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Quando cheguei aos 17 anos eu estava terminando o curso de Mecânica de Máquinas na Escola Técnica do Recife, uma instituição da Rede Federal de ensino técnico. A prova final foi a construção de um torno mecânico completo. Cada aluno foi incumbido de um componente da máquina. A mim coube o “cabeçote fixo”, a parte mais complexa do equipamento. Isto porque eu era cdf. E dos mais fervorosos. Como cdf eu tinha outros atributos. Nas férias, em lugar de refrescar-me nas águas verdes de Olinda, eu procurava emprego nas oficinas mecânicas do Recife. No contato com o quotidiano áspero do proletariado aprendi muito sobre o comportamento humano, desde a maldade mais perversa até as atitudes de solidariedade, de desprendimento, do sacrifício espontâneo e desinteressado. No ambiente rude das oficinas não havia clemência. Qualquer erro era punido no ato.
Os quatro anos naquela escola técnica formaram o meu caráter ou, pelo menos, a parte melhor dele. A escola ficava na margem do Capibaribe, onde o rio fazia uma curva. No lado oposto podia-se ver a Fábrica da Torre, com sua altíssima chaminé perfurando o céu. Bem na frente da escola, junto ao barranco da margem do rio erguia-se uma descomunal figueira sob a qual eu me sentava, nas tardes de sábado, à espera do por de sol. E por que nas tardes de sábado? Porque eu morava no alojamento da escola e só ia para casa, na cidade de Paulista, a trinta quilômetros dali, nas grandes ocasiões.
A minha vocação de cdf não me dava paz. Eu precisava praticar no ofício ao qual me dedicava e achava que as aulas não eram suficientes. Nos fins de semana a escola ficava deserta. A entrada e a saída do alojamento era livre. Não havia sequer porteiro. As oficinas eram localizadas em imensos galpões, divididos por especialidade. Descobri que a grande porta da Fundição tinha uma brecha pela qual eu podia passar confortavelmente. Sábados e domingos eu gastava o dia inteiro praticando a moldagem de peças. Naquela época a moldagem era feita em caixas de areia que, depois de receber o metal fundido – ferro, bronze, alumínio, antimônio e o que fosse – eram desmanchadas e a areia, uma areia especial, evidentemente, era reutilizada. Um dia eu moldei quatro peças, entre elas um disco em alto relevo com o rosto do Cristo, com sua linda coroa de espinhos na cabeça. No dia seguinte iríamos fundir bronze. Em lugar de desmanchar as caixas que havia sorrateiramente moldado, deixei-as alinhadas junto aos moldes programados. O cadinho cumpriu seu percurso e derramou o metal líquido sob o meu olhar em êxtase. Enquanto o metal esfriava recebemos aulas teóricas do Mestre explicando a técnica usada em cada peça. Menos quatro. Abertas as caixas vejo o Mestre inquieto, prancheta na mão, andando de um lado para o outro, remexendo papeis, contando nos dedos, coçando a cabeça. Os alunos se haviam espalhado, esperando o encerramento da aula.
-- Aconteceu alguma coisa errada, Mestre? , arrisquei.
--Não, meu filho. Só não entendo quem foi que meteu essa cara do Cristo na programação!
-- Deixa pra lá, Mestre. Se não foi programada, distribui aí pros alunos!
E foi assim que eu ganhei um rosto do Cristo em bronze, com sua linda coroa de espinhos na cabeça.
Férias. Tempo de procurar emprego. Vai ser fácil. As oficinas já me conhecem. O diretor da escola manda me chamar e comunica que a Escola Técnica de Indústria Química e Têxtil, que ainda estava em construção no Rio de Janeiro, estava oferecendo bolsas de estudo, abertas para todo o país. Pernambuco teria cinco vagas. Seria feito um exame de seleção e os cinco aprovados iriam para o Rio de Janeiro onde seriam submetidos a novo exame, para aprovação final. Aconselha-me a fazer as provas.
Embarquei num heróico DC3 que depois de fazer escalas em Maceió, Aracaju, Salvador, Vitória, Canavieiras, Cabrália, Ilhéus, desabou sobre a pista militar do velho Galeão e caminhou, trôpego, até a estação de passageiros. Dalí, uma camionete Dodge, com carroceria de madeira, me levaria até a Rua Bela, em São Cristovão, meu novo alojamento. E a linha 56, do bonde Alegria, entraria na minha vida.