16 fevereiro 2011

Por trás das Cortinas


Foi  por trás das cortinas, dentro  do quarto da Rainha,  que Hamlet  atravessou Polônio com uma espada, pensando tratar-se do Rei Claudio, assassino do seu pai.


Foi por trás das cortinas do salão nobre do Palácio do Governo do Estado de Sergipe que ouvi o Governador Seixas Dória, convocado pelos militares em 1964, defender-se da acusação de comunista e subversivo.
O enorme salão dividia-se ao meio por uma cortina composta de faixas entre as quais ficava uma fresta. De onde eu estava, uma espécie de ante-sala, podia ver  a longa mesa de reuniões onde se destacava o colorido das fardas. O tom eufórico das discussões permitia que se ouvisse tudo.  Impotente, o Governador  se justificava com frases ingênuas, tentando demonstrar que não tinha nenhum envolvimento com a subversão e que sua única preocupação era fazer um governo digno e honesto.
Eu estava sentado ali  aguardando uma entrevista com o próprio  Governador , a  qual  havia sido postergada  justamente por aquela reunião imposta pelos militares. Testemunha involuntária dos acontecimentos, eu me sentia constrangido. Como podia um governador, eleito livremente pelo voto do seu povo, ser humilhado daquela maneira?
Encerrada a reunião,  as cortinas foram abertas e,  ironia, foi servido um coquetel. No momento em que me  apresentavam  ao Governador,  um soldado garçom se aproxima e oferece um drink. Lembro-me até hoje das palavras do Governador, abatido mas sorridente:
-- “O senhor aceita um cálice? Pode tomá-lo tranqüilo, não é o cálice da amargura”.
Mas, era. No dia seguinte o Governador Seixas Dória era conduzido, algemado, para o presídio de Fernando de Noronha.


Foi por trás das cortinas do Teatro Santa Isabel que vivi uma das maiores emoções da minha vida. Era a minha primeira experiência como ator e estreava a peça   “O Diário de Anne Frank”.  O ensaio geral havia transcorrido de maneira perfeita. Diálogos, marcações, figurinos, entradas e saídas, contra-regra, luz, som, tudo havia funcionado à perfeição. Noite de estréia, eu andava eufórico de um lado para outro do palco, conferindo falas com os colegas, melhorando inflexões, ajustando figurinos, deixando palavras de incentivo para os mais temerosos. Espiei através da cortina fechada e me deparei com o espetáculo deslumbrante do teatro vazio, feericamente iluminado. Um ligeiro calafrio me percorreu a espinha. Nada mais natural, pensei. Uma estréia é uma estréia e eu sabia que até o Sergio Cardoso, quando interpretava Hamlet, ficava nervoso. Continuei no meu vai-vem quando percebi  um certo rumor que, aos poucos, parecia crescer. Não dei importância e continuei na minha euforia. O ruído continuou subindo de tom, parecia vir do céu, um barulho cada vez mais alto, difuso, indecifrável. Suspeitei que viesse da platéia e resolvi espiar, mais uma vez,  através  da cortina.  O teatro completamente lotado de gente  conversava,  no  que,  para mim,  parecia um trovão. Fiquei petrificado. As três pancadas de Molière, repercutindo no chão de madeira, tiraram-me do torpor. Ocupei minha posição no palco . As cortinas se abriram.


Por trás das cortinas de uma sala de visitas um pai descobre a frivolidade do filho já adulto e resolve dar-lhe um conselho. No terceiro ano do curso primário do Grupo Escolar João Vieira de Almeida, na Vila Maria, onde eu só cheguei aos nove anos, tínhamos um “livro de leitura”. Esse livro trazia pequenas histórias, lições de civilidade, feitos históricos e, cá e lá, algumas poesias. Esse livro sumiu, evidentemente, tão logo terminei o curso primário,  mas dele gravei um soneto, que guardo na memória até hoje. O autor do soneto também se perdeu com o livro. Em todos estes anos não me preocupei em descobri-lo.
Vou transcrevê-lo, tal como o lembro:


TERTULIANO

Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta,
E indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, em frente a um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

- Tertuliano,  és um rapaz  formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso? -

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvia tudo,
Serenamente  respondeu: - Juízo.  


Depois destas evocações eu não podia deixar de  investigar  alguma coisa sobre este soneto. Descobri  que a memória me traiu em vários pontos:
1.     O autor, cujo nome não lembrava, é  Artur Azevedo
2.     O nome do soneto, que eu julgava ser  “Tertuliano”, é  “Velha anedota”
3.     Em lugar de “em frente  a um espelho”  é:  “diante de um espelho”
4.     Em lugar de  “ouvia tudo”  é  “ouvira tudo”
5.     Em lugar de  “Serenamente  respondeu”  é  “Severamente respondeu”


Assim é, amigos, se lhes parece.  Como eu ouvia dizer naquela época:
 “O mundo gira e a Lusitana roda”

Severino Mandacaru

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