28 abril 2020

Os Brennand


 Brennand   I. O Magnífico  -  II. O Mágico

Ricardo Brennand, O Magnífico
Um pernambucano genuíno. Um empresário exemplar. Um pai amoroso.

Francisco Brennand, O Mágico
O Feiticeiro das Artes. Pintor, Escultor, Escritor.  Um pensador incomum.

Ricardo Brennand implantou um gigantesco parque industrial em São João da Várzea, nos arredores do Recife, onde produzia cerâmica, cimento, azulejos, vidros e outros materiais de construção. Posteriormente, criaria o seu fabuloso museu.  Foi como empresário que o conheci.

Estávamos no início da década de sessenta. Eu vivia mergulhado no meu trabalho de elaborar projetos para fábricas de tecido, especialidade à qual   eu havia chegado por força do destino.
Numa certa manhã recebo um recado: “O Dr. Ricardo deseja lhe falar. Pediu que fosse até a Várzea.”

“ Eu pretendo diversificar minha atividade industrial. Gostaria de entrar na indústria têxtil. Já tenho, inclusive, uma proposta de financiamento pelo Banco Mundial. O que me aconselha ? ”

Apresentei-lhe um panorama do setor têxtil no Nordeste, identificando os nichos de oportunidade para um investimento seguro e que contavam com incentivos fiscais.

“Ótimo. Teríamos que começar com uma unidade que permitisse expansão futura. Por isso tenho pressa.”

Nesse caso, disse eu, sugiro começar com uma fiação de algodão. Existe uma demanda reprimida para fios de alta qualidade, não só no Brasil mas também no Exterior. O Nordeste é um grande produtor de fibra longa – o Seridó – ideal para a produção de fios finos. Para tanto é preciso elaborar um projeto de execução. Porém, como já existe uma proposta de financiamento, deveríamos iniciar com uma Carta Consulta, um documento bem simples que apresenta os cálculos necessários para comprovar a viabilidade técnica e econômico-financeira do empreendimento. Isso é rápido. Em um mês pode ser feito.

“ Mas eu preciso disso para quinta feira ! ”

Esse era o Dr. Ricardo Brennand !
Estávamos na quarta feira anterior.  Fechei os olhos, invoquei os deuses, e quando voltei a mim descobri que a semana seguinte era . . . Carnaval ! Fiz as contas rapidamente: eu dispunha de sete dias e sete noites para fazer o trabalho.

“ Na quinta feira, até o meio dia, eu lhe trago o trabalho ! ”   

Ele me deu um tapão nas costas e eu me mandei, correndo.
No dia acordado, perto do meio dia, cheio de vento, cheguei na Várzea e entreguei a Carta Consulta. Ele a examinou detidamente e disse:

“ Muito bom. Era o que eu precisava.”  Em seguida chamou a Secretária.

Aqui cabe um esclarecimento. Na entrevista inicial o Dr. Ricardo havia me perguntado quanto custaria o trabalho. Fiz um cálculo rápido usando os critérios que eu usava nos meus trabalhos de consultoria e forneci um valor que ele aceitou sem maiores perguntas. Hoje eu nem lembro mais qual era. Quando a Secretária chegou ele disse:
“ Faça um cheque no valor de ... tanto ... para o Sr. Spreafico.
Levei um susto. Imediatamente corrigi:

“ Dr. Ricardo, o  senhor se enganou. Isso é o dobro do que eu pedi.”

“ Você merece, meu filho.  você trabalhou no Carnaval.

Esse era o Dr. Ricardo Brennand !

Meses depois encontrei-me novamente, e por acaso, com o Dr. Ricardo. Numa viagem a  trabalho de Recife para São Paulo, num vôo da Cruzeiro. Eu estava sentado junto à janela quando ele embarcou. Vendo o assento ao meu lado vazio, ele o ocupou e, enquanto esperávamos a decolagem ficamos conversando. O assunto era, obviamente, o desenvolvimento industrial do Nordeste. Aqui cabe uma explicação: a Cruzeiro havia inaugurado o Viscount, um avião de duas turbinas super potentes que, no momento em que deixava o solo, subia disparado num ângulo de quase quarenta e cinco graus. Era emocionante. Alcançada a altura necessária, o avião seguia tranquilo e sereno como se nada tivesse acontecido.

