28 novembro 2010

Delírio ou Fantasia ?

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“Assim como os fatos reais são
esquecidos alguns que nunca
existiram podem estar na
memória como se, de fato,
tivessem sido vividos”
Gabriel Garcia Marques



No hermético texto “Um tigre de Papel” , de Marina Colasanti, um escritor decide completar a decoração de uma sala rococó criando a figura de um tigre. Não quer fazê-lo com palavras mas apenas com seus significados. “Em vez de imitar o terrível miado” - escreve Marina - “faz tilintar os cristais acompanhando suas passadas”. O tigre vai tomando forma “incorporando-se à realidade antes inexistente”, obedecendo ao seu criador “com sedoso cuidado”. Até aqui o delírio se desenvolve com relativa sensatez. Mas, ao pretender levar sua criatura a desempenhar um simples ato cirsense, como subir com as quatro patas sobre um tamborete, o tigre se rebela, apossando-se de sua natureza. Com denodado furor estraçalha tudo, “rosnando por entre as letras”, desobedecendo vírgulas e parênteses, “espalhando no papel cacos de móveis e porcelanas”, dominando o texto. Sobre o qual, com uma patada, coloca o ponto final.

Sem dúvida, Marina Colasanti, com sua história fascinante e ao mesmo tempo blindada, cria uma grande intriga obrigando o leitor a muitas leituras. Cada leitura é uma nova história. Cada história, uma nova aventura.

Tem razão Umberto Eco quando diz: “O texto é uma máquina preguiçosa esperando que o leitor faça a sua parte”.

Eu fiz a minha parte.

Luigi

25 novembro 2010

Didelphis Marsupialis

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Era uma família feliz. Com três membros apenas não havia lugar para discussão. Estavam sempre de acordo. Quando chovia e quando fazia sol. Quando tinham o que comer e quando não.

O Pai, já avançado na idade, percebia que os tempos estavam mudando. O campo já não era mais o mesmo. Da numerosa prole só restava o Filho. A Mãe, dedicada matrona, depois de criar nove rebentos viu-os desaparecer um a um vitimados, suspeitava ela, pelas plantas venenosas que comiam no mato.

-- Pai, eu ontem entrei no telhado da Casa Grande. Eu desci e vi a cozinha. Estava cheia de banana e araçá !

-- Você tem que tomar cuidado, Filho. Se você escorregar e cair lá dentro, não encontrará mais a saída para voltar para casa e será apanhado.

-- Eu escutei o Dono falar que vai contratar mais gente para matar os insetos que são as pragas da lavoura.

-- Filho, não existem pragas na lavoura. O que existe na lavoura são insetos famintos. Tão famintos quanto nós, o Dono e sua família, e os seus empregados, e as onças brabas, os tamanduás e as formigas que eles comem, e os sabiás que cantam o dia inteiro, uma grande alegria que temos nesta fazenda.

Todos precisam ser saciados. E a Natureza pode fazer isso. Mas quando o Dono começa a matar os insetos ele está destruindo a própria Natureza. Porque os insetos que ele mata voltam como almas penadas e se penduram debaixo das folhas para chorar sua morte. E as folhas onde as almas penadas

se penduram murcham e depois secam. Você não viu o inhame, o milho e a macaxeira? Estão secando.

-- Mas, Pai, o Dono não sabe disso?

-- Nem todos sabem, Filho. E, como ele não pode ver as almas penadas, não entende o que está acontecendo. Então, bota mais veneno ainda porque acha que botou pouco. Só que as almas dos insetos não morrem porque são espíritos e não precisam de comer folhas para se alimentarem. Então o veneno fica na planta. E vai para a mesa de todos.

-- Se eu comer aquela banana eu morro?

-- Você não morrerá na hora mas irá enfraquecendo e apressará a sua morte. Nossa família já foi maior, você sabe. Seus irmãos mais novos morreram todos porque comeram desde cedo frutas contaminadas.

