28 julho 2006

MEU BANCO É PERFEITO

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TENHO POR ELE O MAIOR RESPEITO.  Sou cliente de banco desde 1952. Abri minha primeira conta no Banco Financial Novo Mundo. Ficava na Rua do Ouvidor, bem próximo da Avenida Rio Branco pelo lado de quem ia para as barcas. Nos dias de maior movimento, o tempo de espera para ser atendido era de dez minutos. Nos dias normais não passava de cinco. Eu entregava o cheque para ser descontado a uma donzela sempre sorridente, recebia uma ficha numerada, e me sentava num banco de madeira. Naquele tempo todos se sentavam, não só os velhinhos. O cheque viajava. Numa mesa conferia-se o preenchimento, noutra a assinatura, depois o saldo, e por aí vai, tipo corrida de revezamento. Mas, em menos de cinco minutos, meu número era chamado. Durante as décadas que se seguiram passei por muitos bancos. E continuo dependendo deles para sobreviver. Como poderia receber a generosa recompensa que o Sistema Previdenciário me proporciona (depois de ter contribuído a vida inteira pelo teto máximo e ser recompensado pelo mínimo, o que, pelos meus cálculos atuariais, me obrigaria a viver 125 anos para recuperar o que lá enterrei)? Como poderia pagar contas, declarar imposto de renda e efetuar tantas outras operações burocráticas que a vida moderna nos impõe, sem a proteção magnânima de um banco? Continuo, portanto, dedicando uma parte considerável do meu tempo e, principalmente, da minha energia aos bancos. Mencionei o tempo, mas devo ser justo: o tempo gasto nas filas de banco até tem diminuído. Não graças aos terminais eletrônicos, que foram colocados inteligentemente do lado de fora, mas, graças à internet. Porque quando criaram os terminais, os bancos criaram também as filas dos terminais, as quais resultaram maiores que as filas dos caixas. E criaram também a curiosa figura da funcionária que percorre a fila dos caixas com a penosa missão de deslocar o cliente dali para o lado de fora. - Posso ajudar, vai fazer algum pagamento? Por que não usa o terminal? - Porque a fila de lá está maior do que esta. Cansado de dar explicações sobre as minhas preferências pessoais no que se refere ao sofrimento humano, decidi livrar-me do incômodo de uma vez por todas: - Posso ajudar, vai fazer algum pagamento? Por que não usa o terminal? - Só respondo na presença do meu advogado! Certa vez descobri que podia dar uma contribuição ao Departamento de Marketing do meu banco. Eu estava no balcão, esperando ser atendido, quando uma graciosa donzela (igual à do meu tempo do Financial, justiça seja feita) aproximou-se, e, reconhecendo-me, atacou: - Senhor Luigi, que bom encontrá-lo! Eu vi que o senhor não tem um seguro com a gente. O senhor precisa fazer um seguro! - Por que eu deveria fazer um seguro? - Ora, porque se o senhor vier a faltar, que Deus o livre, os seus filhos ficarão protegidos. - E como é que eles vão ficar protegidos se eu não vou estar aqui para protegê-los? - Veja: o senhor paga o seguro, mensalmente, de tanto, e se o senhor vier a falecer, que Deus o livre, os seus filhos vão receber tanto e tanto pelo seguro. Entendeu? - Não. Deixe-me ver. Eu pago, mensalmente, um tanto, durante tanto tempo, e, pelo tanto que eu ainda pretendo viver vou ter que desembolsar um tanto considerável da minha magra aposentadoria justamente quando, pelas deficiência da idade, mais preciso dela. E aí, quando eu morrer, eles vão receber essa bolada toda e gozar a vida? Não, decididamente tem alguma coisa errada nisso. - Mas é assim que funciona, Seu Luigi! - Não, não. Se você quiser fazer um seguro comigo, você tem que fazê-lo em nome do meu pai. Em nesse caso, eu pagarei a mensalidade, não ele. Aí, sim, quando ele morrer eu é que entro na bolada. É justo. Fui eu que paguei por ela. Dessa forma eu faço o seguro. Os olhos da moça brilharam. Logo puxou um formulário e gritou: - Perfeito! Como é o nome dele? - Guglielmo... g, de Gaspar, u, de Urbano.... - Casado ou solteiro? - Viúvo. - Local de nascimento? - Villa Bartolomea, província de Verona, Italia. - Data de Nascimento? - 28 de Janeiro de 91. - Como 91? - Ah! Desculpe, 1891. - Como? Quantos anos ele tem?! - Não sei, preciso fazer as contas. Acho que dá ... 95. - Ah! Mas assim não pode! Meu pai morreu com 101 anos. Não fez o seguro nem eu recebi a bolada. Mas foi o banco que não quis.

