25 maio 2017

O SENSO DO DEVER



Uma história da vida real

Rio Branco Fabril S.A. é uma empresa têxtil de médio porte. Como a maior parte das empresas do ramo têxtil no Brasil, é uma empresa de estrutura familiar. É dirigida por um Conselho Administrativo formado por três irmãos, um dos quais, na realidade, é uma irmã:  Mafalda. Ela é Presidente do Conselho. Enérgica, autoritária e de poucas palavras, ela é responsável pela área técnica e dirige o seu setor com mão- de- ferro.  Sob seu comando direto está o Roberto que exerce o cargo de Diretor Técnico. É ele quem organiza a estrutura das gerências em que se divide a fábrica: Produção, Vendas, Compras, Pessoal, Fiação, Tecelagem, Acabamento, Expedição e muitos etcetras.  Por fim,  temos o Arthur, que comanda uma dessas Gerências. Sem grandes brilhos, é um funcionário dedicado, pontual e muito apreciado por seus colegas.
Como qualquer empresa do ramo, das chamadas  “ mão-de-obra intensiva”, a Rio Branco trava uma batalha diária na luta pela competitividade: reduzir custos. É deles que depende a sobrevivência da empresa. E essa é a principal responsabilidade do diretor técnico: o nosso Roberto.
Roberto é um executivo exemplar. Ele sabe que precisa de pulso firme se quiser obter resultados. Do faxineiro ao gerente, todos os dependentes devem ser treinados, orientados, motivados e ...  fiscalizados.  Para deixar claro o seu papel, Roberto criou um mote, que alardeia por entre as máquinas, a título de advertência: “Empresa não tem alma”.  Quando reunia seus  gerentes, ele começava:

 Roberto –“ Não se iludam, companheiros, empresa não tem alma. Prestem atenção ao serviço! Tem que trabalhar direito! Empresa não tem coração, empresa só tem cérebro.”

Pois um dia, o dia chegou. A fábrica perdia competitividade. As vendas caiam. Os concorrentes começavam a incomodar. Era preciso fazer uma reestruturação. Roberto reformulou produtos, simplificou operações, remanejou funções. Resultado: sobraram gerências. O que significava extingui-las. Demitir gerentes. É assim mesmo.  “Empresa não tem alma”.
Entre elas está a gerência do Arthur. Roberto o conhece bem. Funcionário  exemplar,  competente,  afável  no trato com os companheiros, não havia nada que pudesse justificar sua demissão.  Mas a gerência dele não existe mais.  Ele está sobrando, ponto final. Tem que ser demitido. Arthur chegou aos 48 anos, idade na qual, segundo a tradição administrativa que herdamos dos norte-americanos, o executivo deve ser defenestrado. ( ao contrário do Japão onde, nas empresas, “ninguém é nada antes dos sessenta anos” ). O executivo que perder o emprego perto dos cinquenta anos de idade terá que sair à cata de outro com o cuidado de não dizer “estou   desempregado”. Ele terá que dizer:  “estou no mercado”. 
Arthur se notabilizara não só pela sua competência  técnica mas também pela fertilidade de sua esposa  que correspondera à pujança do marido contemplando-o com oito filhos. Oito! Uma escadinha etária cujo primeiro degrau beira os seis anos e o último alcança os umbrais da universidade.

Um sentimento de piedade começa a abalar o nosso valente Roberto. Aquelas oito almas não lhe saem da cabeça. O que seria daquela família com o pai desempregado? Ainda mais um técnico que só sabe fazer pano?  Roberto começa a fraquejar. Seu conflito aumenta.  Se não demitisse o gerente esvaziado estaria traindo a empresa a que serve e isto o deixaria desonrado profissionalmente. Sentia-se mal até porque o posto que ocupava era um posto de confiança. Roberto brigava com a razão. Mas o coração prevaleceu. Não iria deixar oito almas desamparadas. E resolveu o problema de forma que lhe pareceu racional: criou um apêndice junto à gerência de controle de qualidade, mantendo, portanto o seu status, com o título de “Setor de Acompanhamento de Atividades E1speciais”, reportando-se diretamente ao Diretor Técnico.