Passou o tempo. Certa manhã, quando se recolhiam para dormir, disse a mãe:

-- Pai, já é manhã tardia e o Filho ainda não voltou. Estou preocupada.

-- Durma tranqüila. Vou procurá-lo hoje à noite, quando sair à procura de comida.

Naquela noite o Pai saiu. Não foi à procura de alimento mas á procura do filho. Vagou a noite inteira. O olfato não era mais o mesmo de quando era jovem, mas conhecia bem as trilhas. Não encontrou rastro.

Ao alvorecer os raios de sol cobriam de ouro os cachos das bananeiras. Ouro maldito que minava a saúde dos próprios trabalhadores que o produziam.

O Pai caminhava cautelosamente por entre as touceiras. Sabia que, à luz do dia, arriscava-se a ser descoberto pelos trabalhadores. Já tarde, cansado, acomodou-se junto à uma pedra. Descansou. Sem mais esperanças, com lágrimas nos olhos , retomou a volta para casa.

A meio caminho o velho gambá encontrou o Filho deitado junto à uma bananeira, os olhos fechados e os maxilares entreabertos. Um filete de sangue escorria-lhe pelo canto da boca deixando na terra a marca do Homem.





18 novembro 2010

Ingressos com Lisboa, na Faísca

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O Lisboa era longilíneo. Sempre metido num impecável terno de linho branco, aparentava ser mais alto do que era de fato. Sua figura esguia era completada por um bigodinho fino que parecia desenhado a bico de pena e uma munganga malandramente sedutora. Sorria pouco. Seu olhar penetrava o interlocutor deixando-o imobilizado. Só então perguntava:
“Em que posso servi-la, senhora?
“Dois ingressos para “A Casa de Bernarda Alba”

A Faísca ficava na Rua da Palma, uma rua de comércio importante naquele Recife entrecortado de águas que faiscavam sob o luar como veios de prata.
Alí estava também a Vianna Leal, primeira loja a inaugurar uma escada rolante, prodigiosa invenção da engenharia, destinada à elevação do ser humano. Havia lá, ainda, a Mesbla, que fora filial da francesa Mestre & Blaget e agora era sua proprietária, num processo inverso de canibalismo, onde a cria devora o  criador.

O Recife daquela época era romântico. Apoiado na amurada do Cais José Mariano, eu esperava que o sol no poente incendiasse a Praça Joaquim Nabuco. Então, as sombras dos edifícios se projetavam sobre o rio Capibaribe, transformando-o numa imensa placa de chumbo.
A Faísca era um misto de chapelaria e tabacaria mas, oficialmente, era uma tabacaria. Que, entre charutos e chapéus, vendia, com exclusividade , os ingressos para os espetáculos do Teatro Santa Isabel. Em todos os anúncios comerciais e cartazes do Teatro Santa Isabel, fossem Concertos, Óperas, Peças de Teatro, você encontraria, em destaque:
“Ingressos com Lisboa, na Faísca”
Lisboa conhecia os freqüentadores habituais do Teatro Santa Isabel; reserva-lhes os lugares preferidos, alertava-os sobre temporadas especiais e sobre a presença de possíveis desafetos políticos em noite de estréia.

O cenário teatral, naquela época, era dominado pelo Teatro de Amadores de Pernambuco, fundado por Waldemar de Oliveira, que organizara um elenco baseado nos membros de sua família, a maioria deles, médicos de profissão.
Nas noites de ensaio o Teatro Santa Isabel exercia um fascínio todo especial, principalmente sobre aqueles que acreditavam na lenda do “louro do Santa Isabel”, um fantasma que aparecia para perturbar os atores quando não gostasse de alguma coisa. Nas coxias, maquinistas, carpinteiros e contra-regras não falavam de outra coisa, contaminando os atores que, assustados, procuravam, em vão, saber de detalhes.

