31 março 2021

Memórias de um Vácuo

 

As voltas que o mundo dá! Que futuro nos reservam os caprichos do destino ? Não, não foi o corretor ortográfico que escreveu isso aí. Quem sugeriu esse título foi o Flamínio, lembram ? Aquele pirado  . . . Epaa . . . eu quis dizer “inspirado” (agora já foi), aquele pirado empresário que criou, juntamente com o Jurandir, seu colega de piração,  a  “FLAJUR – Turismo de Aventuras”, que nos proporcionou  excursões emocionantes para conhecer a gastronomia e o mundo dos vinhos na Argentina, Chile e no Sul do Brasil.

 E, por que o título ? Porque eu não estava fazendo nada. Eu tinha virado vácuo. Eu era o vácuo dentro do vácuo. Vácuo no tempo. Vácuo no corpo. Vácuo na alma.

E assim passou-se o tempo. Durante o dia eu me sentava voltado para o Poente, esperando pelo Crepúsculo. Durante a noite eu me sentava voltado para o Nascente  esperando pelo alvorecer.

Até que um dia o Flamínio, com voz solene, falou:

 “ Seu vácuo acabou. Aqui está a sua máquina. Trate-a como você tratava as cardas e os filatórios. Você vai trabalhar e será remunerado, como um bom proletário, como aqueles que você protegia nas fábricas de tecido. Ganhará por produção como ganhavam as tecelãs e os contramestres. E ficará feliz quando o índice de eficiência alcançar os 90 por cento.

 E eu passei a extrair o ar das coisas. E soltá-lo no firmamento, oxigenando o meio ambiente. 

 Que voltas o mundo dá !

  

 

16 março 2021

Dever de casa : Contar os Mortos

Dever de Casa:contar os mortosrtos 

Nunca imaginei que atingida a idade provecta em que me encontro eu tivesse que me incumbir de semelhante missão. Isso mesmo : contar quantos cadáveres foram produzidos pela Pandemonia sem acento nem endereço. Na semana que vai do dia  6 ao dia 13 de Março de 2020 foram abatidas 12.954 almas pelo Coronavirus, o que dá um valor médio de 1.850 mortos por dia neste país. Para termos uma ideia do que esta cifra significa, reporto-me ao dia em que comecei a anotar os números desta dança macabra. Em meados do mês de Abril andávamos por volta dos 150 óbitos por dia.

 A curva foi crescendo rapidamente até chegar a um ápice de 1.038 em 30 de Junho. Daí, por força divina ou pelo bom comportamento de nossas almas, a curva despencou e chegou  a 344 casos, medidos pela media semanal, em 7 de Novembro de 2020. Alegria geral em toda a nação. Vamos comemorar. Tragam cerveja e carne ! O Natal vem aí. E o Ano Novo ? E o Carnaval ? Está tão perto ! Sim, o Carnaval está perto . . . Mais uma vez tenho a satisfação e o orgulho de citar Sidarta, o Araujo, pela sua visão profética sobre o que iria acontecer com a nossa Pandemonia ao descrever o Carnaval de Olinda, em Pernambuco:

“Fevereiro de 2020, Carnaval em Olinda, Pernambuco. Cerveja, cachaça, e milhares de pessoas subindo e descendo ladeiras, um prodígio de organização espontânea que logra proteger músicos e carros de som do caos turbulento. A multidão enche as ruas, pula, grita e se liberta de tudo o que não é amor. Um povo em gloriosa intimidade consigo mesmo. Minha visão se turva de cores, sons e cheiros. Seria tudo isso uma alucinação?  Fecho os olhos e tento vislumbrar o futuro. O que será preciso fazer para deter a explosão planetária  do coronavírus ? Será o fim de beijos, abraços e convívio? Sobreviveremos a todo esse isolamento? Haverá Carnaval no ano que vem ? Escuto com nitidez a voz de Caetano Veloso: - Não se esqueça de mim/Não desapareça ”

Em 14 de Fevereiro de 2021 a média semanal já havia alcançado 1.079 óbitos. Em de 13 de Março saltou para 1.850. Ou seja um aumento de 70 por cento em apenas um mês ! Para onde vamos ? O que devemos fazer ?  Quem nos orienta ?

