para as inversões fixas e capital de giro. A equipe daria assistência às Empresas na elaboração do projeto. As máquinas substituídas seriam obrigatoriamente sucateadas para evitar que se formassem novos focos de obsoletismo.
O Programa foi bem sucedido. Dezenas de fábricas foram modernizadas. A equipe foi treinada para a análise dos projetos e foram ministrados cursos  para o treinamento da mão de obra. Um exemplo foram as apostilas dos Cursos de Contramestre de Fiação e de Tecelagem. A OIT – Organização Internacional do Trabalho,  solicitou à SUDENE permissão para divulgá-las em outros países.

Quanto às fábricas que aderiram ao Programa, existem muitas dignas de estudo. Mas uma delas se destaca: A FÁBRICA DA ESTÂNCIA, em Sergipe. É dela que pretendo falar. Assim que puder.





(1) A SUDENE – “Superintendência do Desenvolvimento do    Nordeste”  era um órgão do Ministério do Interior criado para essa finalidade. Dirigida pelo economista Celso Furtado, formou uma equipe de servidores dedicados que trabalharam com entusiasmo pela causa. Entre os vários programas realizados destacou-se o “Programa de Reequipamento da Indústria  Têxtil”.   


17 maio 2019

Irremediavelmente Feliz



O sino de bronze que uso para saber se alguém quer falar comigo repicou com badaladas mais insistentes do que o normal no final da tarde de ontem. Uma neblina tímida cobria o Vale do Cônego inaugurando a chegada do Outono. Encaminhei-me, trôpego, até o portão, tentando adivinhar quem seria, tão apressado, àquela hora.

Severino Mandacaru, esquálido como um arbusto na caatinga, não esperou que eu lhe desse passagem. Empurrou-se portão adentro e começou a farejar as ferramentas que, salvo melhor juízo, constituem a minha oficina.

-    “Severino ! Você aqui ?”

-    “Que diabos veio fazer aqui sem avisar ninguém, seu  galego safado ? ”

-     “Vim dar uma olhada no bambuzal, Severino. Achei que era tempo de rever a Montanha de Narayama.” 

Nesta época do ano uma neblina rasteira cobre o vale do Cônego, aqui em Nova Friburgo, deixando expostos os picos que o cercam, entre eles, o Chapéu da Bruxa. É impossível mostrar indiferença a um cenário tão expressivo. Quando cai a tarde, sentado num tronco qualquer, eu começo a perceber os anciãos se reunindo em volta do Pico. São os Deuses que formam  o Sagrado Conselho de Narayama. São eles que vão decidir quem está apto a subir a Montanha e expedir a devida orientação aos participantes.

E comecei a refletir: Esses são os Deuses de Narayama, que existiam quatro séculos atrás, numa região indigente, com uma população dizimada pela fome, onde uma boca a mais para comer podia decidir a sobrevivência da família. Esses não são os meus Deuses. A subida espontânea a Narayama, por mais justificada que fosse, configuraria um suicídio.

Expliquei isso ao Severino, poupando os detalhes, mostrando-lhe a gravidade do gesto perante as leis naturais do Cosmos, pelo menos para quem, como eu, acredita em vida no Espaço Sideral. Severino ouviu em silêncio.

-  “ E aí ? ”

-  “ Aí veio a isquemia.”

-  “ E que diabos quer isso dizer, Galego? ”

- “A isquemia foi um aviso mandado pelos meus Deuses.  Foi como se dissessem: Fique quieto aí. Nada de enxadas, pás e picaretas. Esqueça Narayama. Esqueça os bambus e seus saleiros. Esqueça os troncos pesados e os bancos feitos com pranchas grossas. Não levante mais muralhas de pedras roladas, sente-se e ouça o lamento jacu e o canto os sabiás, contemple as montanhas e o horizonte, o brilho da lua cheia e as pinceladas desastradas do sol poente na tela do firmamento.”

Severino me contemplava em silencio. Olhou mais uma vez, demoradamente, para as minhas ferramentas e voltou-se para o Chapéu da Bruxa. Baixou os olhos. Parecia triste. Apertou-me fortemente num abraço demorado e sumiu no oco do mundo. Deixou uma lágrima na minha lapela.