E aqui entra a parte mais interessante destas recordações. No Recife havia também o “Teatro Adolescente”, formado por um grupo de jovens estudantes que se proclamava “alternativo”, o qual resolveu montar uma peça de um autor mais alternativo ainda: “A Grade Solene”, de Aldomar Conrado, que iniciava sua carreira de teatrólogo com uma idéia genial: transpor a tragédia grega para a realidade nordestina através de “Édipo Rei”, de Sófocles. Assim, numa casa de engenho cercada de árvores ressecadas pelo sol da caatinga, João é o Édipo que casa com sua própria mãe Ester (Jocasta) , é irmão e pai, ao mesmo tempo, dos seus filhos, e mata o pai, o negro Antonio Campos (Laio). A crítica teatral se dividiu entre arrasadora e fulminante. Contudo foi unânime em elogiar os cenários desenhados por Aloísio Magalhães, o grande designer, responsável pelos melhores logotipos produzidos no Brasil, entre eles os da Light, Banco do Brasil, e CCPL, que estão aí até hoje.

Fui convidado para fazer uma ponta, cuja fala tinha duas linhas. Eu representava um matuto fogoió que entrava no palco, esbaforido, precedido por um tropel de cavalos produzido por duas quengas de coco. Interrompendo o ator que estava falando,  eu declarava solenemente:
“Eles são bons rrrrrrealmente. Até que um dia o negro foi encontrado com uma faca enterrada no coração, logo depois da porteira” Dito isso, eu saia de fininho. Sentia-me ridículo. E nunca descobri porque eles eram bons rrrrealmente.
Na noite do ensaio geral a montagem dos cenários atrasou e os trabalhos se prolongaram pela madrugada. Sentados em círculo no meio do palco, sob a forte luz dos spots, os atores esperavam, conformados, conversando sobre as emoções da estréia.

A conversa acabou recaindo sobre o fantasma do Santa Isabel. Por muito tempo não se falou de outra coisa, até que, Aldomar Conrado, o mais sensível, determinou:
-- Olha pessoal!, vamos mudar de assunto que eu já estou ficando com medo.
E foi aí que me ocorreu a grande idéia. Yara Lins, atriz de corpo imponente, fazia o papel da suposta Jocasta  usando uma túnica branca que lhe chegava aos pés. Saí discretamente do lugar onde me encontrava  na roda, alcancei as coxias e recolhi a túnica da Jocasta. Contornei o corredor da platéia e subi até as galerias.

Por um momento contemplei, lá do alto, a cena deslumbrante do teatro vazio com os atores sentados no chão do palco fortemente iluminado. Subi até  último nivel da torrinha, como a chamavam, a cabeça quase batendo no teto. Com a penumbra envolvendo as galerias, quem olhasse do palco àquela distância, juraria que a figura branca flutuava no espaço, tentando ultrapassar o teto.
Abri os braços em forma de cruz e esperei que alguém me visse. Nada.
Comecei a mover os braços, primeiro lentamente, depois com maior rapidez e finalmente girando-os como as pás de um moinho a vento, ora num sentido, ora noutro. Nada. Fiquei  lamentando a falta de atenção daqueles colegas. Atores são seres distraídos, mesmo. Meus braços já estavam doendo. Descansei um pouco. Então abri novamente os braços em forma de cruz e gritei:

“Uh... Uh... Uh... UUUUUUUUUUUUU!”

Vi gente sair voando do centro do palco e aterrissar nas coxias. Vi gente se ajoelhar, encostar a cabeça no chão e tapá-la com as mãos. Dois ou três permaneceram quietos olhando as galerias, espalmaram a mão na testa apurando melhor a visão, e dispararam aos berros pelo fundo do palco.

Voltei, mais assustado do que eles. Aldomar, a cabeça apoiada num travesseiro, estava sendo massageado nas têmporas por Yara Lins, com cinco copos de água em volta, à espera de que ele conseguisse beber. Apontando um dedo para o meu nariz, balbuciou, gaguejante e trêmulo:
Seu galego safado, esta você me paga!

“Ingressos com Lisboa, na Faísca”.