21 julho 2006

Poema Controverso


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Se eu pudesse amar, amaria tudo
Mas amaria você, sobretudo
Amaria as crianças que riem, os velhos que choram
O barulho das fábricas, o silêncio da noite
Os sapos no charco, as estrelas no céu
As gotas de orvalho nas folhas das rosas
E os raios de sol nas manhãs preguiçosas
Se eu pudesse amar, amaria tudo 
Mas amaria você, sobretudo
Amaria o teu ar de menina travessa 
Teus olhos incertos, teu cabelo sem cor
E tua boca rasgada, sempre a dizer pecados
Se eu pudesse amar, amaria, até mais não parar
O próprio Deus que me fez incapaz de amar.

17 julho 2006

O CAMINHO DE COMPOSTELA




Meus amigos: Vou estar ausente por dois meses. Depois de tanto tempo garimpando entre bites e baites, daunilodes e apilodes, e receber ameaças do tipo: “Erro fatal. Se você apertar novamente controlaltidel todos os seus dados serão apagados, sua poupança será confiscada, e sua família será excomungada. Clique “finalizar” para sair de fininho, ou, para sair com dignidade, volte à sua terra natal, beije os pés do padre e cuspa três vezes na porta do cemitério entre meia noite e uma hora (pelo lado de dentro)”. Percebi que estava no caminho errado. Decidi, então, tomar o caminho certo. E esse caminho só podia ser de Santiago de Compostela. Observei que muita gente se deu bem depois de fazer essa peregrinação. Por que não eu? Nunca li Paulo Coelho, a não ser por pequenas notas e historietas, tipo assim, “pingos de sabedoria”, publicadas em revistas de domingo de jornais de grande circulação, Mas o resultado dos seus escritos está aí para quem quiser ver. O sucesso que o envolveu após a peregrinação a Compostela é indiscutível, pois, feita há tantos anos, repercute até hoje, e ainda lhe rende assunto para as tais notas domingueiras. Soube que até o Clinton (aquele que foi condenado ao onanismo), era seu leitor. Como a minha principal virtude é a inveja, minha alma se incendiou. Resolvi, imediatamente, fazer a peregrinação a Compostela. Munido de guias, panfletos e consultas exaustivas a agências de turismo, comecei a preparar o meu “budget” (foi assim que me ensinaram na agência de viagens). Nada de extraordinário, apenas o trivial: algumas saladas acompanhadas de presunto Capa Negra, muitas paellas, as tapas imperdíveis da Andaluzia, uma rápida passagem pelo “El Buli”, em Barcelona (ir a Santiago e não dar uma esticadela para cumprimentar o Ferran Adriá, poderia comprometer todo o meu o processo de elevação espiritual). Acompanhariam as manducações diárias umas quantas taças de Rioja, um ou outro Valdepeñas, depois viriam os Tempranillos, principalmente os da Tierra de Extremadura e, glória final, um Pata Negra Gran Reserva, safra 95, um homônimo do grande presunto. Não mencionei os jerez (finos, olorosos e amontilados ) porque, como estes são tomados antes e depois das refeições e durante o dia, nos momentos alegres e tristes, (o que é a vida senão uma sucessão de momentos alegres e tristes?) mereceriam um orçamento em separado. Feitas as contas, ao contemplar o resultado, o líquido que circula na medula espinhal se me congelou, e eu fiquei algum tempo sem poder mover o pescoço nem bater as pestanas. O raciocínio, “sin embargo”, continuava funcionando. Na Espanha eu não tenho parentes que me possam hospedar e não creio que fosse possível, nos dias de hoje, bater à porta de um mosteiro e pedir abrigo para um peregrino faminto. Como não me deixo abater facilmente, encontrei um caminho alternativo. Vou fazer o Caminho da Mortadela, uma rota que corta a província de Bolonha, entre vinhedos e olivais. No lugar do Capa Negra (o presunto) terei de me consolar com a redonda mortadela, que tanto alegrou minha penosa infância e que aqui empresta seu nome ao que será , um dia, um famoso roteiro. Quanto aos vinhos, me contentarei com um Amarone della Valpolicella e, quem sabe, um Brunello di Montalcino. Um pouco mais ao norte, com muita sorte, quem sabe, toparei com um Gewurztraminer do Alto Ádige para acompanhar os peixes do Lago D’Iseo. Mas, uma coisa vou fazer, com certeza: dar uma esticadela até San Gemininiano para, no interior de suas muralhas medievais, saborear uma polenta taragna. E, aí, com todo o respeito, vou pedir um Gattinara, safra 94. Não sei o quanto esta peregrinação vai me engrandecer o espírito. Mas o corpo, certamente, voltará engrandecido. Até a volta!

16 julho 2006

LETRAS MIÚDAS DO CONTRATO

“Pai, vamos esperar o sol nascer?”
“Vamos, filho, vamos.”

