21 dezembro 2015

Natal Tropical


O Natal chegou. É preciso comemorar. O trânsito já está confuso. Gente apressada correndo de um lado para outro. Comprar presentes, visitar amigos e parentes que ficaram esquecidos o ano inteiro, reservar ceias em restaurantes lotados, levar as crianças ao shopping para tirar fotos no colo do Papai Noel, “aquele barbudo embalsamado dentro de um macacão  vermelho”, como diria o Severino Mandacaru.   E isto a quarenta graus celsius. Credus!  A televisão nos incita e nos deixa com sentimento de culpa. Como, ... você não vai festejar?

Vou festejar sim, e quero ter minha família e meus amigos comigo. Mas, este ano, quero uma festa diferente. Quando, ao descer a serra, vejo aquela neve de algodão flutuando sobre galhos de pinheiro que nunca vi, ao sol de quarenta graus, aquele gorducho com olhar desapontado   porque não encontra em mim o deslumbramento consumista que faria a alegria do seu patrocinador, sinto-me encurralado. Nada tenho contra os festejos do Natal tradicional, enlatado, com seus panettones, seus vinhos espumantes e seus perus recheados. Mas este Natal quero que seja diferente: quero festeja-lo com um bolo tropical que adaptarei  de um doce muito conhecido no Nordeste, feito de massa puba.

 E darei ao meu Natal a cor verde do mar do Cabo de Santo Agostinho, o vermelho do pôr de sol no Rio São Francisco e o prateado da lua refletida no Cais do Apolo. E quero compartilhar com meus amigos e meus incautos leitores o conceito de Natal proposto pelo meu amigo poeta Wanderlino Teixeira Netto:



“NOEL TROPICAL”
                                                     Wanderlino Teixeira Netto


“Enfeitarei com bolas de bexiga meu pé de angico
plantado lá no fundo do quintal.
Não virá, neste Natal, Noel, aquele tal:
gordo, patusco, bem nutrido .

O que há de vir é nanico, endividado, sofrido,
sem gorro na cabeça chata,
de bermuda, camiseta e alpercata.
Em vez da alva barba, a boca em caco
e um balaio, não o saco.

Haverá Sol em lugar da neve de algodão
e os sinos não badalarão neste Natal:
os sons serão de berimbau!

Nada de castanhas, nozes, avelãs e vinhos de outros cais,
apenas aguardente e frutos tropicais!”
Vejam só: Noel virá de jegue, não de trenó!

Até nem será Noel quem virá neste Natal,
mas Severino e Ribamar, e Juvenal e Zé...
que hão de dispensar a sorrateira chaminé!”




19 julho 2015

Reformas e Crises



Reformas e Crises

                                                                                     Gastão, rei dos vagabundos
                                                                                     Não teme crise ou desgraça
                                                                                     Pois só deposita seus fundos
                                                                                     No melhor banco da praça

                                                                                                                  Orlando Brito                                                                                                                                                                                                                      
                                                                            
Gastamos rios de tinta e toneladas de papel – para não falar dos milhões de bites e baites que são evaporados nas telas dos computadores – para discutir a reforma política no País.  A reforma política não vai mudar nada. Nas condições em que estamos, o Brasil precisa de uma reforma administrativa. O que vemos hoje é uma degradação contínua nos serviços da administração pública e uma deterioração crescente na produtividade da empresa privada.
A complexidade da legislação tributária, das normas ambientais, das normas para o comércio exterior, das regras de postura, da legislação trabalhista e da necessária, porém precipitada “inclusão digital”, afetam seriamente a produtividade da economia como um todo. Um emaranhado de leis herméticas que mudam a toda hora, afeta seriamente a gestão no setor privado, sobretudo na pequena empresa. Perguntem a qualquer quitandeiro quanto ele gasta na compra do “software” que é obrigado a usar  para atender  ao controle fiscal, quanto paga para atualizá-lo, quanto paga pela licença de operação e quanto paga   pela banda larga,  ridícula até no nome, pela estreiteza dos seus serviços. Pergunte, também,  se o seu Contador consegue se manter em dia com as tabelas do imposto – o ICM, a substituição tributária e o escambau - que a birosca  deve recolher.

