Brennand I. O Magnífico - II. O
Mágico
Ricardo Brennand, O Magnífico
Um pernambucano genuíno. Um empresário
exemplar. Um pai amoroso.
Francisco Brennand, O Mágico
O Feiticeiro das Artes. Pintor, Escultor,
Escritor. Um pensador incomum.
Ricardo Brennand implantou um gigantesco
parque industrial em São João da Várzea, nos arredores do Recife, onde produzia
cerâmica, cimento, azulejos, vidros e outros materiais de construção. Posteriormente,
criaria o seu fabuloso museu. Foi como
empresário que o conheci.
Estávamos no início da década de sessenta.
Eu vivia mergulhado no meu trabalho de elaborar projetos para fábricas de tecido,
especialidade à qual eu havia chegado por força do destino.
Numa certa manhã recebo um recado: “O Dr.
Ricardo deseja lhe falar. Pediu que fosse até a Várzea.”
“ Eu pretendo diversificar minha atividade
industrial. Gostaria de entrar na indústria têxtil. Já tenho, inclusive, uma
proposta de financiamento pelo Banco Mundial. O que me aconselha ? ”
Apresentei-lhe um panorama do setor têxtil
no Nordeste, identificando os nichos de oportunidade para um investimento
seguro e que contavam com incentivos fiscais.
“Ótimo. Teríamos que começar com uma
unidade que permitisse expansão futura. Por isso tenho pressa.”
Nesse caso, disse eu, sugiro começar com
uma fiação de algodão. Existe uma demanda reprimida para fios de alta
qualidade, não só no Brasil mas também no Exterior. O Nordeste é um grande
produtor de fibra longa – o Seridó – ideal para a produção de fios finos. Para tanto
é preciso elaborar um projeto de execução. Porém, como já existe uma proposta
de financiamento, deveríamos iniciar com uma Carta Consulta, um documento bem
simples que apresenta os cálculos necessários para comprovar a viabilidade
técnica e econômico-financeira do empreendimento. Isso é rápido. Em um mês pode
ser feito.
“ Mas eu preciso disso para quinta feira !
”
Esse era o Dr. Ricardo Brennand !
Estávamos na quarta feira anterior. Fechei os olhos, invoquei os deuses, e quando voltei
a mim descobri que a semana seguinte era . . . Carnaval ! Fiz as contas
rapidamente: eu dispunha de sete dias e sete noites para fazer o trabalho.
“ Na quinta feira, até o meio dia, eu lhe
trago o trabalho ! ”
Ele me deu um tapão nas costas e eu me mandei,
correndo.
No dia acordado, perto do meio dia, cheio
de vento, cheguei na Várzea e entreguei a Carta Consulta. Ele a examinou
detidamente e disse:
“ Muito bom. Era o que eu precisava.” Em seguida chamou a Secretária.
Aqui cabe um esclarecimento. Na entrevista
inicial o Dr. Ricardo havia me perguntado quanto custaria o trabalho. Fiz um
cálculo rápido usando os critérios que eu usava nos meus trabalhos de
consultoria e forneci um valor que ele aceitou sem maiores perguntas. Hoje eu
nem lembro mais qual era. Quando a Secretária chegou ele disse:
“ Faça um cheque no valor de ... tanto ...
para o Sr. Spreafico.
Levei um susto. Imediatamente corrigi:
“ Dr. Ricardo, o senhor se enganou. Isso é o dobro do que eu
pedi.”
“ Você merece, meu filho. você trabalhou no Carnaval.
Esse era o Dr. Ricardo Brennand !
Meses depois encontrei-me novamente, e por
acaso, com o Dr. Ricardo. Numa viagem a trabalho
de Recife para São Paulo, num vôo da Cruzeiro. Eu estava sentado junto à janela
quando ele embarcou. Vendo o assento ao meu lado vazio, ele o ocupou e,
enquanto esperávamos a decolagem ficamos conversando. O assunto era,
obviamente, o desenvolvimento industrial do Nordeste. Aqui cabe uma explicação:
a Cruzeiro havia inaugurado o Viscount, um avião de duas turbinas super potentes
que, no momento em que deixava o solo, subia disparado num ângulo de quase
quarenta e cinco graus. Era emocionante. Alcançada a altura necessária, o avião
seguia tranquilo e sereno como se nada tivesse acontecido.
Pois desta vez foi diferente. Largado o chão,
o avião começou a subir mas no meio do processo,
muito antes da altura de nivelamento, começou a perder altura. Eu gelei. Já havia
feito muitas viagens com esse avião e percebi logo o que estava acontecendo. O
Ricardo virou-se e disse:
“Oh Spreafico, parece que este avião está
planando.” Eu estava em pânico. Não pude
me controlar:
“Planando não, Dr. Ricardo. O avião está caindo.”
Logo se ouviu a voz do comandante acalmando
os passageiros e informando que estávamos voltando ao aeroporto do Recife. O avião
baixava em círculos, acelerado. Olhei pela janela. Foi a recepção mais festiva
e colorida que eu tive em minha vida: ambulâncias, carros de bombeiro, caminhões-tanque
e policiais com máscaras contra gás, com suas cruzes e insígnias coloridas, nos
davam as boas vindas.
* *
* * *
Francisco Brennand, O Mágico, era pintor,
escultor, poeta, escritor, grande filósofo, amante do teatro e um grande ser
humano. Chico, como o chamávamos, não queria saber de fábricas. Queria fazer
arte. Por causa disso, chegou a ser considerado “ a ovelha desgarrada da família .”
Eu o conheci quando foi criado o Teatro
Popular do Nordeste por Hermilo Borba Filho, Ariano Suassuna, Capiba e onde eu ensaiava “A Pena
e a Lei”, que seria estreada no Teatro do Parque em Fevereiro de 1970. Ele
comparecia aos ensaios com certa assiduidade e discutia com Hermilo e Ariano os
problemas da formação do grupo teatral.
Depois que me transferi para o Sul, passei a visitar Recife com uma certa frequência.
Em cada viagem, eu fazia questão de visitar os Museus, tanto o do Ricardo como
o de Francisco. Neste, fiz várias tentativas de falar com o Francisco. Nunca
consegui. Na última viagem, cerca de dois anos antes de sua morte, decidi que
eu não sairia do museu sem encontrá-lo. Falei com todas as assistes que encontrei.
Em vão. Ora ele estava ocupado, ora estava lanchando, ora estava doente. Desanimado, eu me coloquei na extremidade de
um dos galpões, pensativo, contemplando aquela montanha de estátuas. De repente
divisei sua silhueta na outra extremidade, manejando um pacote de jornais. Sem
perceber, deixou cair um deles. Saí disparado e alcancei-o quando se preparava
para recolher o jornal. Eu me antecipei e lhe passei o jornal. Olhou-me
fixamente.
“ Não está me reconhecendo ? Cheiroso ! ” disse-lhe.
“ Cheiroso ?
“ É... Da Pena e a Lei, do Ariano. Você ia
assistir os ensaios de vez em quando.”
“ Ah . . .Claro. . . de vez em quando não, eu ia a todos . . . a
todos.
Abraçou-me. Perguntou-me pelos amigos que moravam
no Rio. Perguntei-lhe onde poderia encontrar o Ariano. “Você não vai conseguir
falar com o Ariano. Ele está trancado em casa escrevendo.”
E me despedi escondendo uma gota de orvalho que
me descia pela face.