Pois desta vez foi diferente. Largado o chão, o avião começou a subir  mas no meio do processo, muito antes da altura de nivelamento, começou a perder altura. Eu gelei. Já havia feito muitas viagens com esse avião e percebi logo o que estava acontecendo. O Ricardo virou-se e disse:

“Oh Spreafico, parece que este avião está planando.” Eu estava em pânico.  Não pude me controlar:

“Planando não, Dr. Ricardo.  O avião está caindo.”

Logo se ouviu a voz do comandante acalmando os passageiros e informando que estávamos voltando ao aeroporto do Recife. O avião baixava em círculos, acelerado. Olhei pela janela. Foi a recepção mais festiva e colorida que eu tive em minha vida: ambulâncias, carros de bombeiro, caminhões-tanque e policiais com máscaras contra gás, com suas cruzes e insígnias coloridas, nos davam as boas vindas.

*    *    *    *    *
Francisco Brennand, O Mágico, era pintor, escultor, poeta, escritor, grande filósofo, amante do teatro e um grande ser humano. Chico, como o chamávamos, não queria saber de fábricas. Queria fazer arte. Por causa disso, chegou a ser considerado  “ a ovelha desgarrada da família .”
Eu o conheci quando foi criado o Teatro Popular do Nordeste por Hermilo Borba Filho,  Ariano Suassuna, Capiba e onde eu ensaiava “A Pena e a Lei”, que seria estreada no Teatro do Parque em Fevereiro de 1970. Ele comparecia aos ensaios com certa assiduidade e discutia com Hermilo e Ariano os problemas da formação do grupo teatral.

Depois que me transferi para o Sul,  passei a visitar Recife com uma certa frequência. Em cada viagem, eu fazia questão de visitar os Museus, tanto o do Ricardo como o de Francisco. Neste, fiz várias tentativas de falar com o Francisco. Nunca consegui. Na última viagem, cerca de dois anos antes de sua morte, decidi que eu não sairia do museu sem encontrá-lo. Falei com todas as assistes que encontrei. Em vão. Ora ele estava ocupado, ora estava lanchando, ora estava doente.  Desanimado, eu me coloquei na extremidade de um dos galpões, pensativo, contemplando aquela montanha de estátuas. De repente divisei sua silhueta na outra extremidade, manejando um pacote de jornais. Sem perceber, deixou cair um deles. Saí disparado e alcancei-o quando se preparava para recolher o jornal. Eu me antecipei e lhe passei o jornal. Olhou-me fixamente.

“ Não está me reconhecendo ? Cheiroso ! ”  disse-lhe.
“ Cheiroso ?
“ É... Da Pena e a Lei, do Ariano. Você ia assistir os ensaios de vez em quando.”
“ Ah . . .Claro. . .  de vez em quando não, eu ia a todos . . . a todos.

Abraçou-me. Perguntou-me pelos amigos que moravam no Rio. Perguntei-lhe onde poderia encontrar o Ariano. “Você não vai conseguir falar com o Ariano. Ele está trancado em casa escrevendo.”

E  me despedi escondendo uma gota de orvalho que me descia pela face.



19 abril 2020

Surpresas na Serra. . . Desafios no Mar



A quietude na Serra nestes dias de outono induz a um silêncio restaurador. Recolhido no meu bambuzal contemplo a neblina baixa que se aconchegou no Vale do Cônego deixando exposto apenas o cocoruto do Chapéu da Bruxa. O projeto da Montanha de Narayama foi abandonado. Minha mente vaga.
Olho à minha volta. O panorama é entristecedor. Os sabiás não cantam mais com o mesmo entusiasmo. Os gambás se tornaram escassos e as bananas sobram no quintal. O casal de jacus não desce mais para exibir seu porte majestoso; emitem seus gorjeios de dentro do ninho. As plantas crescem à revelia do seu amo, ausente pelas circunstâncias do tempo. Encontrei um pé de abóbora que havia se alastrado na planície da horta subindo pela porta da cozinha, visto que não podia entrar. Os cães não ladram mais. As noites se tornaram longas, ignorando as estações do ano. Os dias, insípidos. As ruas, desertas. Tranquei as portas e me transportei para o nível do mar.