É sabido que administrar um país envolve, entre outras coisas, definir  prioridades entre os setores da economia que o levarão a alcançar um determinado  produto  -  que os economistas chamam de “interno” e “bruto”. Nessa definição haverá conflito de interesses entre os diversos segmentos da sociedade. Portanto, será preciso partir de regras pré-estabelecidas, fixadas pelos poderes Legislativo e Executivo que, por sua vez, deverão contar com pessoas  de bom senso,  competência técnica e retidão moral para definir o que é de quem.

Então vejamos um pouco do que foi feito: nossas cidades estão entupidas de automóveis que são utilizados por pessoas  para os mais diversos fins: trabalhar, levar crianças à escola, ir à praia no domingo, ao hotel fazenda no fim de semana ou tomar sorvete na esquina. Um  carro médio  pesa novecentos quilos. Daí que precisamos gerar energia suficiente para deslocar novecentos quilos e,  com essa energia, transportar de oitenta a, no máximo, trezentos quilos de gente. O trânsito, em qualquer cidade grande,  é caótico e os engarrafamentos  além de representarem um custo elevado pela perda de tempo  estão produzindo cidadãos neuróticos e famílias desequilibradas. E o que fez o Governo?  Concedeu isenções fiscais à indústria automobilística e reteve o preço dos combustíveis.  Ao mesmo tempo, estimulou o crédito para a compra de carros novos com taxa de juros zero. O automóvel que temos hoje, sedutor com sua curvas sensuais e parafernália eletrônica, é, na realidade, um meio de transporte obsoleto.  No entanto, todo o esforço do Governo foi dirigido para a produção de combustíveis fósseis e pouco se fez na pesquisa de fontes alternativas de energia.

E, por falar em crédito, convém examinar como funciona essa grande  praga da economia, imanente ao sistema capitalista. É obvio que o crédito ao consumidor estimula o consumismo desenfreado. Estava certo o Carlinhos Marx quando previu que o exacerbado consumismo do sistema capitalista levaria  a desordens sociais. E quem chamou a atenção para isso, algum tempo atrás,  foi  ninguém menos do que o sociólogo Zygmunt Bauman  ao analisar os violentos  distúrbios ocorridos na outrora disciplinada cidade de Londres. Segundo noticiaram os jornais, Bauman afirmou  que  “as imagens de caos na capital britânica nada mais representam que uma revolta motivada pelo desejo de consumir, e não por qualquer preocupação maior com mudanças na ordem social.  Londres viu os distúrbios do consumidor  excluído e insatisfeito”. Foi o que ele disse.
Mas, e o crédito? O que tem a ver com as crises? Todos se lembram da enrascada em que se meteram os Estados Unidos poucos anos atrás com a crise do setor imobiliário.  As vendas de imóveis financiados disparou e o sistema, descontrolado, entrou em colapso.

