" Sonhos que fogem . . . e aos corações não voltam mais "
Minha alma vagava em desatino
Negando-se a cumprir o seu destino
Mergulhar no Espaço Sideral que eterno dura
Onde pudesse iniciar vida mais pura
Esta semana visitei meu bambuzal. A neblina
espessa, muito comum nesta época do ano, baixava sobre o Vale do Cônego,
criando uma atmosfera de triste melancolia. Perfurando o lençol branco da
neblina sobressaía, soberbo, o cocoruto do Chapéu da Bruxa.Foi nesse clima nebuloso que, saindo do meio
das brumas, me deparei com o Severino Mandacaru.Mostrando uma expressão de espanto, Severino
contemplava o Chapéu da Bruxa meneando a cabeça negativamente num sinal
inconfundível de desaprovação.
“ Galego safado, o que é que você andou
aprontando? Todo mundo está se queixando de você.”
“ Não sei porque, nem vejo motivo. Tenho
prestado contas da minha vida com toda a sinceridade e cordura. Aos meus
parentes, que me sustentam, aos meus amigos, que me apoiam, me prestigiam e me
alegram e à Divina Potestate, segundo Dante, quando me for exigido. Por isso
não vejo motivo para queixas. Ah! Se for por causa das minhas ideias
políticas, fiquem tranquilos. Não tenho nenhuma. Resta-me agora cuidar dos meus
fantasmas e dos meus sonhos.
“ Mas Galego, e que história foi aquela que
você andou falando, de uma tal de Narayama, no topo de uma montanha que . . . .
. . .”
“ Metáforas, Severino ! Metáforas. Narayama
existe e todos haveremos de enfrentá-la, seja na forma de Montanha ou de
Abismo. Cada um poderá escolher a sua
forma ou entregar-se ao Destino, ao Sincro-Destino de que fala o poeminha do
Sonho. Mas este não é o momento para tratar disso. Falemos de você. O que você
tem feito?”
“ Nada. Isso diz tudo. Com Pandemonia sem
acento e sem endereço, como diz você, me vejo condenado a comer minhas próprias
tapiocas. Também tenho sonhado muito Galego. Sonhado com um mundo mais decente,
mais justo, mais equilibrado, o que quer que isso signifique. Um mundo sem
preconceitos, sem ódio, sem guerras. Um mundo de paz no qual eu iria dormir com
a certeza de acordar no dia seguinte feliz por fazer parte desse mundo. E por
falar em sonho, como acabou aquele sonho que você teve em 2014 e você narrou
num poema que mais parecia um necrológio ?”
“ Bem lembrado, Severino, bem lembrado! Porque aquele
sonho, eu tive, de verdade! Eu flutuava no ar, e me sentia feliz. Tanto é que
termino o poema com um epitáfio à altura do evento. Chamei o poema de “A Pena da Morte” , para não confundir com “A Pena de Morte”, que seria só a condenação.
Ali não. Ali, a morte era ao vivo. Quem ler vai entender.”
Então, aqui vai:
A
Pena da Morte
Eu tive um sonho
E no meu sonho eu morria
E morrendo eu não me via
Sofrer
como devia.
Porque sofrendo passei a vida inteira
E mesmo sabendo que a vida é passageira
Não me dei conta de que um dia eu morreria
De repente uma pena apareceu no espaço
Riscando os ares rápida e matreira
E apontando
meu peito zombeteira
Disparou letras com desembaraço
A pena desenhava no ar letras mal feitas
Que eu arrumava sem zelo em linhas tortas
Para que fossem consideradas letras mortas
E assim passou-se o tempo
Minha alma vagava em
desatino
Negando-se a cumprir o seu destino
Mergulhar
no Espaço Sideral que eterno dura
Onde
pudesse encontrar vida mais pura
Eu me deixava flutuar no ar disperso
Para não perder
as letras e desperdiçar o verso
Foi quando a pena, com sua ponta de platina
Tresloucada
insana escreveu ferina:
“Aqui
jaz aquele que achava
Que em sonho morreria
Mas no seu sonho delirava
Porque morto
já estava e não sabia”
“ Galego da gota serena. Você não toma jeito mesmo. Onde é que já se viu brincar com um assunto
desses. E ninguém, ninguém reclamou
? ”
“ Sei lá. Foi há tantos anos. Naquele tempo não
se discutia política como hoje. Se fosse hoje iriam logo dizer que sou conivente
com o governo e, por isso, responsável pelas mazelas de todo mundo. Se eu disser
que não apoio o governo vão dizer que não acreditam nisso que eu apenas estou
fingindo que mesmo assim sou responsável porque não faço nada, que tem milhões morrendo
de fome etc. etc. E dizem isso a um
pobre perneta que só está aqui esperando completar o seu primeiro século e dar
um ciao. Dominus Vobiscum.”
“ É, Galego, não se amofine. Faça como eu, vá
cuidar de suas tapiocas. Mas você não veio aqui para falar de sonhos?”
" É verdade, Severino. Sonhos. Só Sonhos. Você lembra
do Raimundo Correia? Claro, foi você que
me recitou um dos poemas dele: “As Pombas”. Vou citar as últimas estrofes e depois me
despeço. Com uma furtiva lágrima.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
.
“Também dos corações onde abotoam
, Os sonhos, um por um céleres voam,
Como voam
as pombas dos pombais;
No azul da adolescência as asas soltam
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos
corações não voltam mais...”
Em tempo:
Eu havia preparado uma outra versão para o epitáfio, mais adequada ao "evento". Aqui vai ela:
Aqui jaz o bobão que achava
Que em sonho morreria
E bobão ele era
Porque morto já estava e não sabia”