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O Lisboa era longilíneo. Sempre metido num impecável terno de linho branco, aparentava ser mais alto do que era de fato. Sua figura esguia era completada por um bigodinho fino que parecia desenhado a bico de pena e uma munganga malandramente sedutora. Sorria pouco. Seu olhar penetrava o interlocutor deixando-o imobilizado. Só então perguntava:
“Em que posso servi-la, senhora?
“Dois ingressos para “A Casa de Bernarda Alba”
A Faísca ficava na Rua da Palma, uma rua de comércio importante naquele Recife entrecortado de águas que faiscavam sob o luar como veios de prata.
Alí estava também a Vianna Leal, primeira loja a inaugurar uma escada rolante, prodigiosa invenção da engenharia, destinada à elevação do ser humano. Havia lá, ainda, a Mesbla, que fora filial da francesa Mestre & Blaget e agora era sua proprietária, num processo inverso de canibalismo, onde a cria devora o criador.
O Recife daquela época era romântico. Apoiado na amurada do Cais José Mariano, eu esperava que o sol no poente incendiasse a Praça Joaquim Nabuco. Então, as sombras dos edifícios se projetavam sobre o rio Capibaribe, transformando-o numa imensa placa de chumbo.
A Faísca era um misto de chapelaria e tabacaria mas, oficialmente, era uma tabacaria. Que, entre charutos e chapéus, vendia, com exclusividade , os ingressos para os espetáculos do Teatro Santa Isabel. Em todos os anúncios comerciais e cartazes do Teatro Santa Isabel, fossem Concertos, Óperas, Peças de Teatro, você encontraria, em destaque:
“Ingressos com Lisboa, na Faísca”
Lisboa conhecia os freqüentadores habituais do Teatro Santa Isabel; reserva-lhes os lugares preferidos, alertava-os sobre temporadas especiais e sobre a presença de possíveis desafetos políticos em noite de estréia.
O cenário teatral, naquela época, era dominado pelo Teatro de Amadores de Pernambuco, fundado por Waldemar de Oliveira, que organizara um elenco baseado nos membros de sua família, a maioria deles, médicos de profissão.
Nas noites de ensaio o Teatro Santa Isabel exercia um fascínio todo especial, principalmente sobre aqueles que acreditavam na lenda do “louro do Santa Isabel”, um fantasma que aparecia para perturbar os atores quando não gostasse de alguma coisa. Nas coxias, maquinistas, carpinteiros e contra-regras não falavam de outra coisa, contaminando os atores que, assustados, procuravam, em vão, saber de detalhes.
E aqui entra a parte mais interessante destas recordações. No Recife havia também o “Teatro Adolescente”, formado por um grupo de jovens estudantes que se proclamava “alternativo”, o qual resolveu montar uma peça de um autor mais alternativo ainda: “A Grade Solene”, de Aldomar Conrado, que iniciava sua carreira de teatrólogo com uma idéia genial: transpor a tragédia grega para a realidade nordestina através de “Édipo Rei”, de Sófocles. Assim, numa casa de engenho cercada de árvores ressecadas pelo sol da caatinga, João é o Édipo que casa com sua própria mãe Ester (Jocasta) , é irmão e pai, ao mesmo tempo, dos seus filhos, e mata o pai, o negro Antonio Campos (Laio). A crítica teatral se dividiu entre arrasadora e fulminante. Contudo foi unânime em elogiar os cenários desenhados por Aloísio Magalhães, o grande designer, responsável pelos melhores logotipos produzidos no Brasil, entre eles os da Light, Banco do Brasil, e CCPL, que estão aí até hoje.
Fui convidado para fazer uma ponta, cuja fala tinha duas linhas. Eu representava um matuto fogoió que entrava no palco, esbaforido, precedido por um tropel de cavalos produzido por duas quengas de coco. Interrompendo o ator que estava falando, eu declarava solenemente:
“Eles são bons rrrrrrealmente. Até que um dia o negro foi encontrado com uma faca enterrada no coração, logo depois da porteira” Dito isso, eu saia de fininho. Sentia-me ridículo. E nunca descobri porque eles eram bons rrrrealmente.
Na noite do ensaio geral a montagem dos cenários atrasou e os trabalhos se prolongaram pela madrugada. Sentados em círculo no meio do palco, sob a forte luz dos spots, os atores esperavam, conformados, conversando sobre as emoções da estréia.
A conversa acabou recaindo sobre o fantasma do Santa Isabel. Por muito tempo não se falou de outra coisa, até que, Aldomar Conrado, o mais sensível, determinou:
-- Olha pessoal!, vamos mudar de assunto que eu já estou ficando com medo.
E foi aí que me ocorreu a grande idéia. Yara Lins, atriz de corpo imponente, fazia o papel da suposta Jocasta usando uma túnica branca que lhe chegava aos pés. Saí discretamente do lugar onde me encontrava na roda, alcancei as coxias e recolhi a túnica da Jocasta. Contornei o corredor da platéia e subi até as galerias.
Por um momento contemplei, lá do alto, a cena deslumbrante do teatro vazio com os atores sentados no chão do palco fortemente iluminado. Subi até último nivel da torrinha, como a chamavam, a cabeça quase batendo no teto. Com a penumbra envolvendo as galerias, quem olhasse do palco àquela distância, juraria que a figura branca flutuava no espaço, tentando ultrapassar o teto.
Abri os braços em forma de cruz e esperei que alguém me visse. Nada.
Comecei a mover os braços, primeiro lentamente, depois com maior rapidez e finalmente girando-os como as pás de um moinho a vento, ora num sentido, ora noutro. Nada. Fiquei lamentando a falta de atenção daqueles colegas. Atores são seres distraídos, mesmo. Meus braços já estavam doendo. Descansei um pouco. Então abri novamente os braços em forma de cruz e gritei:
“Uh... Uh... Uh... UUUUUUUUUUUUU!”
Vi gente sair voando do centro do palco e aterrissar nas coxias. Vi gente se ajoelhar, encostar a cabeça no chão e tapá-la com as mãos. Dois ou três permaneceram quietos olhando as galerias, espalmaram a mão na testa apurando melhor a visão, e dispararam aos berros pelo fundo do palco.
Voltei, mais assustado do que eles. Aldomar, a cabeça apoiada num travesseiro, estava sendo massageado nas têmporas por Yara Lins, com cinco copos de água em volta, à espera de que ele conseguisse beber. Apontando um dedo para o meu nariz, balbuciou, gaguejante e trêmulo:
Seu galego safado, esta você me paga!
“Ingressos com Lisboa, na Faísca”.
Luigi Spreafico