Como dizia o meu amigo Severino Mandacaru, diferentemente do crédito que se concede ao investimento, o crédito ao consumo permite que se coma a macaxeira antes de ser plantada. Através de cartões de crédito, carnês, cheques pré-datados, empréstimos bancários, notas promissórias, cadernetas do armazém e fios de bigode as pessoas vão comendo aquilo que ainda não foi produzido. Com um agravante.  Por esse “empréstimo”, o consumidor terá de pagar uma remuneração – os juros – que será agregada ao total devido. Os juros são um bem metafísico, que não tem contrapartida no sistema produtivo. Portanto, não contribuirão para a  produção da macaxeira. O crédito vicia  e vicia como qualquer droga química. Pior ainda, porque não deixa sinais exteriores. Muitas crises econômicas, em muitos países, foram geradas  sem que se percebesse,  porque a sociedade, como um todo, começou a comer aquilo que ainda não havia sido produzido.
 Quando inventou  o  crédito bancário na forma que aí está, o capitalismo não se deu conta que de que aquilo não teria fim, e começou a distribuir bens em troca de papéis que constituíam apenas uma promessa de pagamento devidamente acompanhada, é claro, dos respectivos  juros, isto é, dinheiro imaginário  -  hoje nem papel se usa mais, apenas telas de computador, cruz credo - e assim, quando os americanos foram procurar o seu “fried chicken”,  os alemães suas batatas, os italianos sua polenta e os franceses  seu  camembert,  só encontraram papel.  E explicações melosas em telas de computador.

 Por ocasião da crise americana quem falou sério, mostrando coragem e bom humor, escancarando a verdade, foi o economista francês Jacques Attali que declarou:  “Nos Estados Unidos as moratórias do setor privado já começaram e que um calote da dívida pública americana só não ocorrerá graças à impressão de dólares”. O que significa mais papel.  Atalli disse mais: “ O mestre dos Estados Unidos não é nem Keynes nem Schumpeter,  é Madoff e sua capacidade de construir dívidas”.  Madoff,   vocês se lembram,  foi o espertalhão que deu um golpe de 65 bilhões de dólares no mercado financeiro americano.  Adotando um sistema de venda de quotas de fundos em forma de pirâmide, criado por um tal de Ponzi, um imigrante italiano que teve muito sucesso nisso até ir para a cadeia.  Madoff  arrecadou dinheiro no mundo inteiro, até a pirâmide ruir. Foi condenado a 150 anos de prisão como se o fato de cumprir a pena na sepultura pudesse restituir o dinheiro que roubou dos incautos.
“... E la nave va. "  como diria Felini.

Não  adianta.  Reforma política não mudará nada. Basta ver o que se discute no Congresso Nacional e como se comportam seus habitantes. O que precisamos é de uma reforma administrativa do Estado. E será bom, também, começar a aperfeiçoar o Capitalismo. Os outros ismos não deram certo. Tratemos de salvar este, que já está obsoleto. Como os carros. O face book  acabará por desmoralizá-lo.

Esqueçamos a reforma política. Façamos a reforma administrativa e rezemos para que dê certo. Caso contrário, seremos obrigados  a pensar na reforma do ser humano.


Em tempo: Na sua página de hoje, 3 de Agosto de 2015,  Ancelmo Gois publica a seguinte nota:

Pós-capitalismo
“A Companhia das Letras comprou os direitos de “Pós-capitalismo”, livro do jornalista inglês Paul Mason, que vem causando polêmica na Inglaterra. Segundo ele, o capitalismo como o conhecemos está no fim, por causa das mudanças tecnológicas dos últimos 25 anos, que reduziram de forma drástica a necessidade do trabalho.”

Obrigado, Ancelmo.  




01 julho 2015

Um estilo de Vida


POUSADA PARAÍSO
O conceito de Pousada que serve de base para esta crônica é real. Foi concebido e desenvolvido por Flamínio Spreafico que o aplicou na implantação da  “Pousada do Cônego”,  no bairro de mesmo nome, em Nova Friburgo. Ali ficamos em atividade por mais de quatro anos, numa experiência das mais gratificantes. O que segue é um resumo do texto que  Flamínio  redigiu  para a apresentação da Pousada  no site que havia criado para divulgá-la. Foram quatro anos de trabalho árduo na defesa de um ideal. O reconhecimento, por parte daqueles que por lá passaram, compensou nosso esforço e a alegria que nos proporcionaram ficará para sempre na nossa memória. Este texto é dedicado àqueles que, como nós,   apesar dos dias conturbados  que estamos vivendo, acreditam que um estilo de vida mais simples ainda é possível. Mais simples no modo de se vestir, de comer, de se divertir, repousar e conviver. Longe da sociedade consumista, da propaganda enganosa, do crédito desvairado, da administração venal. E, quando possível, dos “Call Center”. Oremus.