Era o Caio, beirando os nove anos, que convidava o pai para mais um programa selecionado entre os tantos que ele, um inveterado admirador da natureza, vinha lhe proporcionando desde tenra idade. O nascer do sol já havia sido contemplado de muitos lugares: da praia do Arpoador, da Praia da Barra, das montanhas de Nova Friburgo e não sei mais de onde. Desta vez, seria da janela do apartamento. Decididamente Fernando havia transformado o filho num grande apreciador da natureza, respeitador da fauna e da flora, em duas palavras, um filho ecologicamente correto. Eu, tio avô, me orgulhava muito do Caio, não só por aquelas qualidades, mas também pela sua vivacidade e rapidez de raciocínio, além de uma reveladora habilidade para contar piadas.

Eram onze horas provavelmente. O pai lia o jornal. Caio caminhava de um lado para outro, excitado, prelibando o espetáculo na companhia confortadora do pai. Este, depois de alguns momentos, dobrou vagarosamente o jornal, encaminhou-se para o quarto, e deitou-se para dormir.

“PAI!? Você não disse que ia esperar o sol nascer?” 
“Disse, meu filho, e vou. Vou esperar o sol nascer, aqui na minha cama, porque é mais confortável. Você não me perguntou se eu queria “esperar” o sol nascer?. Então, você pode fazer a mesma coisa. Agora, se você quiser “ver” o sol nascer, você pode ficar lá na janela. De lá você vê.

E, amorosamente, enfiou-se em baixo das cobertas. E Guilherme, o irmão mais velho, que contemplava a cena, apontando o dedo para o nariz de um desapontado Caio, com voz solene e pausada:
“Letras miúdas do contrato, Caio, Letras miúdas do contrato!”

15 julho 2006

Muita banana por um tostão não é delícia !

Por volta dos anos 30, a Vila Maria era, para mim, um pedaço do Éden. Por maiores que fossem as agruras da infância paupérrima, não havia tempo para sofrê-las. A vida era tão cheia de vida, e eu me via crescer aprendendo coisas em ritmo tão alucinante que não me sobrava tempo para desgostos. Isso significava esculpir brinquedos de madeira a canivete, montar patinetes com rolimãs surrupiados ao meu irmão maior, molhar a horta com água puxada a sarilho de um poço, ralar queijo e fechar os raviólis nos almoços de domingo, ir comprar pão sem comê-lo pelo caminho, fazer bolas e mais bolas de meia para suprir as peladas de fim de tarde. Quando aprendi a ler, o mundo se alargou. E me tornei um grande devorador de Gibis, penosamente garimpados entre os amigos, ou encontrados no lixo, e consumidos, em êxtase, à luz de uma vela. Para elevar o meu padrão de consumo intelectual meu pai, aos domingos, me fazia ler o jornal e foi assim que, aos oito anos, tomei conhecimento de que se iniciava uma guerra. Só não conseguia entender o que era uma guerra. A Vila Maria era a minha Pátria. São Paulo era apenas uma paisagem. Uma paisagem deslumbrante. Da minha casa, encarrapitada no topo da colina, contemplava-se, lá em baixo, a imensa várzea cortada pelo Rio Tietê. A planície, aos poucos, ia se mimetizando, ganhando paralelepípedos, calçadas, casas, prédios, arranha-céus. Era o Centro de São Paulo! À noite, milhões de pontos luminosos faiscavam flutuando no espaço negro do universo. Eu tinha o mundo a meus pés. A Vila Maria dos anos trinta era um modelo de integração racial. Ali conviviam, xingando-se alegremente, portugueses, vênetos, calabreses e ainda uma família alemã, permanentemente ocupada em fazer geléias de frutas para sobreviver no inverno. Os portugueses predominavam. Eram, em sua maioria, motorneiros ou condutores de bondes. Motorneiro era, obviamente, o motorista e, como tal, a despeito do título do seu colega de trabalho, era quem conduzia o bonde. O condutor cobrava as passagens, e as registrava puxando uma alça de couro colocada sobre a cabeça, ao longo do carro, presa a um eixo que, por sua vez, acionava um relógio marcador. Cada registro produzia um sonoro “plimm!”. Cada plimm, uma passagem. Os condutores juntavam várias passagens para, só depois, marcarem os plimms correspondentes. A cada plimm, uma passagem. Alguns passageiros contavam atentamente plimms e passagens e concluiam que o condutor estava roubando. Cada um construía sua casa com a ajuda de todos os vizinhos com os quais não estivesse brigado. Assentavam-se os tijolos com barro e, depois de concluído o telhado, fazia-se a festa da “cumieira”, com muito chops e pastel. Eu ajudava a pisar o barro, freneticamente, com receio de que o menor grumo que permanecesse na massa pudesse comprometer a estrutura de tão complexa obra. Foi aí que aprendi a minha primeira lição de ciências humanas – a transitoriedade da vida: “Tudo no mundo é passageiro, menos o condutor e o motorneiro”. Como passageiro aprendi também alguns conselhos úteis, em forma de provérbios, que vinham estampados na parte posterior dos bancos: “Amor com amor se paga” e “Prevenir acidentes é o dever de todos” O Vila Maria era o 34. Percorria toda a planície da várzea pela Avenida Guilherme Cotchíng ( que hoje chamam Cótching, que Deus a guarde), galgava o Rio Tietê por uma ponte de madeira, subia a Rua Catumbi, virava à direita para entrar na Celso Garcia, passava pela Estação Roosevelt (ou seria a Estação do Norte?) de trens, alcançava a Rangel Pestana, subia a ladeira íngreme do último trecho e resfolegava no plano repousante da Praça da Sé. Contornava o prédio da Caixa Econômica, todo em granito preto como está até hoje e iniciava o caminho de volta. Pelo lado oposto da colina, em descida íngreme por vielas de terra, chegava-se ao Brejo. Era um alagado coberto de juncos e habitado por duendes e fadas que se reuniam, à noite, para ouvir a sinfonia das rãs. Era ali que ficava a chácara do hungarês, que criava vacas e vendia leite. Era hungarês, não húngaro. Nunca se lhe soube o nome. E foi com ele que aprendi a minha primeira lição de micro-economia, mais precisamente, o capítulo qualidade-preço. Questionado por uma calabresa magra como um envelope aéreo, sobre o preço que cobrava pelo leite, maior do que o da carrocinha que o entregava na porta, ele a olhou fixamente nos olhos, uniu os cinco dedos da mão direita, levantou-os até a altura da boca para abri-los numa explosão, tal como desabrocham as flores em câmara rápida que se vê na televisão e, unindo a palavra ao gesto, estalando a língua, decretou: “Muita banana por um tostão não é delícia!” 

