28 janeiro 2021

SIDARTA

 

Encontrei no Sidarta Gautama o Buda que viveu no Século  VI, as palavras de consolo e incentivo de que precisava para sobreviver neste mundo de Pandemonia, sem acento nem endereço, a que fomos submetidos. O confinamento domiciliar, obrigatório para os idosos e desocupados e o “home work”, que resulta na mesma coisa para os que trabalham, bem como a impossibilidade de circulação livre de pessoas, são medidas profiláticas imperiosas para impedir o avanço da Pandemia. Os dados divulgados pelas “otoridades” sanitárias mostram que esta situação vem se agravando a cada dia. Diante desse quadro, as esperanças de um mundo melhor vão se desvanecendo. O relacionamento entre os grupos sociais vai-se deteriorando.  As pessoas se tornam apreensivas e sentem medo. Cria-se um clima de desconfiança e ninguém se entende mais.

 Como se não bastassem essas mazelas, constatamos que a vida do cidadão virou um pesadelo com o emaranhado de exigências burocráticas as quais, graças ao avanço tecnológico, só podem ser desvendadas através do celular, com o apoio de mil penduricalhos criados por “apepês” e seus complementos que nos invadem a alma e o cérebro  com uma publicidade porca e nefasta como se fôssemos todos débeis mentais. É de graça? Sim. É tudo de graça, desde que possamos digerir a propaganda desvairada.  A indústria alimentícia, e o seu coadjuvante, a farmacêutica, que o digam.

 Na vida quotidiana estamos atrelados a um sistema político-administrativo totalmente atrofiado, onde predominam disputas internas, conflitos de poder, dissipação de recursos, interesses espúrios, tudo isso sustentado, em sua iniquidade, pelo suor dos trabalhadores mais humildes, os que se chamavam antigamente  de proletários. E por falar nisso, o micro empresário, esse proletário moderno, é penalizado por trabalhar.

Para “facilitar” sua vida, o micro empresário foi convidado a acolher-se a um programa ironicamente denominado “Simples”, que transferiu para ele todas as tarefas de uma intrincada legislação fiscal que nem o seu contador consegue acompanhar, inclusive a de provar que não está roubando. Basta ver o sistema de tributação de sua empresa, criado inicialmente para isentá-lo de alguns impostos. Só para ver um detalhe, existe coisa mais complicada (para não dizer inútil) do que um Danfe?

 E a política? O Estado do Rio de Janeiro, que já foi Capital da República, tem hoje cinco governadores destituídos do cargo  cumprindo pena em cadeia, ou sob processo.

Feita essa digressão, volto ao problema que nos aflige:

A Pandmonia, sem acento nem endereço, e seus efeitos deletérios sobre o comportamento das pessoas em confinamento.

Dizia eu que havia apelado ao Buda Sidarta à procura de ensinamentos e consolo. Para começar, separei algumas frases do imenso ideário de santo filósofo.

  Em nossas vidas, a mudança é inevitável. A perda é inevitável. A felicidade reside na nossa adaptabilidade em sobreviver a tudo de ruim.”

“Não se combate ódio com ódio, mas sim com amor”.

“O ódio nunca desaparece, enquanto pensamentos de mágoas forem alimentados na mente.”       

“Sua tarefa é descobrir o seu trabalho e, então, com todo o coração, dedicar-se a ele.”

 Epa !  Aconteceu algo. Enquanto meditava sobre as frases, caí no sono. Não sei quanto tempo dormi mas agora, esfregando os olhos, eis que me vem à mente a palavra SIDARTA, cantada “sotto voce” por um grande amigo meu de Brasília.                                                                                                                                                             E me aparece um outro Sidarta. Não o Buda, mas um Sidarta vivo e real, de corpo e alma.

SIDARTA RIBEIRO, neurocientista de carreira internacional, autor de “Limiar”, um gigantesco livrinho que nos fala de ciência, política, educação, e onde ele desmascara a hipocrisia com que as leis tratam o “homo sapiens” de nossos dias. Vejam bem o que ele nos ensina logo de saída:

“Se queremos sobreviver a nós mesmos, precisaremos abandonar os hábitos paleolíticos de competir em vez de colaborar, acumular em vez de distribuir. Já passou da hora de um “upgrade” em nosso “software.”

Atualíssimo, Sidarta Ribeiro faz uma longa análise da posição do Brasil no campo cientifico. Na página 38 explica:

“Nos últimos vinte anos, fizemos enormes investimentos em            ciência, tecnologia e inovação, mas podemos perder tudo o que foi conquistado se não conseguirmos acompanhar a revolução tecnológica 4.0.”  . . . . . . . . . . A desigualdade econômica vem aumentando, a insegurança jurídica impera e a burocracia caprichosa dificulta toda a pesquisa. Nosso sistema está progressivamente sendo desengrenado e corremos o risco de um colapso científico-tecnológico sem precedentes.