Pousada do Cônego
O resgate dos sentidos
A vida nas grandes cidades está levando o ser humano a um desgaste físico e emocional sem precedentes. A insalubridade pela contaminação do ar, o barulho do trânsito, as sirenes e alarmes de todo o tipo, a dependência da televisão, com seu noticiário estressante, ou novelas lacrimogêneas e programas deformadores de comportamento, a alimentação baseada em produtos refinados repletos de gorduras saturadas, conservantes e aditivos químicos  de toda a espécie,  são apenas alguns dos fatores que estão afetando a qualidade de nossas vidas e, pior, a vida de nossos filhos. Para fugir a esses efeitos muitas pessoas procuram sair da cidade grande, nos fins de semana, em busca de um hotel fazenda para descansar e distrair a criançada.

Para isso criamos a  “Pousada do Cônego”
Você já visualizou um lindo lugar com vaquinhas pastando, porquinhos fazendo honk... honk... crianças alegres e ruidosas jogando totó, longos passeios de charrete, lago com pedalinho, quadra poliesportiva, sala de jogos  e um enorme salão para o buffet self-service com 54 tipos de comida.  Pois nós não temos nada disso. Porque é de um lugar assim que você volta ainda mais estressado.
Ao criar a “Pousada do Cônego”,  no verdejante vale que antecede o pico da Caledônia,  palco de  ricas experiências, queremos lhe proporcionar um lugar que  permita retomar o contato com a natureza, reeducar seus hábitos alimentares e refazer as energias físicas e mentais preparando-o, assim, para a sua volta ao trabalho. Este é um lugar diferente.

 Para começar, você não precisa acordar às seis horas da manhã  para assistir a ordenha das vacas. Nós não temos vacas. Você pode  acordar à hora que quiser, tomar café à hora que quiser e ficar na cama ouvindo o canto dos pássaros.
 Nós não temos charrete, nem passeio a cavalo. Nós preferimos caminhar com nossas próprias pernas para exercitar o corpo e a mente.
Nós não temos quadra poliesportiva.  Nós pisamos na grama descalços para restaurar  o contato com a terra perdido há anos, colhemos ervas aromáticas em nossa horta, conversamos e rimos o tempo todo, um riso espontâneo e sadio, resgatando um relacionamento humano já esquecido.

Nós não temos salão de jogos com sinuca, totó e ping-pong para você passar o tempo depois do almoço. Depois do almoço nós nos reunimos para um bate papo agradável, com troca de experiências ou simplesmente tiramos um bom e restaurador cochilo embalados pelo canto dos sabiás.
Nós não temos self service com 54 tipos de comida ao qual você chega, disciplinadamente, em fila, torcendo para que as bandejas não se esgotem antes de você chegar lá e, lá chegando, comer o máximo que pode, estragando sua saúde, só para justificar o seu investimento. Nós lhe oferecemos um cardápio perfeitamente ajustado às suas necessidades, servido sobre toalhas brancas de puro algodão e com luz abundante para que você possa ver e degustar com tranquilidade o que está comendo.

Nós não temos shows de música ao vivo. Para você ter uma ideia nós não temos nem televisão nos quartos! Depois do jantar nós nos sentamos em volta da lareira para degustar um bom vinho ou projetamos um filme com um tema instigante, que será sucedido por um debate, visando melhorar  o nosso comportamento diante dos conflitos quotidianos. Aqui, sim, você vai descansar.

Bom fim de semana para todos.”