                                                                                                    Luigi Spreafico



05 novembro 2010

Pousada Paraíso

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O conceito de pousada que serve de base para esta crônica é real e foi desenvolvido por Flamínio Spreafico, que o aplicou quando implantou a “Pousada do Cônego”, no bairro de mesmo nome, em Nova Friburgo. Ali ficamos em atividade por mais de quatro anos, numa experiência das mais gratificantes. O que segue é um resumo do texto que Flamínio redigiu para a apresentação da pousada no site que havia sido criado para divulgá-la. Se atraiu poucos clientes, não importa. Porque o convívio com aqueles que lá foram, valeu a pena.

“A vida nas grandes cidades está levando o ser humano a um desgaste físico e emocional sem precedentes. A insalubridade pela contaminação do ar, o barulho do trânsito, as sirenes e alarmes de todo o tipo, a dependência da televisão, com seu noticiário estressante , ou novelas lacrimogêneas e programas deformadores de comportamento, a alimentação baseada em produtos refinados repletos de gorduras saturadas, conservantes e aditivos químicos de toda a espécie, são apenas alguns dos fatores que estão afetando a qualidade de nossas vidas e, pior, a vida de nossos filhos. Para fugir a esses efeitos muitas pessoas procuram sair da cidade grande, nos fins de semana, em busca de um hotel fazenda para descansar e distrair a criançada.
Para isso criamos a “Pousada do Cônego”

Você já visualizou um lindo lugar com vaquinhas pastando, porquinhos fazendo honk... honk... crianças alegres e ruidosas jogando totó, longos passeios de charrete, lago com pedalinho, quadra poliesportiva, sala de jogos e um enorme salão para o buffet self-service com 54 tipos de comida. Pois nós não temos nada disso. Porque é de um lugar assim que você volta ainda mais estressado.
Ao criar a “Pousada do Cônego”, no verdejante vale que antecede o pico da Caledônia, palco de ricas experiências, queremos lhe proporcionar um lugar que lhe permita retomar o contato com a natureza, reeducar seus hábitos alimentares e refazer as energias físicas e mentais para a sua volta ao trabalho.

Este é um lugar diferente. Para começar, você não precisa acordar às seis horas da manhã para assistir a ordenha das vacas. Nós não temos vacas. Você pode acordar à hora que quiser, tomar café à hora que quiser e ficar na cama ouvindo o canto dos pássaros.
Nós não temos charrete, nem passeio a cavalo. Nós preferimos caminhar com nossas próprias pernas para exercitar o corpo e a mente.
Nós não temos quadra poliesportiva. Nós pisamos na grama descalços para restaurar o contato com a terra perdido há anos, colhemos ervas aromáticas em nossa horta, conversamos e rimos o tempo todo, um riso espontâneo e sadio, resgatando um relacionamento humano já esquecido.
Nós não temos salão de jogos com sinuca, totó e ping-pong para você passar o tempo depois do almoço. Depois do almoço nós nos reunimos para um bate papo agradável, com troca de experiências ou simplesmente tiramos um bom e restaurador cochilo embalados pelo canto dos sabiás.
Nós não temos self service com 54 tipos de comida ao qual você chega, disciplinadamente, em fila, torcendo para que as bandejas não se esgotem antes de você chegar lá e, lá chegando, comer o máximo que pode, estragando sua saúde, só para justificar o seu investimento. Nós lhe oferecemos um cardápio perfeitamente ajustado às suas necessidades, servido sobre toalhas brancas de puro algodão e com luz abundante para que você possa ver e degustar com tranqüilidade o que está comendo.
Nós não temos shows de música ao vivo. Para você ter uma idéia nós não temos nem televisão nos quartos! Depois do jantar nós nos sentamos em volta da lareira para degustar um bom vinho ou projetamos um filme com um tema instigante, que será sucedido por um debate, visando melhorar o nosso comportamento diante dos conflitos quotidianos.
Aqui, sim, você vai descansar de verdade. Bom fim de semana para todos.”

Luigi Spreafico