28 agosto 2020

Amar o Transitório




 Tristeza, dor, sofrimento, frustação, vingança, represália, abandono, traição, angústia.  Afinal, o que é que te sobrou ?  Nada.  O que é feito de tua vida ?  Nada. O que é feito dos teus desejos, da tua esperança, da tua alegria, do teu sorriso, dos teus sonhos ? Nada. Sobrou-me o vazio, o vácuo, a solidão ?
Não. Decididamente, não. Veja o que diz o Poeta:

 A Solidão e Sua Porta      
Carlos Pena Filho


Quando nada mais resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
E quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha)

Quando pelo desuso da navalha
A barba livremente caminhar
E até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho nz batalha

Arquitetar na sombra a despedida
Deste mundo que te foi contraditório
Lembra-te que afinal te resta a vida

Com tudo o que é insolvente e provisório
e  de que ainda tens uma saída
Entrar no acaso e amar o transitório 


Carlos Pena Filho, poeta pernambucano que encantou os jovens intelectuais do Recife com suas tertúlias no Bar Savoy, na Av. Guararapes, com os seus chopes: 

“São Trinta copos de chope,
São Trinta homens sentados,
Trezentos desejos presos, 
Trinta mil sonhos frustados" 

Carlos foi vítima de um  acidente  automobilístico em 1960. Tinha trinta anos de idade. Tive o privilégio de conhecê-lo quando eu frequetava o Bar Savoy, no início de 1959 e eu andava fazendo teatro, encenando a Paixão de Cristo em Fazenda Nova. Aprendi com ele e por isso ouso dizer que ainda me resta uma saída: “Entrar no acaso e amar o transitório”

E, antes de me despedir, queridos e distantes amigos, quero deixar-lhes a estrofe de outro grande poeta, Fernado Pessoa, com quem aprendi que

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A  dor que deveras sente”


16 agosto 2020

Sonhos

 

" Sonhos que fogem . . . e aos corações não voltam mais "



Minha alma vagava em desatino

 Negando-se a cumprir o seu destino

Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura

Onde pudesse iniciar vida mais pura

                                                                                                             

 

Esta semana visitei meu bambuzal. A neblina espessa, muito comum nesta época do ano, baixava sobre o Vale do Cônego, criando uma atmosfera de triste melancolia. Perfurando o lençol branco da neblina sobressaía, soberbo, o cocoruto do Chapéu da Bruxa.Foi nesse clima nebuloso que, saindo do meio das brumas, me deparei com o Severino Mandacaru.Mostrando uma expressão de espanto, Severino contemplava o Chapéu da Bruxa meneando a cabeça negativamente num sinal inconfundível de desaprovação.

 “ Galego safado, o que é que você andou aprontando? Todo mundo está se queixando de você.”

 “ Não sei porque, nem vejo motivo. Tenho prestado contas da minha vida com toda a sinceridade e cordura. Aos meus parentes, que me sustentam, aos meus amigos, que me apoiam, me prestigiam e me alegram e à Divina Potestate, segundo Dante, quando me for exigido. Por isso não vejo motivo para queixas.                                                        Ah! Se for por causa das minhas ideias políticas, fiquem tranquilos. Não tenho nenhuma. Resta-me agora cuidar dos meus fantasmas e dos meus sonhos.

“ Mas Galego, e que história foi aquela que você andou falando, de uma tal de Narayama, no topo de uma montanha que . . . . . . .”

 “ Metáforas, Severino ! Metáforas. Narayama existe e todos haveremos de enfrentá-la, seja na forma de Montanha ou de Abismo. Cada um poderá  escolher a sua forma ou entregar-se ao Destino, ao Sincro-Destino de que fala o poeminha do Sonho. Mas este não é o momento para tratar disso. Falemos de você. O que você tem feito?”

 “ Nada. Isso diz tudo. Com Pandemonia sem acento e sem endereço, como diz você, me vejo condenado a comer minhas próprias tapiocas. Também tenho sonhado muito Galego. Sonhado com um mundo mais decente, mais justo, mais equilibrado, o que quer que isso signifique. Um mundo sem preconceitos, sem ódio, sem guerras. Um mundo de paz no qual eu iria dormir com a certeza de acordar no dia seguinte feliz por fazer parte desse mundo. E por falar em sonho, como acabou aquele sonho que você teve em 2014 e  você narrou  num poema que mais parecia um necrológio ?”

 “ Bem lembrado, Severino, bem lembrado! Porque aquele sonho, eu tive, de verdade! Eu flutuava no ar, e me sentia feliz. Tanto é que termino o poema com um epitáfio à altura do evento. Chamei o poema de  “A Pena da Morte” , para não confundir com  “A Pena de Morte”, que seria só a condenação. Ali não. Ali, a morte era ao vivo. Quem ler vai entender.”