30 junho 2015

Conversa

-- Tudo bem ?
-- Tudo...
-- Sente-se, por favor.
-- Ah.
-- Está quente, né ?
-- É.
-- É muito calor, né?
-- É.
-- Em São Paulo choveu muito.
-- É ?
-- Aqui não choveu.
-- Não.
-- Eu não gosto quando chove.
-- Não ?
-- Não. O senhor gosta ?
-- Não.
-- Mas a roça precisa de chuva.
-- É.
-- Semana passada minha rua alagou.
-- Foi ?
-- Foi. É um perigo, né ?
-- É.
-- Também, ninguém faz nada!
-- Não.
-- Mas é sempre assim, não é mesmo ?
-- É.

Barbeiro chato! Ou será que o chato sou eu?





30 maio 2015

Cem mil livros

“Livraria Leonardo da Vinci anuncia fechamento”

A notícia de quinta feira, 29 de Maio de 2015, ocupava meia página do jornal. O negócio tornara-se comercialmente inviável. Na matéria, os jornalistas Mateus Campos e Maurício Meireles fizeram um excelente retrospecto da atividade da Livraria destacando a importância de sua participação no mundo literário. Entre outros aspectos, ressaltaram:

“Nas estantes da Leonardo Da Vinci ainda repousam livros cujo preço original era cotado em pesetas espanholas e francos, da França, por exemplo. As obras, que fazem parte de um estoque estimado em mais de cem mil exemplares, foram compradas antes do surgimento do euro, em 2002 e esperam até hoje para serem vendidas.”

Cem mil livros!
Nunca fui um frequentador assíduo da Leonardo. De vez em quando passava por lá e comprava um par de livros, principalmente quando procurava algo em italiano ou espanhol. Conheci Dona Giovanna, que me encantava mais pelo seu sotaque do que pelo conteúdo de nossas conversas posto que, por  timidez minha, falávamos pouco: tem, não tem, é bom, não é, tá esgotado, vai chegar...  Era assim.
Mas ocorreu que, certa ocasião, eu precisei visitar a Da Vinci durante cinco dias corridos e desta vez eu não comprei nada. Apenas percorria os corredores das salas, cabeça baixa, meditativo. Fazia uma pausa, olhava para o alto, e prosseguia. Eu precisava saber quantos livros havia dentro da Livraria. Isso foi no mês de Maio de 2011. Obviamente, eu não podia perguntar à Dona Giovanna qual era o estoque de sua livraria. Então contei os livros. E constatei que, dentro daquelas salas, haveria, pelo menos, um total de 86.400 livros. Agora o jornal nos informa que há, hoje, “um estoque estimado em mais de cem mil exemplares.”  Uma diferença de 13.600 livros, isto é, apenas 13,6 por cento.
Errei feio? Não. Principalmente se levarmos em conta o tempo atual - Maio de 2015 - e o tempo da minha contagem  - Maio de 2011 - um lapso de quatro anos, durante os quais a livraria continuou crescendo, ampliando seu estoque.
Bem, acho que chegou a hora de explicar  por que eu fui contar os livros nas prateleiras da Livraria  Da Vinci e como foi que  consegui chegar ao fabuloso número de 86.400.

No dia 14 de Maio de 2011 eu publiquei  no “Memórias de Um Vago” uma crônica com o título de  “ESCREVER”. Nesses dias eu passava por uma angústia muito grande, debatendo-me entre o escrever e o ler, a palavra e a imagem, o papel e a tela do computador e, acreditem, entre a carta de papel com selo do correio e o e-mail. Para atenuar meu sofrimento, resolvi discutir o assunto com o Severino Mandacaru, meu amigo das horas incertas. Se quiser conhecer o teor da conversa, o meu incauto leitor poderá clicar na crônica  “Escrever” , que tem o número 61 no Índice que se encontra na coluna esquerda da página de abertura do blog. Para os mais ocupados  transcrevo apenas a parte que explica a metodologia que usei para encontrar o número que buscava.
Poderá ser útil a livreiros, bibliófilos  e curiosos. E para quem gosta de aventuras.