10 julho 2006

DE GENTE E DE BICHOS

“Me dá dez tostão de pingaEngoliu o líquido num trago. Deu uma cuspidela oblíqua que acertou em cheio no dorso do cachorro cujo pelo abundante escondia o corpo esquelético.

 O cão marchou até a porta carregando o estigma do seu amor pelo dono. O amor incondicional. O amor que não discute. O amor que não faz perguntas. O amor insensato. “Falta ainda meia hora”, pensou.
“Me dá uma salsicha”Mordeu a extremidade umbilical da salsicha e cuspiu-a sem alvo visado.
 Ricocheteando por entre sacos de cereais o apêndice foi alojar-se sobre uma pilha de tamancos de madeira que, pela poeira que a protegia, devia estar completando o quinto ano naquele nobre estabelecimento.
Com dois botes fez desaparecer o resto da salsicha na boca enorme.
“Bota um traçado”

A cusparada partiu veloz pelo canto esquerdo da boca. Não encontrando o amortecedor peludo do cão acabou formando uma rosácea no chão de cimento, espécie de marco geográfico a ser conquistado pelos fregueses que, ao entrarem, primeiro hesitavam para depois galgá-lo com ar triunfal e uma indisfarçável expressão de dever cumprido.

“Bota outro” O cão voltou de cabeça baixa, cheirando o chão. Contemplou o dono.
”Talvez falte mais de meia hora, repensou”.
Olhou o balcão. Percebeu o copo quase cheio. Avaliou a tonalidade do nariz. “Uma hora, pelo menos”, concluiu por fim.
Encolheu-se a uma distância prudente das cusparadas.

“Enche o copo!” Fungou. Tentou coçar as costas, perdeu o equilíbrio mas conseguiu apoiar-se nos sacos de feijão. Reconquistou a distância perdida, agarrou o copo com as duas mãos e bebeu tudo num trago só. Escancarou a boca engolindo uma golfada de ar. Havia alcançado o estado de graça.

“Ahhhhh!” Cuspiu o resultado da oxidação. Cambaleou, procurou apoio na estante do macarrão a varejo e afundou o braço no alfabeto para sopa. Letras se espalharam no chão formando criptogramas para a posteridade. O cão saiu do seu esconderijo lambendo os beiços. Contemplou o dono com olhar compassivo. “Está na hora de levá-lo”, pensou.

 Foi até a porta como quem verifica se o caminho está livre. Voltou e começou a roçar delicadamente nas pernas do patrão. Depois de alguns movimentos recebeu um ponta-pé que o autorizou a cessar os sinais de advertência e tomar o caminho de casa.
Acompanhou o dono até a saída. Na porta o cão olhou ainda uma vez para dentro do armazém. Viu que, atrás do balcão, um bigode se contorcia em exclamações:
“É um nulo! È um nulo, que se há de fazer!”
E, abaixando a cabeça, envergonhado, correu para alcançar o dono que não ia longe.