Em paz com a sua consciência, nessa noite, Roberto dormiu o sono dos justos.  No dia seguinte chamou o Arthur e,  para não lhe criar criar um constrangimento, não falou em demissão mas apenas em  “ remanejamento “.
Roberto – “Arthur, com a reorganização da fábrica a tua gerência foi extinta. Você passa para um setor especial com todos os teus direitos garantidos, inclusive teu status hierárquico”. 
Arthur – “ Ainda bem, né, chefe. Não se fala de outra coisa a não ser das demissões”.
Roberto --  “Aqui está o teu novo “job  description” . Se tiver alguma dúvida me procure. Ah, mais uma coisa, você continua na mesma sala, viu? Isso vai evitar fofocas.”
Missão cumprida e bem executada. A paz invade o coração de Roberto, orgulhoso de sua boa ação embora tendo cometido um pequeno arranhão na fidelidade que deve à sua empresa.
Passaram-se os tempos, mas não muitos. O trabalho seguia, em plena harmonia, perseguindo seu objetivo primordial: cortar custos. Um dia nosso generoso Diretor Técnico é chamado ao gabinete do Conselho Administrativo. É recebido por Mafalda, Presidente.  Curto e grosso:
Mafalda – “Senhor Roberto! Fique sabendo que a minha empresa não está aqui para sustentar vadios. O Arthur veio aqui me dizer que está se sentindo ocioso no lugar que ocupa. Que diabo você andou fazendo?
Perplexo, Roberto começa a gaguejar:
Roberto – “Mas, como? ... O Arthur?...  O que acc...acccc...aconteceu?  O Arthur...  a  reestrut.... eu fiz uma reorg ... Ele disse isso?”
Mafalda – “Eu não quero explicações. Eu quero soluções! E rápido. Pode sair”.
 Roberto saiu cabisbaixo, trêmulo, tropeçando nos próprios sapatos. Não podia acreditar. O Arthur! Oito filhos. Chegando aos cinquenta anos.  Fazendo pano. Aquela anta! Roberto chegou na sua sala e desabou na cadeira. Estava lívido, de uma lividez transparente pela qual se podia ver a sua alma sofredora. Mandou chamar o Arthur.
Roberto --  “Arthur... Arthur... como é possível ... você Arthur... você ocioso... Foi dizer isso para minha chefe, Arthur?  Que está ocioso, Arthur? Foi dizer isso pro patrão, Arthur?.  Ficou maluco?  Com cinquenta anos? Com oito filhos,... onde você está com a cabeça, Arthur,... fazer  uma besteira dessas  Arthur, o errado aqui sou eu, você não tinha nada a ver, .... nem a hierarquia você respeitou....  Arthur, que diabo você fez, Arthur ......  Onde já se viu ?!!!  Oito filhos!!!!  Fala, Arthur! ...  Fala, ... fala... fala, ... abre a  boca,  infeliz! ...  ... ...
  Arthur? ... Arthur?.....  Você está demitido ... Arthuuuuur.”


5 comentários:

  1. Que é feito do Severino Mandacaru ?

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  2. Existem poucos Robertos, mas Arthurs sobram mundo afora.

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  3. Reforço a opinião do amigo Guilherme, realmente sobram Arthurs, e faço uma breve análise sobre o comportamento de ambos (Roberto e Arthur), ou melhor, dos Robertos e dos Arthurs. Normalmente nas decisões gerenciais existe pouca sensibilidade por parte do time para entender as verdadeiras razões que permeiam uma atitude e não falo sob o ponto de vista técnico, de custeio ou algo material, mas exatamente como, no bem elaborado texto do Luigi, sim, digo do ponto de vista emocional, sentimental, passional até, ou seja, a equipe, no seu todo, não consegue compreender os motivos de dadas decisões e termina chegando a opiniões equivocadas ou cometendo erros grotescos em função de tal. Falta-lhes visão holística.
    Mas isto não é característica exclusiva do time, pois aos gerentes faltam-lhe sensibilidade humana também e eis as razões de tentos gerentes maus, que olvidam o verdadeiro capital das empresas: o ser humano, sim, este mesmo.

    Publiquei um texto no linkedin em 2016 que fala sutilmente sobre esse perfil de gerente, se puderem ler, segue o link.

    Um abraço.

    https://www.linkedin.com/pulse/idade-da-pedra-carlos-abel-costa-santos/

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    1. Prezado Carlos:
      Obrigado pelo seu comentário, muito esclarecedor, e que complementa a minha história. A história é real. Aconteceu em uma das fábricas que dirigi. Obviamente, a atitude do Arthur foi desastrada. Mas eu não me arrependo do que fiz. E o fiz pelos filhos do Arthur. A Empresa era suficientemente grande. E o meu conflito razão/coração não era menor. Venceu o coração.
      Vou ler o teu texto no Linkedin.
      Abração. Luigi

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