Eu disse para o Severino:
“-- Você certamente conhece a Livraria Leonardo Da Vinci. Sabe quantos livros tem lá dentro?
-- Não, por que? Você sabe?
-- Sei. Eu contei.
-- Impossível, você está maluco. Ninguém conseguiria fazer isso. Você perguntou pra Dona Giovanna?
-- Não. Não me atrevi, seria indiscreto. ela poderia achar que sou um concorrente... sei lá... mas eu calculei. São 86.400 livros, com pequena margem de erro.
-- Nem vou lhe perguntar como você conseguiu fazer isso.
-- Veja bem, vou simplificar:  a livraria tem 5 salas com estantes que vão até o teto. Cada estante é dividida em compartimentos, todos iguais, graças ao bom senso do marceneiro. Achar o total de compartimentos foi fácil. Contei o numero de livros que existe em cada compartimento e chequei, por amostragem, com alguns outros, pois nem todos os livros têm a mesma espessura. Assim cheguei a um valor médio representativo, com boa margem de segurança, de todo o conjunto. Os compartimentos que armazenam dicionários e livros de arte, que são notadamente mais grossos, foram tratados em separado e receberam um coeficiente de correção. No piso da loja também há livros, distribuídos em gôndolas, cuja quantidade pode ser facilmente calculada tomando-se o número de livros por metro quadrado. O meu passo é bastante regular e com ele posso medir qualquer distancia com erro menor do que dois por cento. Determinada a área de cada sala tem-se o total de livros, com o cuidado, naturalmente, de descontar o espaço ocupado pelas vias de acesso, escadas, mesas e cadeiras da administração, coletores de lixo, e onde ...”


A cidade inteira está pranteando o desenlace da Leonardo da Vinci. Hoje, 1º  de Junho, foi a vez do Joaquim Ferreira dos Santos chorá-la:
 “Em mais uma pá de cal...    ... a cidade sem letras sepulta a Leonardo da Vinci na caverna onde já estava moribunda, nas catacumbas insalubres do Marquês do  Herval” diz Joaquim, na sua brilhante crônica do Segundo Caderno.

Para mim é mais uma alma que se vai, deixando-me um remorso por não tê-la amado mais, não ter-lhe sido mais assíduo, não tê-la assistido melhor, como merecia. 
Alivia-me a culpa ter-lhe contado os livros.







10 abril 2015

E se não houver amanhã ?



                                                                “Pelo menos, agora, tenho um motivo
                                                       para acordar no dia seguinte,”
                                                                                                               Anne Frank


Tenho medo de acordar no dia seguinte. Leio os jornais todas as manhãs. As manchetes são desoladoras. Os editais, assustadores. Discutem temas escabrosos e revelam conflitos insuperáveis. Deixam a impressão de que o mundo se tornou ingovernável. O ser humano desandou. A corrupção ocupa a maior parte do espaço nos jornais, numa avalanche incontrolável. Espalha-se por capilaridade. Do ministro e do alto executivo chegou ao quitandeiro e ao guarda da esquina.
Seguem-se as notícias policiais, os acidentes nas estradas, incêndios, desabamentos e enchentes. Assaltos, roubos, assassinatos e balas perdidas. Conflitos entre traficantes e policiais. Pais que matam filhos e filhos que matam pais. Tudo é morte. Greves, agitações populares e invasões de terras. Os governantes não se entendem. Partidos políticos disputam o poder pelo poder. Não se nota um interesse legítimo por um mundo melhor.

Da televisão, desisti. Nos seus duzentos canais repete, à exaustão, as mesmas notícias, intercaladas por longos comerciais que glorificam o consumo exacerbado de produtos supérfluos, dispensáveis e até nocivos à saúde. Existem bons programas, sem dúvida. Mas até chegar a eles gastou-se um tempo enorme, precioso, sem falar que o expectador incauto perde-se no caminho, vítima de sua própria ingenuidade. Volto os olhos para o Exterior e o quadro é ainda mais desanimador. Guerras fratricidas, ataques terroristas, conflitos étnicos, intolerância religiosa, fanatismo político. Mortes. Tudo é morte.