  E a minha vida mudou. Meu corpo ficou pesado. A cabeça parecia postiça. Os braços pareciam pêndulos. Exames médicos, radiografias, tomografias e tempo. Muito tempo. Aos poucos fui recompondo a carcaça, agora maltratada pelos anos que não gastei no seu devido tempo. Preciso mudar tudo. Tratarei de eliminar as causas do meu estresse. Primeiro vou limpar o quintal social; depois cuidarei do resto. Controlar os sentimentos, avaliar  emoções, resolver medos e ansiedades, recuperar a fé, mergulhar na espiritualidade. São coisas que virão a seu tempo.

                      Começo com o cancelamento da assinatura do meu jornal quotidiano. Parecia simples mas me exigiu dias e dias de negociação com uma educada porém melosa atendente, num telefonema no qual falávamos idiomas diferentes. Quando, depois de inúmeras desculpas infrutíferas lhe expliquei que ela me cobrava uma taxa para ler as notícias que eram justamente a causa do meu estresse, a empresa começou a reduzir a mensalidade – por tempo limitado, é claro. Desesperado, apelei para um último argumento: disse-lhe que não enxergava mais nada, que não podia ver as letras estampadas no jornal. A moça demorou para responder. Parecia estar pensando. Mas logo veio com uma pérola: “Eu só não consigo entender porque o senhor não está enxergando mais nada.”  É triste ver o que essas pobres moças são obrigadas a fazer para ganhar a vida.
                       Não irei mais a essa coisa chamada “Reunião de Condomínio”, esse encontro de vizinhos que deveria ocorrer para administrarem seus interesses e disciplinarem seu comportamento e, no entanto, se transformou num campo de ofensas e agressões. Passei uma Procuração para um meu vizinho civilizado, torcendo para que ele resista e não siga o meu caminho.

                         Reduzi a televisão a dois ou três canais culturais. Não só pelas notícias deletérias que me trazem mas, também, pela massa incontrolável de publicidade veiculada por este mundo mercantilista em que vivemos. É ridículo ver um anúncio pronunciado em velocidade acelerada mecanicamente, até porque fica óbvio que o objetivo foi reduzir o custo do anúncio. Tinha razão Karl Marx quando desse: “A Televisão é o ópio do Povo” Como, não foi ele quem disse isso? Então eu estou plagiando a mim mesmo!

                           Vou desistir da Fórmula 1 porque tem sido estressante ver que a Ferrari não consegue ganhar uma corrida há tanto tempo. Ela foi campeã por sete anos consecutivos mas isso foi há muito. Naquele tempo, como legítima Escuderia italiana, ela contava com os melhores diretores:  como diretor de projetos,  Adryan Ney – um inglês ; como diretor de provas, Ross Brawn, outro inglês; como diretor geral, Jean Todd, um francês. E, para finalizar, o piloto, Michael Schumaker, um alemão. Tutti brava gente.

                           Para quem atingiu a minha idade, não faltam motivos para o estresse. O mundo digital é avassalador. Usar os serviços de um banco, por exemplo, era muito simples. Eu fazia isso pela internet, ou pelo telefone, usando meus dados pessoais e uma senha. Agora não. Eu preciso de um aplicativo, a senha do aplicativo, o complemento do aplicativo e sua respectiva senha que deve ser diferente da primeira. E ainda devo provar que não sou um robot e adivinhar aquelas letras idiotas e desfiguradas que não consigo decifrar em menos de três tentativas.

Na calada da noite, reflito. Vem-me à memória o trabalho, a família, os amigos, os montes, vales e lagos por onde ande andei. A vida nas fábricas, o sofrimento dos operários. Os projetos que construí. A ausência da família nas longas viagens ao Exterior. A infância minguada e as noites de “blecaute” durante a guerra.         E três ou quatro crônicas que me orgulho de ter escrito.  Então, fazer o que?  Não me resta outra alternativa :

Ficar irremediavelmente feliz.