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. . "O meu primeiro e virginal abrigo". . . Estou recuperando os meus fantasmas. Sem eles eu não dormiria direito.
Com eles subirei a montanha de Narayma e deles estarei cercado quando chegar o
sopro Sideral. Entre eles estarão . . .
. . . OS ENVIADOS DE DEUS
Um desconhecido leitor escreveu um comentário sobre a minha “compostagem”(1) intitulada “O FALSÁRIO”. Segundo ele, " o homem das sobrancelhas
grandes era um “enviado de Deus”. Nesse comentário, ele faz uma análise
psicológica (deve ser do ramo) do bom velhinho e de como ele interpretou o
comportamento da criança e do tipo de castigo aplicado: fazer com que ela mesma
sentisse vergonha do seu comportamento e, assim, emendar-se. O repúdio, o
afastamento, a humilhação, a execração poderiam, nesse caso, resultar na
formação de uma criança revoltada e inutilizada para o resto da vida."
Reconheço que estou me intrometendo em terreno que não conheço. Nunca estudei psicologia. Posso estar dizendo bobagens.O fato é que o comentário me impressionou. Não vou reproduzi-lo aqui, mas, recomendo que o leiam.
Reconheço que estou me intrometendo em terreno que não conheço. Nunca estudei psicologia. Posso estar dizendo bobagens.O fato é que o comentário me impressionou. Não vou reproduzi-lo aqui, mas, recomendo que o leiam.
Refletindo sobre o assunto
lembrei-me de outras situações difíceis em que fui ajudado por pessoas generosas que, mesmo sem me
conhecerem, me tiraram das dificuldades. Uma dessas pessoas foi, sem dúvida, o
Professor Rocha. Rocha era professor de inglês.
Em 1948 o Governo Federal, em convênio com o Senai, criava no Rio de
Janeiro a Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil destinada a
formar técnicos para a indústria têxtil de todos os Estados do país. A cada
Estado foi atribuído um número de vagas proporcional ao tamanho de sua
indústria têxtil. Pernambuco recebeu cinco vagas. Seria feita uma prova de
seleção em cada Estado
e os aprovados seriam enviados ao Rio. A escola oferecia alojamento e pagava
todas as despesas de viagem. Uma vez no Rio os alunos seriam submetidos a novo
exame para que se efetivasse a admissão. Os reprovados receberiam a passagem de
volta.
Eu estava concluindo o curso industrial básico (que equivalia ao ginasial)
de Mecânica de Máquinas na Escola Técnica do Recife, também da rede federal e
também como aluno interno. A escola ficava no Derbi (o prédio ainda está lá)
bem na margem do Capibaribe, flanqueada por duas enormes figueiras (não estão
mais lá) nos fundos da Maternidade do Derbi e ao lado do Necrotério Municipal.
Assim, eu me acostumei a ouvir, durante a noite, os gritos desesperados das
parturientes (naquele tempo não se faziam cesarianas a não ser nos casos de
emergência) e, durante o dia, a acompanhar os cadáveres de indigentes,
criminosos, suicidas e todos quantos não morriam de morte natural quando,
depois da autópsia, eram enfiados nas gavetas do frigorífico do Necrotério. Nas
noites de sábado ia ao cinema do Quartel (creio que era da Polícia Militar pois
a farda era cáqui) situado na extremidade da Praça do Derbi. Era de graça. O
médico da Escola era o Dr. Hilo Lins e Silva a quem coube salvar minha vida em um
acidente que sofri durante uma prática nas oficinas.
Encerrado o curso de mecânica, em Novembro de 1947, o diretor - Manoel
Vianna de Vasconcellos – (espero não ter errado na grafia do nome) mandou-me
chamar e informou-me sobre o curso que estava sendo criado no Rio. Se eu
quisesse continuar estudando sem custo, não haveria oportunidade melhor.
Resolvi enfrentar a prova de seleção. Eu tinha medo. No ginásio os alunos
estudavam latim, inglês, até poesia se ensinava lá. No curso industrial não
tínhamos nada disso. Eu não tinha como competir com os ginasianos. Preenchi o formulário de inscrição com mão
trêmula. A prova foi realizada no Colégio Marista que ficava na Boa Vista. Uma
multidão se acotovelava no pátio imenso. O meu terror aumentou quando comecei a
ouvir a conversa dos candidatos, todos mais velhos do que eu. A maior parte já
havia concluído o curso científico e muitos deles faziam curso superior. Cinco
vagas! Enfrentei a prova aterrorizado.
Quando a notícia chegou eu estava ralando milho verde para uma canjica,
com as mãos bastante esfoladas. Eu estava entre os cinco. Muitas lágrimas se
incorporaram ao milho ralado e, talvez por isso, a canjica nesse dia tenha
ficado tão saborosa. Devorada a canjica, mergulhei no estudo, preparando-me
para o exame de admissão.