Procurei uma notícia que me desse um motivo para acordar no dia seguinte.
Encontrei-a na forma de um poema, um verdadeiro hino à esperança. Foi escrito por Antonio Roberto Fernandes, um modesto poeta do interior. Ele me deu a certeza de que haverá um amanhã. É meu dever transcrevê-lo.


Mas
                                                                          Antonio Roberto Fernandes

E eu que achei que a lua não brilhasse
 sobre os mortos no campo da guerrilha,
sobre a relva que encobre a armadilha
 ou sobre o esconderijo da quadrilha,
 Mas brilha.

 E achei que nenhum pássaro cantasse
se um lavrador não mais colhe o que planta,
se uma família vai dormir sem janta
com um soluço preso na garganta.
 Mas canta.

 Também pensei que a chuva não regasse
 a folha  cujo leite queima e cega
 a carnívora flor que o cego inseto pega
 ou o espinho oculto na macega,
 Mas rega.

 Pensei também que o orvalho não beijasse
 a venenosa cobra que rasteja
 no silêncio da noite sertaneja
 sobre a ruína de esquecida igreja,
 Mas beija.

 Imaginei que a água não lavasse
 o chicote que em sangue se deprava
 quando, de forma monstruosa e brava,
 abre trilhas de dor na carne escrava
 Mas lava.

 Apostei que nenhuma borboleta
 ­por ser um vivo exemplo de esperança
dançaria contente, leve e mansa
sobre o túmulo em flor de uma criança,
Mas dança.

 Por isso achei que eu não mais fizesse
 poema algum após tanto embaraço,
 tanta decepção, tanto cansaço
 e tanta espera, em vão, por teu abraço,
 Mas faço.





25 janeiro 2015

Mergulhar no Espaço Sideral


Minha alma vagava  em desatino
Negando-se  a cumprir o seu destino:
Mergulhar no Espaço Sideral  que eterno dura
Onde pudesse encontrar vida mais pura
                               (Severino Mandacaru – em “A pena da Morte” – Março 2011)


Encontrei no Mahabaharata, o grande livro religioso do hinduísmo, uma pergunta que me causou efeito:  “ Qual é a coisa mais assombrosa do mundo, Yudhisthira? ” E o sábio líder dos hindus respondeu:
“ A coisa mais assombrosa do mundo é que ao redor de nós as pessoas podem estar morrendo e não percebemos que isso pode acontecer conosco.”

É difícil imaginar que alguém, aos trinta anos de idade, venha a se preocupar com uma coisa dessas. Mesmo tendo alcançado a chamada “meia idade” que ninguém sabe direito o que é, as pessoas ainda estão empenhadas em melhorar de vida lutando contra quilinhos a mais, falta de espaço nas praias,  restaurantes caros, filhos ingratos, vizinhos safados e, suprema desgraça, um chefe escroto.
Mas imaginem como seria diferente este nosso mundo se  as pessoas dessem importância ao  Mahabaharata e  lembrassem que também  morrerão  um dia.
A começar pelos motoristas de ônibus no Rio de Janeiro que se glorificam por derrubar passageiros, com suas freadas e acelerações violentas. Ao pensar nisso, mudariam a maneira de conduzir seus veículos pois se dariam conta de que, a cada freada, não só os passageiros mas também eles, estariam mais próximos da morte.
Bem, este é apenas um exemplo simples, mas é fácil imaginar como se comportariam os ocupantes de cargos nas diversas categorias sociais – no serviço público, serviços financeiros, escolas, hospitais, na política, igrejas de qualquer espécie, vendedores do comércio varejista e ... cruz credo ... atendentes dos “Call Center”. Garanto que este mundo - do qual todos serão aliviados um dia – seria frequentado por gente civilizada e a vida transcorreria do modo bem mais alegre. Porque, sabemos todos, a vida de que estamos falando termina aqui. Mas a outra,  a do Severino e seu espaço imenso, continua. Então, por que não nos prepararmos desde cedo para esta espécie de aposentadoria... quero dizer... passagem para a outra vida?