Orientação é o que não falta. Cada autoridade diz uma coisa e todas elas brigam entre si. A economia, sufocada pela Pandemonia, está em frangalhos e esses frangalhos são administrados por outros frangalhos, todos raivosos, em permanente conflito. Dos legisladores não vou falar, por falta de competência. E antes de ir embora apresento minhas escusas:  absit injuria verbis, data vênia”, não é, Senhor Todo Mundo ?

 

 


 

 

04 março 2021

Um pouco de mim mesmo

 

E  já que é preciso mudar, mudemos. Começo descaradamente falando de mim mesmo como se eu fosse o epicentro dessa onda sísmica que chamei de Pandemonia, sem acento nem endereço. Confinado entre quatro paredes, tolhido nos movimentos do corpo pela vetustez da idade, só me resta escarafunchar os meandros da memória à espera de que uma lamparina me ilumine. Para que ? Para falar de mim mesmo ! Coisa feia, dizem uns. Concordo. Até Dante Alighieri criticou esse hábito pernicioso de incomodar os leitores. Então, vamos ao que conta.

 Em Setembro último aconteceu algo que me deixou perplexo e extremamente feliz. Minha filha Flávia reuniu parentes e amigos para fazer-me uma surpresa: a edição, em livro de verdade, das Memórias, aquelas do Vago que andava meio perdido no tempo e no espaço.  

E, quando menos espero, me vejo diante de uma bela encadernação. 345 páginas.             

ISBN 978-40-0O65-86823-40-0

São livros ! Preciso distribui-los. Começo a preparar a lista dos amigos. Mas, e os autógrafos ?  Os autógrafos !

Vaidoso como um pavão, danei-me a disparar autógrafos como se os meus incautos leitores não pudessem perceber a vaidade embutida. Aos mais íntimos, escrevi palavras de carinho e incentivo. Aos demais, escancarei minha alma com coisas do tipo “ao amigo . . . “ um pedaço da minha vida” ou “um pouco de mim mesmo”  ou  “um pedaço de mim mesmo”.

Epa !!! A lamparina acendeu ! Já vi isso em algum lugar. Corri para abrir o gigante livrinho do Sidarta, o Ribeiro. Estava lá, “PEDAÇO DE MIM”. No artigo, o famoso biofísico trata das amputações que sofremos em nosso corpo e suas consequências. Eu entendi, de pronto, o que isso queria dizer pois, por volta dos 30 anos de idade, eu fui operado de apendicite. Durante a convalescência eu sentia uma dor na barriga, o que é normal durante o período da cicatrização. Mas essa dor voltou aparecer, esporadicamente, durante mais de um ano. Voltei ao médico  várias vezes e ele me dizia, com ar filosofal, esticando a palavra e empinando as sobrancelhas : “ Remi...iniscê...ncias ...” e nunca me explicou que diabo era aquilo.    

Ao tratar a amputação de partes do corpo, Sidarta explica:      “Frequentemente, as penas psicológicas e sociais da amputação vêm acompanhadas de uma dor mais bruta, fruto da percepção fantasmagórica do pedaço perdido” . . . . . . .   “Decepado de forma acidental, o membro leva consigo terminais nervosos que não se se reconstituem no coto”.

E a mutilação da alma ?  Dos sonhos decepados ? Dos amores destruídos ? Dos desejos ceifados ?  Conseguiria o cérebro  “transformar em dor a saudade do pedaço que perdeu” , como diz     o próprio Sidarta ?  

Reminiscências . . . !  Dr. Evandro, médico cirurgião.  Morava na Rua Manoel Borba, no Recife. Eu morava numa pensão da Praça Maciel Pinheiro. Bons tempos aqueles.