Continuando, Sidarta dá uma demonstração de sua capacidade premonitória ao tratar do Corona Vírus. O trecho é longo, me desculpem, mas vale a pena, ainda mais pela elegância do estilo e beleza da construção literária:

“Fevereiro de 2020, Carnaval em Olinda, Pernambuco. Cerveja, cachaça, e milhares de pessoas subindo e descendo ladeiras, um prodígio de organização espontânea que logra proteger músicos e carros de som do caos turbulento. A multidão enche as ruas, pula, grita e se liberta de tudo o que não é amor. Um povo em gloriosa intimidade consigo mesmo. Minha visão se turva de cores, sons e cheiros. Seria tudo isso uma alucinação?  Fecho os olhos e tento vislumbrar o futuro. O que será preciso fazer para deter a explosão planetária do coronavírus? Será o fim de beijos, abraços e convívio? Sobreviveremos a todo esse isolamento? Haverá Carnaval no ano que vem? ”

Já me estendi além dos meus varais. Haveria muito que aprender com o novo Sidarta mas devo terminar aqui. Os meus pacientes leitores poderão continuar. Sidarta Ribeiro foi publicado pela Editora Companhia das Letras.

06 janeiro 2021

Eu não tenho desafetos


Nunca tive desafetos na minha vida. Lidei com pessoas de todas as classes sociais. Dos mais simples operários de fábrica aos diretores de empresas multinacionais. Trabalhei para Governadores e Ministros com os quais viajei mundo afora. De todos recebi carinho e consideração. Dos operários com quem lidei sempre encontrei dedicação. Eu visitava as fábricas com frequência, em horas inusitadas, no terceiro turno. Eu conversava  diretamente com o operador, junto da máquina. Eles se sentiam prestigiados e eu identificava eventuais gargalos no fluxo de produção,  máquinas paradas ou deficiência de pessoal.

Na minha família, entre tios, filhos, primos, cunhados, sobrinhos e netos, possivelmente haverá alguém que me ignora, mas jamais percebi qualquer tipo de hostilidade.Entre os vizinhos de casa, harmonia total, inclusive com o sindico do prédio.

Nada obstante, nesta vida tudo pode acontecer como, por exemplo, uma fruta fora do balaio. E esta foi o meu “Desafeto Oriental”.

Eu estava trabalhando na implantação do projeto Seridó, uma fábrica de tecidos de grande envergadura em Natal, Rio Grande do Norte, do qual participava a Shikibo Spinnig Company, renomada empresa japonesa. Por força do trabalho, eu viajava com frequência a Tokio e Osaka, enquanto técnicos japoneses vinham a Natal e Rio de Janeiro. Fiquei amigo de todos eles, não só pela seriedade com que eles encaravam o trabalho mas também porque me fascinava o seu modo de  vida, a sua obsessão pela limpeza, pela pontualidade, respeito à palavra empenhada, dedicação aos mais velhos e amor à natureza.

 Epa . . .  ! Eu disse que fiquei amigo de todos eles ?  Não foi bem assim. Um deles me detestava. Era um engenheiro alto e carrancudo, portanto fora dos padrões japoneses. A coisa era muito simples: ele não ia com a minha cara e eu não ia com a cara dele. Nunca nos falamos. Nas poucas ocasiões em que tivemos que discutir trabalho, o diálogo era feito através de um interlocutor.

Certa vez, eu estava na firma em Osaka e devia comparecer a um jantar de confraternização, daqueles que, no melhor estilo japonês, duravam mais de três horas. Os lugares estavam marcados com o nome de cada convidado. Ao me aproximar da mesa, olhei para o lado direito. Estava marcado com o nome do carrancudo.

“Estragou o meu jantar”, pensei logo. Sentei-me olhando fixamente para a frente. Procurei conversar com o vizinho da esquerda, mas minha conversa não cativou ninguém. E assim decorreu o jantar. No fim, quando tomávamos aquele chazinho de encerramento, o carrancudo me cutucou e disse, com seu inglês econômico:

 “ Mister Superafico, what would you like best in this moment?”

Senhor Spreafico, de que o senhor gostaria mais neste momento?”

 Fiquei petrificado. Não sabia o que responder. Não conseguia pensar em nada. A mesa inteira olhava em silêncio. O tempo passava.

 “Eu gostaria que a minha família estivesse aqui comigo agora.”

 Ele balançou a cabeça, deu um sorriso e foi embora. No dia seguinte procurou-me cedo. Trazia um monte de plantas e começamos a discutir aspectos novos do projeto. Parecíamos amigos de infância. A mente humana guarda muitos mistérios.

Mas agora eu posso dizer:     Eu não tenho desafetos.