Quando me dei conta de que comecei a perder colegas de escola, amigos que eu encontrava na padaria e escritores que admirava, percebi que nossos velhos estão morrendo. Deixemos que partam, e alegremo-nos, pois foram cumprir a missão para a qual foram chamados. Contudo, estas últimas viagens – refiro-me aos escritores - me pareceram precipitadas. Pra que essa pressa, um atrás do outro, diferenças de semanas ou poucos meses?
Nossos velhos estão morrendo, está bem, mas não precisamos ajudá-los a morrer. Não?

Pois não é bem assim que pensa o ministro Taro Aso, titular das Finanças do Japão. Ele declarou, no início do ano passado, que  “Os idosos doentes deveriam apressar-se a morrer. Deus me livre de ser obrigado a viver se quisesse morrer” disse ele num encontro do Conselho Nacional de Seguridade do Japão.
Suas palavras causaram indignação em todo o mundo e ele logo se desculpou, explicando que estava impressionado com o impacto dos gastos de saúde com idosos nas contas públicas. E continuou: “Eu acordaria me sentindo cada dia pior sabendo que o tratamento foi todo pago pelo governo”. No seu pedido de desculpas o Ministro Taro Aso concluiu:
“Disse o que eu acredito pessoalmente e não o que deveria ser o sistema de cuidados médicos para  doentes terminais. É importante que você seja capaz de gastar os últimos dias de sua vida pacificamente”.

Sou obrigado a concordar com o Ministro. Ele se referia, obviamente, aos métodos artificiais de prolongamento de uma  vida já sem perspectivas e que constituem uma tortura para os que partem e os que ficam. O filme de Marco Bellocchio, (2012) “ Bella Addormentata” – creio que foi traduzido para “A Bela que dorme” - trata desse assunto. É baseado na história real de Eluana Englaro, uma italiana que viveu 17 anos em estado vegetativo, durante os quais sua família lutou para que a justiça autorizasse o desligamento dos aparelhos. O filme, polêmico, discute os aspectos morais e religiosos que envolveram o caso, bem como suas implicações políticas.
Não tenho opinião formada sobre a eutanásia. Mas de uma coisa estou certo: gostaria de morrer em bom estado.

Para quem viu “A Balada de Narayama”, o filme japonês  premiado em Cannes, em 1983, uma história verídica sobre a viagem final de que estamos falando, será mais fácil entender o Ministro. Até fins do Século XIX existia, em algumas partes do Japão, uma estranha tradição. Devido a penúria e escassez de alimentos em que vivia a população, quando o idoso chegasse ao ponto em que não podia mais prover o seu sustento, era levado pelo filho mais velho até o topo da montanha de Narayama, considerada sagrada, e ali o deixaria, sentado, até se extinguir. Na história uma velha mãe, apesar de ainda em boa forma, mas sabendo que uma boca a menos para alimentar seria importante para a família obriga o filho a levá-la.

Bem, no mundo de hoje não temos do que nos queixar. Reclamar porque o reajuste das aposentadorias dos super-velhos  não acompanha a inflação, não faz sentido depois do que disse o Ministro Taro Aso. Seus apelos estão sendo atendidos  de maneira discreta, na medida em que os planos de saúde são reajustados acima da taxa de inflação embora remunerem os médicos
de maneira ignóbil. Sem falar na contribuição dada pelo aumento do preço dos remédios. Mas, pelo menos, ainda resta uma coisa boa. Nossos velhinhos podem viajar de graça nos ônibus. É só aguentar as freadas.