No velho esconderijo do Cosme Velho, a vida retoma a sua rotina.
Mas . . . descubro que estou sozinho! A dura constatação, a princípio, me confunde. Aos poucos me acostumo. De repente, uma descoberta: Estou lendo os “Diários Intermitentes” do Economista Celso Furtado com o qual trabalhamos, minha esposa e eu, na Sudene. Em três ocasiões, Furtado confessa estar sofrendo uma enorme solidão e que isso o incomoda muito. Um pequeno detalhe: Furtado escreveu isso quando tinha dezesseis anos de idade. Isso me confortou.

A solidão me faz companhia. Os seus fantasmas me acompanham. Como sombras durante o dia e como vultos durante a noite.
A  SOLIDÃO !  Preciso entendê-la.

Consultei os psicólogos. E eles me disseram:
 “Para viver feliz na solidão é preciso aceitá-la. Admita que você se sente só”.
 Pronto. Admiti. Mas os psicólogos continuam:
“Você também precisa esquecer o seu passado”.
Muito justo, retruquei. De nada adianta ficar apregoando minhas bravatas se tenho que pagar as contas no fim do mês.
Mas, esquecer o passado?
Sim, vou esquecer o meu passado. Mas para isso é preciso que eu me lembre dele, antes.
  
E assim encontrei-me, ainda jovem, flanando pelo velho Recife, balançando as pernas na amurada das pontes, esperando o nascer do sol no Cais de Santa Rita ou contemplando a lua escandalosa refletida nas águas do Capibaribe.

Como não iria me lembrar dos encontros festivos com poetas e pintores,  sonhadores românticos, e suas presepadas? Carlos Pena Filho nas noitadas boêmias do Bar Savoy; Adão Pinheiro, Abelardo da Hora, Reinaldo Fonseca, Mario Mota . . .
Como não lembrar dos ensaios no Teatro do Parque com Ariano Suassuna, Capiba, Joel Pontes, Clênio Wandelei, Hiran Pereira, Hermilo  Borba Filho e todos os mamulengos de “A Pena e a Lei” ?  E o sucesso no Teatro Santa Izabel com “O Diário de Anne Frank” ?
E a representação da Paixão de Cristo em Fazenda Nova, três dias de espetáculo contínuo num cenário grandioso esculpido em pedra por artesãos locais?
De tudo isso me lembrei. Porque tudo isso eu vivi. E muito mais.

Um dia, quando eu balançava as pernas na Ponte Buarque de Macedo, vi que passava, apressado, o poeta Augusto dos Anjos. Com o semblante carregado, parecia ir ao encontro da morte. Perguntei-me em que estaria pensando. Entendi depois: No destino.


AS CISMAS DO DESTINO

“Recife. Ponte Buarque de Macedo.
Eu, indo em direção à casa do Agra,
Assombrado com a minha sombra magra,
Pensava o Destino, e tinha medo.
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Lembro-bem. A ponte era comprida,
E a minha sombra enorme enchia a ponte,
Como uma pele de rinoceronte
Estendida por toda a minha vida!”
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A casa do Agra era uma Funerária. Eu a conhecia bem, ficava na Rua da Conceição, bairro da  Boa Vista e eu passava por ela quando ia garimpar livros nos sebos da região. Continuando seu longo poema “ As Cismas do Destino ", Augusto dos Anjos declama:

“Ah! Com certeza, Deus me castigava!
Por toda a parte, como um réu confesso
Havia um juiz que lia o meu processo
E uma forca especial que me esperava!”
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Em um soneto  Augusto dos Anjos continua
falando do seu destino:

“Tome, Dr. esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa
Que importa a mim que a bicharada roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
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Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpétuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!”

Com estes versos, deixo ao meu incauto leitor a incumbência de desvendar os mistérios que se escondem na cabeça de um solitário. A Solidão é um mar imenso. Oferece banhos reparadores.
A volta ao nível do mar aquietou-me a alma. Deixei a Serra com tristeza e nostalgia. Mas a chegada ao Palácio Encantado do Cosme Velho me proporcionou a vida alegre e festiva do adolescente de outrora.

“ Absit injuria verbis ”