 Então, aqui vai:                    

 

A Pena da Morte

Eu tive um sonho

E no meu sonho eu morria

E morrendo eu não me via

Sofrer  como devia.

 

Porque sofrendo passei a vida inteira

E mesmo sabendo que a vida é passageira

Não me dei conta de que um dia eu morreria

 

De repente uma pena apareceu no espaço

Riscando os ares  rápida e matreira

E apontando  meu peito zombeteira

Disparou letras com desembaraço

 

A pena desenhava no ar letras  mal feitas

Que eu arrumava sem zelo em linhas tortas

Para que fossem consideradas letras mortas

 

E assim passou-se o tempo

Minha alma vagava em desatino

 Negando-se a cumprir o seu destino

Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura

Onde pudesse encontrar vida mais pura

 

Eu me deixava flutuar no ar disperso

Para não perder  as letras e desperdiçar o verso

 

Foi quando a pena, com sua ponta de platina

Tresloucada  insana  escreveu ferina:

     

“Aqui  jaz aquele que achava

Que em sonho morreria

Mas no seu sonho delirava

Porque morto  já estava e não sabia”

 

 

“ Galego da gota serena. Você  não toma jeito mesmo.  Onde é que já se viu brincar com um assunto desses. E ninguém,  ninguém   reclamou ? ”

 “ Sei lá. Foi há tantos anos. Naquele tempo não se discutia política como hoje. Se fosse hoje iriam logo dizer que sou conivente com o governo e, por isso, responsável pelas mazelas de todo mundo. Se eu disser que não apoio o governo vão dizer que não acreditam nisso que eu apenas estou fingindo que mesmo assim sou responsável porque não faço nada, que tem milhões morrendo de fome etc. etc.  E dizem isso a um pobre perneta que só está aqui esperando completar o seu primeiro século e dar um ciao. Dominus Vobiscum.”

 “ É, Galego, não se amofine. Faça como eu, vá cuidar de suas tapiocas. Mas você não veio aqui para falar de sonhos?”

 " É verdade, Severino. Sonhos. Só Sonhos. Você lembra do Raimundo Correia? Claro,  foi você que me recitou um dos poemas dele: “As Pombas”. Vou citar as últimas estrofes e depois me despeço. Com uma furtiva lágrima.

 

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 

“Também dos corações onde abotoam

, Os sonhos, um por um céleres voam,

 Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam

Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,

 E eles aos corações não voltam mais...

 


Em tempo: 

Eu havia preparado uma outra versão para o epitáfio, mais adequada ao "evento". Aqui vai ela:

Aqui  jaz o bobão que achava

Que em sonho morreria

E bobão ele era

Porque morto  já estava e não sabia”

 




 

10 agosto 2020

Um dia na Vida

 

“ Sozinho de noite, nas ruas desertas do velho Recife que atrás do arruado moderno ficou, criança de novo eu sinto que sou.”

 Os versos do Ascenso Ferreira se esparramavam pelo chão do meu quarto  como letras mortas. Caídos assim, perderam a voz mas não perderam o sentido. Desde os dias em que, ainda menino, sentado no Cais do Apolo, eu balançava as pernas enquanto contemplava   encantado a imensa lua de prata e seus reflexos na superfície da água. Desde então, muitos e muitos dias se passaram. E hoje posso dizer, seguindo o Ascenso: “Sozinho de noite, atento como um gambá, olhando o passado, pensando o futuro, criança de novo eu sinto que sou.” 

 Nas pequenas dimensões do meu grande Castelo, eu sinto a vida no ar gelado da madrugada, no sol tépido do meio dia e nas cores esparramadas no céu pelo sol do crepúsculo. Os pássaros cantam. As flores se abrem. Os saguis pulam nos galhos. Os cães latem. A neblina se dissipa aos primeiros raios do sol de outono. O alarido das crianças me avisa que a vida está apenas começando.

 O tempo passa. As baixas temperaturas na Serra convidam ao    recolhimento. Quando Setembro vier, o tempo será mais ameno e com ele chegarão as saudades. Saudades de tudo. Dos amigos que ficaram distantes e para os quais o tempo não passou. Saudades da escola e suas noites passadas em claro. Saudades das fábricas, das máquinas, do cheiro do algodão cru. Da vida proletária. Do silêncio das viagens a trabalho, longe da família. Do teatro e suas presepadas. Das noitadas cheias de poesia nas mesas do bar Savoy, no Recife.

 O tempo passa. Quando Setembro chegar, estarei ocupado e pedirei aos meus amigos que me perdoem por cumprimentá-los apenas com um aceno de mão. Estarei me preparando, em penitência, para corrigir meus erros, obter o perdão pelas iniquidades cometidas e preparar-me, sem pressa, para alcançar o topo da Montanha de Narayama.