Em Fevereiro de 1948 embarquei, deslumbrado, num DC3, no que seria minha
primeira viagem de avião. Do Recife ao Rio durou 8 horas. Lembro-me das
escalas, mas não de todas: Maceió, Aracaju, Salvador, mais uma ou duas, Canavieiras,
Cabrália, Vitória, Ilhéus, mais uma ou duas e, finalmente, Rio de Janeiro.
Ficamos alojados num casarão em São Cristóvão , na Rua Bela. (será que ainda tem
esse nome?). O bonde, curiosamente, tinha o mesmo número do da Vila Maria: 34
que fazia ponto final na Praça Tiradentes. O nome da linha? Alegria. Seu Alfredo,
embalsamado em um par de calças risco de giz, uma jaqueta preta de lapelas
lustrosas e gravata borboleta, também preta, servia as refeições. Podia-se
comer à vontade. Tudo muito chique. Pela manhã eu acordava com o cheiro do café
e do pão fresquinho. A Escola ficava no bairro do Riachuelo, na linha da
Central, quando o morro do Jacarezinho não passava de um bucólico e pacífico
aglomerado de casebres com telhados de zinco.
Eu estudava como um fanático já que iria competir com alunos que vinham
de todos os Estados do Brasil. Não podia falhar. Mas, desta vez, a conversa com
os colegas me tranqüilizava, pois eu podia avaliar o nível em que se
encontravam e me sentia seguro. Entrei na prova calmo e confiante.
Classifiquei-me entre os cinquenta candidatos. Seis foram reprovados e voltaram
para os seus respectivos Estados. Os 44 alunos que formaram a primeira turma de
técnicos têxteis na Escola Técnica Federal de Indústria Química e Têxtil foram
matriculados por ordem de classificação no exame de admissão. O meu número de
matrícula foi 1.
As aulas se iniciaram com o edifício da escola ainda em construção. Não
havia portas nem janelas. Muitas vezes a aula tinha que ser interrompida por
causa do barulho das betoneiras e serras circulares. Meu fervor pelo estudo era
renovado a cada dia pelo cheiro das máquinas novas que eu aprendia a montar nas
oficinas da fiação. A expectativa da chegada dos teares me deixava eufórico.
Foi aí que um fato perturbador
veio tirar-me a paz. No curso havia a cadeira de inglês a qual não havia sido
preenchida, até a metade do primeiro semestre, por falta de professor. No curso
industrial, de onde eu vinha, não havia aula de inglês. A única palavra que eu
conhecia era “camoni-boi” que havia aprendido na Vila Maria quando brincava de
faroeste e, mesmo assim, não sabia o que significava. Todos os demais alunos
vinham dos cursos ginasial e científico. Alguma coisa sabiam.
Pela metade do semestre chegou o Professor Rocha. Mostrou-se logo uma
pessoa simpática, sempre alegre e grande contador de histórias. Era irmão do
Carlito Rocha, treinador do Botafogo, que gozava de imenso prestígio no futebol
brasileiro.
No primeiro dia de aula, Rocha explicou: “Como perdemos mais de dois
meses de aula eu vou fazer uma avaliação do nível em que vocês se encontram e
começarei as aulas por aí.” E assim foi, para meu desespero. Eu não entendia
nada.
Chegado o fim do semestre foi aplicada a “prova parcial”. Naquele tempo
existia uma prova parcial, no fim do primeiro semestre, e uma prova final, no
fim do segundo semestre. A nota para a promoção de ano era uma média das duas.
Entreguei minha prova praticamente em
branco e fui chorar escondido.
Na aula seguinte, Rocha chegou com as provas, distribuiu a cada um a sua,
e começou a ler as respostas corretas para que cada um comparasse com o que
havia feito. No topo da prova, dentro de um círculo, a nota de avaliação.
Quando recebi a minha prova fiquei perplexo, sem poder acreditar. Um 7
claro, inequívoco, firme, sem vacilação. Permaneci mudo, os cotovelos sobre a
banca, a cabeça entre as mãos, contemplando o professor. Ele me olhava, de vez
em quando, sem bater pestana. Esperei que todos saíssem para devolver minha
prova, com a mão trêmula de emoção e a voz embargada:
-- " Professor, muito obrigado. "
Entregou-me um maço de folhas soltas. Eram exercícios. E, segurando meus ombros com ambas as mãos para manter-me
na linha de eixo de suas palavras, disse-me, com olhar firme:
-- " Não tenha medo, menino. Estuda que você passa. "
(1) Compostagem - Método usado pelos camponeses para produzir
adubo orgânico, principalmente nas
pequenas propriedades. Consiste em
aproveitar os resíduos vegetais oriundos de capinas, podas, desbastes, etc.
formando pilhas as quais, através da ação de microorganismos existentes na
terra, fermentam, decompondo o material de tal forma que o transformam em um pó
escuro, fácil de manusear e de cheiro agradável. Durante a fermentação, que
ocorre espontaneamente, a temperatura interna da pilha pode alcançar até 80º
centígrados. Uma pilha de composto leva mais de um ano para ficar pronta. Minhas
compostagens também. E minha cabeça passa dos 80º C.